sábado, 20 de dezembro de 2008

Feliz Natal


«Sobre pessoas que alcançaram altas posições, cerimónias, riqueza, cultura e coisas semelhantes;
«(Para mim tudo o que essas pessoas alcançaram, salvo o que se relaciona com os seus corpos e almas, se desmorona,
«Por isso, muitas vezes, para mim, me parecem descarnados e despidos,
«E muitas vezes, para mim, cada um troça dos outros, e faz troça de si mesmo ou de si mesma,
«E em cada um o âmago da vida, nomeadamente a felicidade, está cheio de excrementos putrefactos com larvas,
«E muitas vezes, para mim, esses homens e mulheres passam, sem o saber, pelas verdadeiras realidades da vida e avançam para as falsas realidades,
«E muitas vezes, para mim, estão vivos só para aquilo que os hábitos lhes deram e nada mais,
«E muitas vezes, para mim, parecem tristes, apressados, sonâmbulos ainda por despertar, caminhando nas trevas.)» (Walt Whitman)
Este pensamento de Walt Whitman retrata bem o perfil das pseudo-elites portuguesas, aquelas que construíram um Estado Corrupto e um país de atrasados mentais. Portugal é um asilo governado por feiticeiros néscios, loucos, feios, cinzentos, piratas e ladrões!
Feliz Natal!
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Meditação e Actividade Cerebral (III)

Apesar da Ilustração ter sido interpretada por Lessing, Kant, Fichte e Hegel, seguindo as teorias de Joaquim de Fiore, como a "terceira idade" e como a "época do Espírito", a filosofia contemporânea condenou paulatinamente o Espírito ao exílio. A pneumatologia foi denegrida a favor da ciência moderna e do materialismo que lhe é subjacente e, neste momento de obscuridade total, estamos completamente desarmados diante dos poderes terríveis do obscurantismo materialista em curso. O esquecimento do Espírito promoveu o advento de uma sociedade metabolicamente reduzida e degenerescente, diante da qual nos sentimos deprimidos, apáticos e impotentes. Sem o cultivo da vida do espírito, ficamos completamente integrados numa sociedade que nos nega a felicidade ou mesmo o futuro: a integração social total é o preço fatal que pagamos diariamente pelo esquecimento do espírito. O Espírito conduz os homens a iniciar uma "vida nova", fazendo deles os sujeitos da sua vida em comunhão com os outros e a natureza. O esquecimento do Espírito e a formalização da razão constituem aspectos de um mesmo processo: a destruição da individualidade. O homem moderno "decide" cuidar de si mesmo e, a partir do momento em que se retira da participação responsável nos assuntos da esfera pública, a sociedade esmaga todos os vestígios da individualidade, levando os seus indivíduos a sentir que só existe um meio de progredir neste miserável mundo: desistir da esperança de autorealização plena e ajustar-se ao processo social em curso. O sistema da indústria cultural suga, neutralizando-os, os valores culturais, e glorifica o mundo tal como ele é e como deve ser e será. O resultado é a resignação: a mente fecha-se ao sonho de um mundo melhor e os conceitos tornam-se meras classificações de factos, em vez de serem orientados para a realização dos sonhos de um mundo diferente.
O conceito de meditação pode ser clarificado nas suas relações com a acção instrumental, a contemplação e a mística. A meditação é um modo de percepção e de pensamento que exercitamos continuamente na nossa vida quotidiana, embora a maior parte das pessoas não lhe preste muita atenção ou lhe dedique muito do seu tempo, como se não tivessem tempo para interiorizar as coisas e, sobretudo, para interiorizar o seu próprio eu. Ao contrário do que se diz, o pensar não é uma "prerrogativa da minoria", mas uma faculdade sempre presente em todos os seres humanos. E, como mostrou Hannah Arendt, a incapacidade de pensar não é um "defeito da maioria" que tem falta de capacidade cerebral, mas uma possibilidade sempre presente para todos, cientistas, eruditos e outros especialistas em empreendimentos mentais. A incapacidade de pensar, a burocracia e a banalização do mal são facetas de uma única realidade: a estagnação espiritual.
Meditação e Acção Instrumental. A meditação foi desencorajada, reprimida e eclipsada pelo pragmatismo moderno, cujo "ataque à meditação quanto o louvor da perícia técnica expressam o triunfo dos meios sobre os fins" (Horkheimer). A sociedade moderna proclama a eficácia, a produtividade e a planificação como os deuses do homem moderno, ao mesmo tempo que estigmatiza os chamados "improdutivos" e "inactivos" como os inimigos da sociedade. A meditação é considerada como uma espécie de vício, não só porque parece ser algo especulativo e distante da realidade, mas também porque parece não assegurar um desempenho adequado numa actividade lucrativa. No entanto, os burocratas de colarinho-branco começam a encarar a meditação como um desporto útil e necessário para encontrar um equilíbrio anímico, mostrando-se receptivos à venda de técnicas de Yoga para aumentar a eficiência e os resultados. A comercialização destas técnicas adulteradas de Yoga aniquila a essência da meditação, sem permitir alcançar a tranquilidade e encontrar-se a si mesmo. A mente de engenheiro predominante sempre-já transformou os homens num conjunto opaco de instrumentos sem objectivos próprios. O decréscimo contínuo do pensamento e da resistência individual torna a evolução para o humano cada vez mais difícil: quer sejam empresários, gestores, eruditos ou subordinados, todos os indivíduos estão submetidos pelo próprio poder que controlam e, apesar de estarem em movimento, nada se transforma. A cultura superior foi completamente colonizada pelo sistema económico capitalista: a clivagem que existia entre cultura e produção/consumo foi anulada. A cultura perdeu a sua autonomia.
