domingo, 7 de outubro de 2007

Joseph de Maistre

ou o Discurso Antidemocrático.

Joseph de Maistre (1753-1821) tem sido retratado de diversas maneiras, mas, como demonstrou Isaiah Berlin, o seu objectivo primordial «foi destruir o século XVIII e seu pensamento racionalista». A sua teoria fundamental afirma que «a natureza tem os dentes e as garras sangrentos, é um vasto cenário de carnificina e destruição».


«No vasto domínio da natureza viva reina uma violência aberta, um género de fúria prescritiva que arma todas as criaturas para a sua perdição comum. Assim que deixamos o reino inanimado, deparamo-nos com o decreto da morte violenta inscrito nas próprias fronteiras da vida. Sentimo-lo logo no reino vegetal: da enorme catalpa à erva mais pequena, quantas plantas morrem e quantas são mortas! Mas no momento em que entramos no reino animal, esta lei revela-se subitamente com a mais aterradora evidência. Um poder violento, ao mesmo tempo oculto e palpável (...), designou, em cada subdivisão principal dos animais, um determinado número de espécies para devorar as outras. Assim, existem insectos predadores, répteis predadores, aves de rapina, peixes predadores, quadrúpedes predadores. Não há instante de tempo em que uma criatura não esteja a ser devorada por outra. O homem está colocado acima de todas essas numerosas raças de animais e a sua mão destruidora não poupa nada que tenha vida».
Esta concepção crua e despida de lentes teóricas, metafísicas, lógicas ou geométricas, da natureza aplica-se também ao homem que, apesar de nascer para amar, é de todos os animais o mais violento e cruel.
«O homem mata para se alimentar e mata para se vestir. Mata para se adornar e mata para atacar. Mata para se defender e mata para se treinar. Mata para se divertir e mata por matar. Rei soberano e terrível, tudo deseja e nada lhe resiste (...). Ao cordeiro (exige) as suas entranhas para fazer ressoar a sua harpa (...), ao lobo o seu dente mais mortífero para polir as suas frívolas obras de arte, ao elefante as suas defesas para construir o brinquedo de uma criança: cobre a sua mesa de cadáveres (...). Mas quem (na carnificina permanente) exterminará aquele que extermina todos os outros? Ele próprio. É o homem o responsável pela chacina do homem (...). Assim se cumpre (...) a grande lei da destruição violenta dos seres vivos. A Terra inteira, perpetuamente embebida em sangue, nada mais é do que um imenso altar, sobre o qual tudo o que vive tem de ser imolado sem fim, sem medida, sem descanso, até à consumação das coisas, até à extinção do mal, até à morte da morte». (Este cenário faz-nos lembrar a mitologia asteca e o seu canibalismo ritualizado!)
A guerra é divina e, como tal, constitui a lei do mundo. Se quisermos compreender o comportamento humano, devemos abandonar as teorias racionalistas e procurar a sua explicação no domínio irracional. O cálculo racional não ajuda a vencer as guerras, ideia usada recentemente por Bauman para explicar o holocausto, porque a razão não é a grande soberana dos acontecimentos. Contra o racionalismo predominante no seu tempo, embora exibindo tonalidades diferentes mas francamente optimistas, Maistre defende três teses deveras obscurantistas e claramente antidemocráticas:
  1. A única coisa capaz de dominar sempre os homens é o «mistério impenetrável», que Maistre coloca no lugar da razão e do conhecimento emancipador.
  2. A única maneira de obrigar os homens a viverem em sociedade é impedi-los de questionarem: a ignorância é colocada no lugar da educação e da formação cultural.
  3. A única maneira de manter os homens silenciosos e em condições de não-liberdade é através do terror. Maistre é contra qualquer tipo de liberdade. Todo o poder depende do carrasco. Ele é o terror da sociedade humana e o elo que a mantém unida. Estranha e terrível noção de «contrato»! Não admira que Émile Faguet afirmasse que o cristianismo de Maistre era o «cristianismo de terror», colocado ao serviço da monarquia e da autoridade papal, contra a corrente emancipadora da História. Também Miguel Unamuno refere-se ao seu «matadouro», onde os homens se auto-imolam para fundar a sociedade, obedecer ao poder divino do monarca ou do papa e cumprir o seu desígnio divino oculto, ao serviço não deste mundo mas de outro mundo impenetrável.
Curiosamente, talvez por influência de Unamuno, Guerra Junqueiro fala frequentemente de «matadouro» para designar a vida social e política portuguesa. A verdade é que a visão desapaixonada da natureza e do homem de Maistre não pode ser facilmente descartada, embora o seu misticismo obscurantista possa ser anulado: a violência humana é evidente! Em termos contemporâneos, Maistre é um fascista extremamente reaccionário que aconselhava o terror como meio de dominar os homens e mantê-los ignorantes, passivos e submissos. A sua teoria opõe-se frontalmente à democracia e, de certo modo, mais ao menos disfarçada sob formas mais ténues de violência, continua a ameaçá-la de morte. A corrupção é uma versão moderada dessa teoria fascista que, sem recorrer ao terror evidente, cumpre os mesmos objectivos visados pelo poder tal como formulado por Maistre. As forças subterrâneas antidemocráticas ainda estão presentes nas nossas democracias ocidentais. Convém nunca esquecer isso, se não quisermos regressar à idade do Terror!
J Francisco Saraiva de Sousa

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