sábado, 3 de novembro de 2007

Sonhos Nocturnos e Sonhos Diurnos

Quando num post anterior analisámos brevemente o pensamento de Ernst Bloch, vimos que a utopia está no cerne da existência humana e que cabe à acção subjectiva interpretar e realizar as possibilidades utópicas «ainda-não-realizadas» do passado e remodelar as necessidades reprimidas da humanidade quando surgem no conjunto complexo dos produtos culturais através dos quais a história é entendida.
De facto, como deixámos bem claro, a ideia que preocupou Bloch é «o sonho de uma vida melhor». Mas não explicitámos o conceito blochiano de sonho que merece especial atenção, quer na sua estética, quer na sua ontologia do «ainda-não-existente» (noch-nicht-Seiende).
Neste âmbito, o conceito torna-se de difícil compreensão, mas, como pretendemos torná-lo acessível ao entendimento do comum dos mortais, diremos que «o sonho que olha para a frente» (der Traum nach Vorwärts) encarando o «modo como as coisas são» não é definido na filosofia de Bloch por uma regressão a fantasias infantis. Ao contrário de Freud, Bloch recusa concentrar-se no «sonho nocturno», cuja verdade emerge em lembranças do passado primordial ontogenético e filogenético ou no «não-mais-consciente». Bloch destaca preferencialmente o papel do «devaneio» («sonho diurno», sonhar acordado), com a sua projecção do «novo», o «ainda-não-consciente» e a sua vaga ligação com a situação em que se encontra o indivíduo. A esperança aparece no «devaneio» e a felicidade é vista «como a forma das coisas por vir». O devaneio, o sonhar acordado é capaz de superar as censuras do superego e, deste modo, conservar um núcleo utópico.
Esta ênfase na «consciência antecipadora», no «devaneio» e no «ainda-não-consciente» mostra claramente que o conceito de possibilidade não resulta somente da análise de determinadas condições de existência, mas constitui uma propriedade da «consciência pura». Bloch distancia-se de Heidegger e de Jean-Paul Sartre, bem como dos seus seguidores. Em Heidegger, a categoria central da experiência «autêntica» era a angústia. Mas, uma vez encontrada a possibilidade, a esperança é um modo de experiência tão legítimo quanto a angústia. Face a uma «possibilidade concreta», existe a esperança de que seja realizada e a angústia de que não seja realizada. E, como a morte é inevitável, Bloch conclui: A possibilidade real «não reside em qualquer ontologia acabada do ser daquilo que já é existente, mas sim na ontologia do ainda-não-existente, que é continuamente fundamentado cada vez que descobre o futuro no passado e em toda a natureza». Na sua obra sobre Hegel (Sujeito-Objecto: O Pensamento de Hegel), Bloch acentua constantemente que a sua ontologia não está acabada, mas aberta ao futuro: «o marxismo não está fechado», isto é, concluído.
Convém lembrar que Gaston Bachelard tratou da «poética do devaneio» e seria interessante confrontar a sua fenomenologia da imaginação poética com a fenomenologia da consciência antecipadora de Ernst Bloch: Que diferença!
J Francisco Saraiva de Sousa

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