Os filósofos gregos, os Padres da Igreja e os monges compreendiam as coisas com os olhos, ou seja, teorizavam (theorein), no sentido literal do termo. Porém, hoje em dia, as pessoas conhecem com as mãos. O primeiro modo de conhecer é uma espécie de acto de amor que cria comunhão, enquanto o segundo modo de conhecer resulta do poder e cria dominação. Para a ciência moderna, conhecer algo é dominá-lo. Francis Bacon foi o primeiro filósofo a afirmar que "saber é dominar". Isto significa que nos apoderamos dos objectos para nos convertermos nos "senhores e possuidores da natureza" (Descartes). Segundo Kant, a razão só conhece a natureza "de acordo com o que nela pôs". Ao contrário da meditação que é uma forma de percepção sensível, um modo de receber, de acolher e de participar, a razão é um órgão produtivo. A ciência moderna, fundada por Galileu, Descartes e Newton, move-se num horizonte instrumental, graças ao qual pode ser perspectivada como «uma tecnologia a priori e o a priori de uma tecnologia específica – uma tecnologia como forma de controle social e de dominação» (Marcuse). Nas sociedades modernas, a dominação converteu-se no interesse que guia o conhecimento das ciências da natureza, bem como das ciências sociais e humanas. O interesse do domínio molda o conhecimento científico, não só na sua aplicação técnica, mas até mesmo nos seus princípios metodológicos fundamentais. O método de análise e de objectivação dos sistemas naturais e sociais é usado para os submeter aos imperativos do crescimento económico e do controle social da sociedade burocrática. O homem divide para imperar e, através deste método, contrapõe-se à natureza como o seu sujeito, isto é, como o seu senhor e proprietário. Converte-se em sujeito exclusivo do conhecimento e da vontade. A subjectivação da racionalidade implica necessariamente a coisificação e a instrumentalização do meio natural: a devastação da Terra.
A dominação da natureza persegue o homem desde, provavelmente, as suas origens filogenéticas mais remotas, mas, como demonstrou Heidegger, coube a Descartes tematizar este horizonte instrumental. Com efeito, na metafísica de Descartes, o ente é determinado, pela primeira vez, como objectividade da representação e a verdade como certeza da representação. Segundo Descartes, o ente é o que é certo: aquilo de que temos uma ideia clara e distinta. A realidade da coisa é a certeza indubitável que o sujeito dela tem. Descartes usa a palavra sujeito para designar, não a substância de um ente qualquer, mas o eu do homem, o qual se converte-se no fundamento absoluto e indubitável da realidade. O ser das coisas, que só é reconhecido como ser na medida em que é certo, deve ser legitimado perante o eu. A noção de objectividade é sempre correlativa ao sujeito. A realidade objectiva é aquela que se mostra e se demonstra como tal ao sujeito: o que a constitui é precisamente a certeza que o sujeito dela tem. Esta identificação do ser das coisas com a certeza de que o eu dele tem é realizada efectivamente, nos Tempos Modernos, pela tecnificação do mundo. Dado ser cada vez um produto técnico, o mundo é, no seu próprio ser, produto do homem. A ciência moderna implica a redução do ser verdadeiro à objectividade. Como resultado que se obtém no laboratório do cientista, a objectividade é um produto da actividade do sujeito. A redução cartesiana do ser verdadeiro à certeza é, no fundo, a redução do ser à vontade do sujeito, a qual culmina com a vontade de poder de Nietzsche. Concebido como vontade, o eu reduz a totalidade do ente a si mesmo, ou, como diz Heidegger, o eu toma posse da totalidade do ente. Mas, como afirma Heidegger, «o próprio facto de que o homem se torne sujeito e o mundo objecto mais não é que uma consequência da essência da técnica em vias de se instalar, e não inversamente». Ao concretizar-se efectivamente como ordem do mundo, a técnica abole toda a diferença ontológica. Do ser já nada resta: apenas ficaram os entes, cujo ser é total e exclusivamente o ser imposto pela vontade do homem produtor e organizador. A técnica e a instrumentalização total do mundo é, para Heidegger, a metafísica cumprida: o esquecimento total do ser. A redução do ser verdadeiro à vontade do sujeito tem o carácter de uma tomada de posse. A conquista do mundo enquanto imagem concebida coincide inteiramente com a sua exploração técnica. Ao reduzir o ser à certeza, Descartes converteu a natureza num ser objectivo, susceptível de ser instrumentalizado. Nesta perspectiva, a filosofia da natureza de Descartes mais não é do que uma lógica da dominação, fundada numa concepção instrumental da natureza e da racionalidade científica.
