quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Socialismo e Políticas do Sentido

Hoje assisti ao programa da Quadratura do Círculo (7 de Novembro de 2007) e, durante o debate divertido entre Jorge Coelho, Pacheco Pereira e Lobo Xavier, sobre a situação do PSD, o debate parlamentar do orçamento de Estado e o problema dos pactos, surgiu-me esta ideia de escrever um post sobre o socialismo e as políticas do sentido. De facto, depois de Pacheco Pereira ter usado a expressão «social-democracia» entre aspas e de acusar a actual liderança bicéfala do PSD de não ser uma alternativa política ao PS, constatei que o que falta ao orçamento de Estado é, como disse no post «Orçamento de Estado e Sociedade de Risco», «uma perspectiva de futuro», precisamente aquilo que, segundo Ernst Bloch, define uma política verdadeiramente socialista. Independentemente da sua competência técnica e científica, não cabe ao Ministro das Finanças e de Estado, Teixeira dos Santos, apresentar essa perspectiva de futuro capaz de dar sentido ao conjunto das políticas do governo socialista. Essa tarefa deve ser assumida pelo Primeiro-Ministro, José Sócrates.
Apesar da minha erudição, sinto-me um pouco desconfortável em escrever sobre as políticas do sentido e apontar propostas ao Partido Socialista, até porque sou obrigado a recorrer a pensadores conservadores. Isto mostra que os partidos de Direita estão sempre já dotados de uma política espontânea do sentido, aquela que é protagonizada pelas Igrejas, enquanto os partidos de Esquerda negligenciaram terrivelmente o «cálculo do sentido», talvez porque tenham sido muito marcados por um «colectivismo» que, para todos os efeitos, não é de Marx.
Destes últimos partidos, o Partido Socialista é aquele que terá de elaborar uma política de sentido no âmbito de um Estado Laico e de uma sociedade democrática e pluralista, sem violar os princípios da liberdade e da justiça. E será nessa política do sentido que a Esquerda irá descobrir tudo aquilo que a distingue da Direita. A Esquerda encarna sempre o princípio da mudança qualitativa, enquanto a Direita se limita a defender o princípio de conservação da ordem de sentido instituída, mesmo que desfasada das novas realidades sociais e culturais do mundo global.
Escolhi como companheira de viagem a obra de Peter L. Berger, «Pyramids of Sacrifice: Political Ethics and Social Change», embora tenha em mente as obras de Alfred Schutz, H. Kellner, Thomas Luckmann, M. Heidegger, Charles Taylor ou Arnold Gehlen. A este propósito, a sua reflexão parte deste pressuposto:
«Os seres humanos têm direito a viver num mundo que tenha sentido para eles. O respeito deste direito é um imperativo moral para toda a política», seja ela de Direita ou de Esquerda.
Este pressuposto fenomenológico baseia-se na constituição do homem: todos os grupos humanos são fundamentalmente empresas de doação de sentido, isto é, dotam de sentido o universo, porque o sentido é o fenómeno central da vida social e nenhum aspecto desta pode ser compreendido sem uma investigação do problema do que é o que significa para aqueles que participam nela.
A necessidade de sentido tem, ao mesmo tempo, dimensões cognitivas e normativas: toda a sociedade proporciona aos seus membros um mapa cognitivo da realidade e, simultaneamente, uma moralidade aplicável à mesma. O primeiro permite-nos saber onde estamos e o segundo orienta-nos no que deve ser feito nessa localização concreta. Ora, nenhuma sociedade pode manter-se unida se os seus membros não partilharem um sistema global de sentidos. Como demonstrou Durkheim, o direito ao sentido é a protecção da anomia, entendida como caos, ausência de ordem, portanto de sentido.
Ora, a modernização introduziu alterações significativas neste domínio do sentido: nas sociedades pré-modernas, o direito ao sentido implica o direito do indivíduo orientar-se pela tradição; enquanto nas sociedades modernas, implica o direito do indivíduo a escolher os seus próprios sentidos. Isto significa que a modernização consiste, ao nível do sentido, em passar da aceitação do já dado (a tradição) à escolha. A modernização implica, portanto, a troca de uma existência determinada pelo destino por uma série longa de possibilidades de decisão, a chamada compulsão de escolha. As duas grandes instituições da sociedade moderna que promovem a passagem do destino para a compulsão da escolha são a economia de mercado e a democracia, ambas baseadas na escolha agregada de muitos indivíduos e estimuladoras da escolha constante.
Todo o mundo de sentido proporciona aos que habitam nele um refúgio contra a anomia, um lugar seguro. A modernização coloca a grave ameaça da falta de lar, fazendo dos indivíduos seres apátridas e, num sentido mais profundo, sem-abrigo (Rilke). A globalização acentua ainda mais esses efeitos da modernização e pode mesmo desorientar os indivíduos, agravando ou dificultando a formação da identidade pessoal e de um mínimo de identidade na interpretação da realidade, o que prejudica necessariamente a estabilização do sentido.
Dado que nenhum processo social pode ser bem sucedido se não for dotado de um sentido que o ilumine de dentro e dado que os indivíduos correm o sério risco de se perderem num mercado de sentido plural e sempre mutável, torna-se necessário, hoje mais do que nunca, uma abordagem «humanista» (no sentido clássico ocidental das humanidades) da política de desenvolvimento. Caso contrário, se os políticos recusarem resolver este problema do sentido, serão confrontados com duas reacções: a atitude fundamentalista, que pretende reconquistar toda a sociedade para os valores e tradições antigos, e a atitude relativista, que desiste de afirmar quaisquer valores e reservas de sentido comum. Os fundamentalistas partem para a acção e os relativistas ficam no discurso.
Ora, o socialismo deve defender as suas próprias políticas de sentido, olhando para a frente, portanto para o futuro, mas sem esquecer as promessas não realizadas do passado. Este último aspecto é fundamental para lidar com os fundamentalismos. Por isso, o Partido Socialista deveria ter outra política da educação, que não sobrevalorizasse as ciências e as tecnologias em detrimento das humanidades. O reforço das humanidades é fundamental para o futuro da democracia e da civilização Ocidental, não das humanidades que se ensinam actualmente, de resto degradadas e reduzidas a uma interminável «conversa de café», mas das humanidades dotadas de programas profundos, criativos e abertos ao futuro e ensinadas por professores competentes, de resto o problema número um da actual degradação do seu ensino. Sem esta dimensão humanística, o plano tecnológico carece de alma: pode produzir muitas coisas, menos cidadãos saudáveis, participativos e capazes de lutar pelo aprofundamento de uma sociedade cada vez mais livre, responsável, solidária e justa. Embora possa ser uma peça fundamental num mundo plural, multi-étnico e multicultural, a tolerância defendida por John Locke não é o único princípio capaz de fomentar o respeito pelas diferenças.
Mas o nosso objectivo não era elaborar um projecto de política socialista dos sentidos (plural e não monista, como o da Direita), mas simplesmente chamar a atenção para a sua necessidade histórica.
J Francisco Saraiva de Sousa

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