Da comparação destes dois modos de conhecer resulta a ideia de que os homens modernos precisam descobrir um equilíbrio entre a vita activa e a vita contemplativa, de modo a evitar a atrofia da sua alma. O modo pragmático de conhecer revela os seus limites no trato com os outros homens, na relação do homem com o meio ambiente natural e, sobretudo, na relação do homem consigo mesmo. O homem moderno está descontente consigo mesmo e, como não se suporta, não consegue viver sozinho. A solidão é uma tortura, o silêncio é insuportável, a vida isolada é uma espécie de "morte social", e a desilusão constitui uma tortura que deve ser evitada. O refúgio na manada reflecte a debilidade do eu: o indivíduo que foge de si mesmo não pode ajudar os outros e, na sua inércia, contagia-os com a sua doença, o seu desespero, a sua angústia agressiva e as suas ideias povoadas de preconceitos. O vazio amplia-se. Um tal eu débil representa o oposto da alma mística. As virtudes do místico são torturas para a mente débil: o alheamento, a solidão, o silêncio, o afastamento, o vazio interior, o despojamento, a pobreza, o repouso mental, a pureza, o ascetismo, a mortificação, a caridade ou mesmo a douta ignorância. O eu débil e a alma mística representam duas atitudes diametralmente opostas diante da pobreza: o místico procura uma vida baseada no ser, enquanto o indivíduo débil procura compensar a sua doença com uma vida baseada no facto de possuir. A vida fundada no ter é menos livre do que a vida baseada no ser ou mesmo no fazer. Os homens que são renunciam aos bens e às propriedades e, no seu desejo de não ter, revela-se o mistério fundamental da experiência religiosa: a satisfação encontrada no abandono absoluto a um poder superior. Os homens que têm identificam a sua essência com as suas propriedades e a sua cobardia revela-se em cada euro que guardam sofregamente.
Meditação, Contemplação e Mística. De acordo com a teologia da experiência mística, não há meditação sem contemplação nem contemplação sem meditação. A iluminação mística como forma mais excelsa de um estado de ânimo só pode ser alcançada mediante uma actividade sistemática de natureza especial: a contemplação que requer sempre a eliminação dos interesses quotidianos. O misticismo pode ser definido, em termos muito genéricos, como a atitude religiosa em que o homem visa a união com as forças ou os seres sagrados. Em termos exclusivamente ocidentais, a mística tem sido entendida como unio mystica, isto é, o momento da plenitude, o êxtase da unificação, a "imersão da alma no mar infinito da divindade", o "nascimento de Deus na alma", a "metódica elevação da alma a Deus", como a descrevem os próprios místicos. A oração permite atingir os níveis mais elevados da experiência mística. A sua prática permite desde logo o desprendimento da mente de sensações externas que possam interferir na sua concentração em coisas ideais: Santo Inácio recomenda aos discípulos que expulsem todo o tipo de sensações através de uma série gradativa de esforços e exercícios espirituais para imaginar cenas sagradas. Este tipo de disciplina culmina numa espécie de monoideísmo semi-alucinatório: a figura imaginária de Cristo ocupa inteiramente a mente. Porém, nos casos mais elevados de rapto, as imagens podem desaparecer completamente. O estado de consciência deixa de poder ser descrito verbalmente. A união do amor é alcançada pelo "contemplação escura" (São João da Cruz) e, nesta união, Deus penetra a alma de um modo tão oculto que ela "não encontra termos" para traduzir "a sublimidade da sabedoria e a delicadeza do sentimento espiritual de que está cheia". Santa Teresa afirma que, na oração de união, "a alma está plenamente desperta no que diz respeito a Deus, mas inteiramente adormecida no que se refere a este mundo e a si mesma". Durante este estado de consciência, o místico experiencia uma "felicidade indizível": o deleite é de tal modo subtil e penetrante que não pode ser descrito pelas palavras da linguagem ordinária. As barreiras entre o indivíduo e Deus são superadas: o indivíduo é absorvido em Deus, tornando-se apenas um com Ele. Os estados místicos são janelas através das quais a mente olha para um mundo mais extenso e abrangente. A sua existência derruba a pretensão de que os estados de consciência não-místicos sejam os únicos a ditar o que podemos acreditar. Embora não tenham autoridade intrínseca, eles falam da supremacia do ideal, da vastidão, da união, da segurança e do repouso. A sabedoria mística não é sabedoria doutrinária, mas sabedoria experiencial, sapientia experimentalis. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Prós e Contras: O que vem aí?

O debate de Prós e Contras (15 de Dezembro de 2008) foi dedicado à actual crise financeira e económica e, entre os seus convidados, destaco as participações de Dom José Policarpo, e Luís Campos e Cunha (economista), além de Walter Oswald (moral), Carlos Fiolhais (físico) e Rui Pena Pires (sociólogo). Desta vez, Fátima Campos Ferreira procurou dar voz a outras pessoas que não são economistas e o próprio Luís Campos e Cunha frisou a necessidade de introduzir o ensino da "verdadeira" Filosofia nas escolas para evitar a ingenuidade das abordagens ditas técnicas que confundem o modelo com a realidade, referindo o papel fundamental da teoria do conhecimento na estruturação de uma atitude crítica e prudencial diante da sociedade estabelecida e dos projectos de mudança social.
Devo dizer que a análise feita por Dom José Policarpo aproxima-se muito das análises que tenho feito neste blogue a propósito da crise financeira, sobre a qual falei muito tempo antes deste assunto entrar na agenda política portuguesa. Quem está minimamente atento ao que se passa no mundo e deseja lutar por uma sociedade mais justa encontra facilmente informação disponível on-line sobre a actual crise financeira cujas peripécias recuam aos anos anteriores a 2007, quando foi datada oficialmente. E, como sempre defendi neste blogue, esta crise coloca em questão o capitalismo, a globalização e a corrupção. Dom José Policarpo considera que a crise é uma crise do modelo e não uma mera crise dentro do modelo. Por isso, pôde defender a ideia de que esta crise pode vir a ser uma "revolução", no sentido de levar toda a "sociedade civil" (e não unicamente as chamadas "classes médias") a repensar um novo futuro para Portugal e o Ocidente. Neste sentido, como já tenho dito, a actual crise do capitalismo permite repensar criticamente o actual modelo de sociedade vigente, precisamente aquele que foi implementado pelo neoliberalismo a partir dos anos 80, e substituí-lo por um novo modelo capaz de melhorar o futuro da humanidade e de fazer face aos novos desafios do mundo global. Isto significa que a crise financeira e económica é a crise do modelo económico vigente e, como lembrou Walter Oswald, da sociedade de consumo que leva as pessoas a recorrer a empréstimos, portanto, a endividarem-se, para satisfazer necessidades supérfluas enquadradas num estilo de vida metabolicamente reduzido. Contudo, a crítica moral do modelo predominante é insuficiente para ajudar a melhorar o mundo, na medida em que a moral irrompe sempre-já num mundo decadente e corrupto que a usa como justificação ideológica das misérias e das desigualdades. A crítica só é produtiva quando os seus conceitos negativos são trasladados e realizados pela praxis política, não só a praxis dos lideres políticos, mas também a praxis de toda a sociedade civil. A crise da educação e o poder irracional dos mass media minaram e continuam a minar a dialéctica da libertação. É preciso dizer que os mass media "moldam" a chamada opinião pública à custa da perda da experiência e do bom senso. Em Portugal, a comunicação social é um cancro maligno. As personagens que se exibem nos ecrãs da televisão ou nas folhas da imprensa carecem das qualidades necessárias referidas por Dom José Policarpo para o exercício do poder político e público: competência, sentido de serviço e sabedoria, completamente distinta da racionalidade instrumental científica. São personagens degradantes, corruptas e de inteligência reduzida, a personificação da vulgaridade que, em Portugal, raptou as esferas do poder, perseguindo a inteligência criativa. Esta mediocridade humana, profundamente ladra e invejosa, instalou-se na sociedade portuguesa e, se não for afastada das posições que raptaram paulatinamente depois do 25 de Abril, Portugal continuará a ser indefinidamente um país adiado. As pseudo-elites portuguesas nunca estiveram ao serviço do bem público. A actual crise financeira revela a crise do elemento humano português e da sua anti-cidadania.
Carlos Fiolhais defendeu um optimismo pseudo-científico exagerado, tendo sido acompanhado pelos convidados da plateia que vêem nesta crise a oportunidade para repetir os "mesmos erros", tais como "ensinar e gerir talentos", os "direitos humanos", o papel da ONU, o multiculturalismo ou a "igualdade", que conduziram à presente situação de miséria e de decadência, portanto, uma oportunidade de conquistar um lugar ao sol, tal como o fizeram os gestores corruptos. O optimismo é uma patologia da alma, pelo simples facto de levar as pessoas a afastar do seu horizonte de visão e de compreensão a miséria humana. Conquistar Marte não é expandir a humanidade: a expansão espacial não implica necessariamente a expansão espiritual ou cultural, como observou discretamente Dom José Policarpo, além da ciência por si só não poder garantir um futuro melhor, a menos que seja inserida numa dimensão cultural mais vasta capaz de orientar a humanidade. A expansão espiritual do Ocidente exige uma renúncia ao mundo: a crise possibilita a emergência dessa renúncia, pelo menos no espírito das pessoas que precisam nascer duas vezes para se reconciliarem com o mundo. Só uma mente pessimista pode nascer duas vezes e, deste modo, opor-se às chamadas "mentes equilibradas" que nasceram uma única vez, apropriando-se e instalando-se no mundo que controlam em função dos seus interesses particulares, sem levar em conta o "bem público". O optimismo, sobretudo o optimismo tecnológico, nega o lado negro da existência: o mal é sistematicamente negado, como se não existisse, e, por isso, nada se faz para o eliminar. O optimismo é, em última análise, justificação ideológica das desigualdades sociais, da injustiça, do sofrimento e da miséria humana. O pessimismo metódico é a única atitude adequada à tarefa da libertação: o homo consumens precisa morrer para uma vida irreal, aquela que vive no âmbito de uma sociedade de consumo, idolatrada pela ideologia perversa difundida pelos mass media, a fim de nascer para uma nova vida real. Isto significa que, sem contracção material, não pode haver expansão espiritual. A alma ocidental só pode ser reanimada pela prática da ascese: a renúncia do mundo irreal e irracional em que vivemos e que ameaça a saúde de Gaia.
Controlar a todo o custo os efeitos negativos produzidos pela crise financeira na economia real pode significar perder a oportunidade de criar um mundo firme, estável e equilibrado, a partir do actual momento de tempestade, tensão e incoerência: a actual crise financeira ajuda a clarificar os erros viscerais do modelo de sociedade vigente e, se o Estado fizer intervenções irracionais para suavizar os seus efeitos, em especial na bolsa dos corruptos e dos "muito ricos", perde a oportunidade de nascer uma segunda vez. Este segundo nascimento só pode ser alcançado através da renúncia sistemática do modelo económico neoliberal e da sociedade de consumo, bem como de uma concepção "gorda" do Estado. Só o horror mortal que podemos experienciar diante dos efeitos nefastos desta crise constitui a reacção adequada à situação: o sofrimento redime, libertando-nos desta agonia impotente. É preciso lutar com todas as armas por um "mundo melhor". O optimismo é inadequado como teoria filosófica, porque os factos maus que rejeita constituem uma porção genuína da realidade e talvez a chave adequada para o sentido da vida e os únicos despertadores capazes de abrir os nossos olhos para os níveis mais profundos e elevados da verdade. O que vem aí só pode ser redimido e exorcizado por um olhar pessimista, o único que garante a esperança.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 7 de dezembro de 2008

Meditação e Actividade Cerebral (II)

A Substância (prakrti). A substância é tão real e eterna como o espírito, embora seja dinâmica e criadora. Esta substância homogénea primordial possui três modos de ser que lhe permitem manifestar-se de três maneiras diferentes, as chamadas gunas: 1) sattva que é a modalidade da luminosidade e da inteligência, 2) rajas que é a modalidade da energia motora e da actividade mental, e 3) tamas que é a modalidade da inércia e da obscuridade psico-mental. As gunas possuem um duplo-aspecto: um objectivo, uma vez que constituem os fenómenos do mundo exterior, e outro subjectivo, uma vez que sustentam, alimentam e condicionam a vida psico-mental. Após sair do seu estado inicial de equilíbrio perfeito e assumir especificações condicionadas pelo seu instinto teleológico, a substância (prakrti) manidesta-se sob a forma de uma massa energética denominada mahat, "o Grande". O impulso interior de desenvolvimento (parinâma) força-a a passar do estado de mahat para o estado de ahamhâra: massa unitária aperceptiva, desprovida ainda de consciência "pessoal", mas com a consciência obscura de ser um ego (aham). Nesta etapa, o processo de evolução bifurca-se em duas direcções opostas: uma conduz ao mundo dos fenómenos objectivos, a outra leva ao mundo dos fenómenos subjectivos.
O universo mais não é do que a evolução de uma etapa inicial da natureza (ahamkâra), aquela em que pela primeira vez da massa homogénea e energética surge a consciência da individualidade, levando-a, através de um duplo processo de desenvolvimento e de criação, a criar um duplo mundo, o interior e o exterior, ligados entre si por correspondências electivas. Isto significa que os fenómenos objectivos e os fenómenos psico-fisiológicos têm uma matriz comum: a substância primordial, informe e eternamente imóvel. O que os separa é a fórmula dos gunas: o sattva predomina nos fenómenos psico-mentais, o rajas, nos fenómenos psico-fisiológicos, e o tamas, nos fenómenos do mundo material. Toda a experiência psíquica é vista pelo Sâmkhya-Yoga como um simples processo "material". A simpatia orgânica entre o homem e o cosmos é garantida pelos gunas que impregnam todo o universo. A criação de formas infinitas, cada vez mais compostas e variadas, exige uma justificação e um sentido exteriores ao próprio universo. Este sentido revela-se no carácter teleológico da criação: a sua missão é servir o espírito e, fora dessa missão, o cosmos carece de sentido. Isto significa que tudo na natureza tem um "superintendente", que não é a actividade mental e os seus estados de consciência, mas o próprio espírito. Dinamizada pelo instinto teleológico, a prakrti está inteiramente voltada para a libertação do purusa: a criação existe em proveito do espírito. Embora não tenha explicado a razão e a origem da estranha associação entre o espírito e os estados de consciência, a filosofia indiana explica a natureza da sua associação: a inteligência (buddhi) na sua forma de pura luminosidade tem a qualidade específica de reflectir o espírito, sem alterar o ego ou fazê-lo perder as suas modalidades ontológicas.
Técnicas de Ascese e Métodos de Meditação. «O Yoga inicia-se onde acaba o Sâmkhya» (Mircea Eliade). Segundo Patañjali, o conhecimento metafísico não conduz o homem à libertação: apenas prepara o terreno para a conquista da liberdade que deverá ser obtida mediante uma técnica ascética e um método de meditação. Para Patañjali, o Yoga é "a supressão dos estados de consciência" que fazem parte de três categorias. Estas categorias correspondem a três possibilidades de experiência: 1) os erros e as ilusões, 2) a totalidade das experiências psicológicas normais, e 3) as experiências para-psicológicas desencadeadas pela técnica do Yoga e acessíveis apenas aos iniciados. O objectivo do Yoga clássico é abolir as duas primeiras categorias de experiências e substituí-las por uma experiência enstática (samâdhi), supra-sensorial e extra-racional. Isto significa que o Yoga tem como tarefa a destruição dos estados de consciência através do seu "conhecimento experimental": os turbilhões de consciência (cittavrtti) só podem ser controlados e destruídos através da sua experimentação. A experiência garante o acesso pleno à liberdade e à condição paradoxal do "liberto em vida". A eliminação da ignorância não é suficiente para destruir ou eliminar os estados de consciência, porque existem no subconsciente imensas reservas de latências (vâsanâ) prontas a emergir. A sua destruição exige a ruptura do circuito subconsciente/consciência.
O ponto de partida da meditação yóguica é a "concentração num único objecto" (ekâgratâ), o qual pode ser um objecto físico, um pensamento ou Deus. Este exercício ekâgratâ procura controlar as duas fontes geradoras da fluidez mental, a actividade sensorial e a actividade do subconsciente, através da execução de exercícios espirituais e de práticas psico-fisiológicas (anga). Os anga constituem etapas do itinerário ascético e espiritual que visa a libertação final e compreendem (1) as obrigações (yama), (2) as restrições (niyama), (3) as posturas do corpo (âsana), (4) o controle da respiração (prânâyâma), (5) a emancipação da actividade sensorial em relação à influência dos objectos exteriores (pratyâhâra), (6) a concentração (dhâranâ), (7) a contemplação yóguica (dhyâna) e (8) o entase (samâdhi).
Embora sejam necessárias como práticas ascéticas preliminares, as obrigações ("não matar", "não mentir", "não roubar", "abstinência sexual" e "não ser avarento") e as restrições (o asseio, a serenidade, a ascese, o estudo da metafísica yoga e o esforço para fazer de Deus o motivo de todas as suas acções) não proporcionam um estado yóguico: proporcionam apenas um estado "purificado", superior ao dos homens profanos. A técnica Yoga começa com a prática da âsana: a postura yóguica definida como "estável e agradável". O yogui procura manter o corpo sem esforço na mesma posição. A âsana possibilita abolir as modalidades específicas da existência humana e, ao nível corporal, é uma concentração num só ponto (ekâgratâ), o corpo concentrado numa só posição, de modo a abolir a mobilidade e a disponibilidade do corpo. Se a âsana recusa o movimento, reduzindo as posições corporais possíveis a uma só postura, imóvel e hierática, o prânâyâma ou disciplina da respiração é a recusa a respirar como um homem comum. A arritmia e a variação da respiração comum produzem fluidez psíquica e, portanto, instabilidade e dispersão da atenção. O yogui procura suprimir o esforço respiratório, tornando a respiração rítmica e "automática", de modo a poder esquecê-la e a "penetrar" certos estados de consciência, nomeadamente os que caracterizam o sono, geralmente inacessíveis no estado de vigília. Através do prânâyama que lhe permite prolongar cada vez mais a expiração e a inspiração, bem como conservar o ar, o yogui passa sem descontinuidade da consciência do estado da vigília para as outras modalidades de consciência reconhecidas pela "psicologia indiana": a consciência diurna, a consciência do sono com sonhos, a consciência do sono sem sonhos e a consciência "cataléptica" (turîya), cada uma das quais está relacionada com um ritmo respiratório específico, o qual é mais lento no homem adormecido do que no homem acordado.
A âsana, o prânâyâma e a ekâgratâ suspendem a condição humana durante o tempo que o exercício leva para ser realizado: "Imóvel, ritmando a sua respiração, fixando o olhar e a atenção num só ponto, o yogui está «concentrado», «unificado»" (Eliade) e pode verificar a qualidade da sua concentração pelo prâtyâhâra. O retraimento dos sentidos (ou a abstracção) mais não é do que a faculdade de libertar a actividade sensorial da influência dos objectos exteriores. Nesta última fase da ascese psico-fisiológica em que os sentidos, em vez de se dirigirem para os objectos, "permanecem em si mesmos", o yogui já não será distraído ou perturbado pela actividade sensorial e pelas faculdades psico-mentais e, por conseguinte, pode praticar a concentração (dhâranâ) e a meditação. Patañjali define a dhyâna ou meditação yóguica como "uma corrente de pensamento unificado" ou, como comenta Vyâsa, "um continuum do esforço mental para assimilar o objecto da meditação, livre de qualquer outro esforço por assimilar outros objectos". A meditação yóguica distingue-se completamente da meditação profana, pelo facto de permitir "penetrar" os objectos e assimilá-los magicamente. O Deus (Isvara) da filosofia Yoga não é um criador, objecto de devoção ou de , mas o arquétipo do iogui, cuja essência "sempre livre" pode apressar a tarefa da libertação, colaborando com o eu que quer libertar-se das redes ilusórias da existência através do Yoga.
O resultado final e o coroamento destes esforços e exercícios espirituais do asceta é o samâdhi ou, na tradução de Mircea Eliade, a enstase yóguica: o estado contemplativo em que o pensamento apreende imediatamente a forma do objecto, sem o auxílio das categorias e da imaginação. Isto significa que o objecto já não é apreendido como fenómeno, mas "como se estivesse vazio de si mesmo": o objecto revela-se "em si mesmo" (svarûpa), no que tem de essencial e "como se estivesse vazio de si mesmo". Deste modo, o conhecimento do objecto e o objecto do conhecimento coincidem. Contudo, o samâdhi é mais do que conhecimento, na medida em que é fundamentalmente um estado ou uma modalidade enstática ióguica que torna possível a auto-revelação do eu. Existem duas «modalidades» de enstase: a diferenciada, "com apoio" (samprajñâta samâdhi), e a indiferenciada (asamprajñâta). A enstase diferenciada é obtida através do fixar do pensamento num ponto do espaço ou numa ideia e constitui um meio de libertação, já que torna possível a compreensão da verdade e põe termo ao sofrimento. A enstase indiferenciada é obtida fora de qualquer relação, sendo simplesmente uma plena compreensão do ser, que, além de destruir as impressões (samskâra) de todas as funções mentais antecedentes, consegue deter as forças kármicas desencadeadas pela actividade passada do yogui. Dado compreender diversas etapas, a enstase diferenciada pode ser substancialmente melhorada e aperfeiçoada graças a certo conhecimento. No samâdhi, a ruptura de nível, isto é, a passagem do conhecer ao ser, permite ao yogui adquirir os "poderes milagrosos", quer em relação aos objectos experimentados, quer em relação às suas existências anteriores, porque tudo o que é meditado é assimilado e possuído. Porém, se quiser alcançar a liberdade suprema ou absoluta, o yogui deve renunciar a estes "poderes extraordinários" e às tentações divinas que lhe permitem obter o domínio dos elementos e participar da condição divina.
A passagem do samprajñâta para o asamprajñâta samâdhi é obtida espontaneamente através da iluminação ou sabedoria (prajñâ) quando o yogui realiza o "isolamento absoluto" (kâivalya), isto é, a libertação do purusa do império da prakrti. Esta maneira de ser espírito refere-se à ausência total de objectos na consciência: a consciência não está esvaziada de todo o conteúdo, mas saturada por uma intuição directa e total do ser. A cessação definitiva de toda a experiência psico-mental (nirodha) constitui, segundo Madhava, o suporte de uma condição particular do espírito: a enstase da vacuidade total, o estado incondicionado que já não é uma experiência, mas uma revelação. Depois de ter cumprido a sua missão, o intelecto (buddhi) retira-se, destacando-se do espírito, e reintegra-se na prakrti. O espírito liberta-se e o yogui é um "liberto em vida" (jîvan-mukta) que vive num eterno presente, "no nunc stans pelo qual Boécio definia a eternidade" (Eliade), para além do domínio do tempo. Porém, como observou correctamente Mircea Eliade, esta situação do ser "liberto em vida" é uma situação paradoxal: primeiro, porque está em vida e, no entanto, encontra-se já liberto; segundo, porque tem um corpo e, no entanto, conhece-se a si mesmo, sendo por isso um purusa (espírito); e terceiro, porque vive na duração e, ao mesmo tempo, participa da imortalidade. O samâdhi é um estado/conhecimento paradoxal, porque esvazia e, ao mesmo tempo, enche o ser e o pensamento, transcendendo os contrários (coincidência dos contrários) e reintegrando as diferentes modalidades do real na não-dualidade primordial, a plenitude não diferenciada anterior à bipartição do real em objecto/sujeito, enriquecida pelo conhecimento da unidade e da beatitude, isto é, pelas dimensões da liberdade e da trans-consciência. A dimensão espiritual da liberdade é inserida nos modos cegos e tristemente condicionados do cosmos e da vida. (CONTINUA)

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 6 de dezembro de 2008

Meditação e Actividade Cerebral (I)

A espiritualidade indiana pode ser clarificada mediante quatro conceitos fundamentais e solidários: Karman, Mâyâ, Nirvâna e Yoga. Conforme demonstrou Mircea Eliade, a Índia procurou compreender, desde a época pós-védica, (1) a lei da causalidade universal ou lei do karman, que solidariza o homem com o universo, condenando-o a transmigrar indefinidamente; (2) a ilusão cósmica ou mâyâ, o processo misterioso que engendra e sustém o cosmos e que, ao proceder assim, torna possível o eterno retorno das existências, ilusão apoiada e valorizada pelo homem profano mergulhado na nesciência (avidyâ), a confusão entre o espírito e a actividade psico-mental; (3) a realidade absoluta, o Si (âtman), Brahman, o incondicionado, o transcendente, o imortal, o indestrutível ou nirvâna, «situada» em alguma parte, mais além da ilusão cósmica criada por mâyâ e da experiência humana condicionada por karman; e (4) os meios para alcançar o Ser ou as técnicas adequadas para conquistar a libertação (moksa, mukti) que constituem propriamente o Yoga.
O pensamento indiano encara a verdade como algo valioso, não em si mesmo, mas em virtude da sua função soteriológica: o conhecimento da verdade é valorizado enquanto ajuda o homem a libertar-se, isto é, a conquistar outro modo de ser que transcende a condição humana submetida à lei do karman. A posse da verdade não constitui o objectivo supremo do sábio hindu, mas o meio ou o caminho que lhe permite conquistar a liberdade absoluta. Por isso, no pensamento hindu, o conhecimento metafísico é traduzido em termos de ruptura e morte, portanto, em termos de iniciação: a busca da verdade, sob a orientação e a direcção de um mestre, o guru, possibilita ao yogui romper com a condição humana, portanto, morrer para tudo o que é humano, e, ao mesmo tempo, re-nascer para um modo de ser não condicionado, a libertação da nesciência (ignorância) e do sofrimento.
Filosofia Yoga (yoga-darsana). A palavra yoga possui muitos significados na literatura hindu, mas o mais preciso é aquele exposto por Patañjali nos seus tratados Yoga-Sûtras, onde recolhe e publica as tradições doutrinárias e técnicas do Yoga. Um darsana não é evidentemente um sistema filosófico no sentido ocidental, mas um conjunto de afirmações coerentes que procuram interpretar a experiência humana no seu conjunto e que têm por finalidade "libertar o homem da ignorância". O Yoga é um dos seis "sistemas filosóficos" hindus ortodoxos, isto é, tolerados pelo brahamanismo (ou bramanismo), e é este Yoga clássico, formulado por Patañjali e interpretado pelos comentadores, que iremos expor, levando em conta a doutrina do mais antigo darsana hindu, Sâmkhya-Yoga. Aliás, estes dois tratados sistemáticos distinguem-se em dois aspectos básicos: 1) o Sâmkhya clássico é ateu, enquanto o Yoga é teísta, no sentido de postular a existência de um Senhor (Isvara); e 2) o Sâmkhya considera que o único caminho para alcançar a libertação é o do conhecimento metafísico, enquanto o Yoga atribui muita importância às técnicas da meditação. Apesar destas duas diferenças e de outras menores, as doutrinas Sâmkhya podem ser consideradas válidas para as estruturas teóricas dos Yoga-sûtras.
O Mundo é Sofrimento. Patañjali proclama o sofrimento universal, no qual as técnicas soteriológicas e as doutrinas metafísicas encontram a sua razão de ser: toda a experiência humana gera e engendra o sofrimento. No entanto, a concepção indiana da dor universal não conduz a uma "filosofia pessimista" e ao desespero, porque a sua revelação constitui a condição sine qua non da emancipação. Como diz Isvara Krishna, o desejo do homem que está na base desta filosofia é o desejo de escapar à tortura dos três sofrimentos, nomeadamente da miséria celeste provocada pelos deuses, da miséria terrestre desencadeada pela natureza e da miséria interior ou orgânica. O sofrimento universal leva o sábio e o asceta a recordar que o único meio que possuem para atingir a liberdade e a beatitude é retirar-se do mundo, desprender-se dos bens e das ambições e isolar-se radicalmente do mundo. O homem não é o único ser que sofre, porque a dor é uma modalidade cósmica e ontológica que condena todas as formas orgânicas que perduram no tempo ao sofrimento. Existir no tempo e ter duração implicam a dor. Porém, ao contrário dos deuses e dos outros seres vivos, o homem é o único ser que tem a possibilidade de recusar efectivamente a sua condição e abolir o sofrimento. O homem pode anular as forças kármicas que o dirigem e emancipar-se do sofrimento.
Aliás, este é o objectivo de todas as filosofias e místicas indianas: o conhecimento metafísico persegue um fim soteriológico. Mediante o conhecimento, o homem desprende-se das ilusões do mundo dos fenómenos e, encontrando o seu próprio centro que coincide com o seu verdadeiro espírito (purusa, âtman), desperta para o espírito na condição de liberto ou de desperto (buddha): o conhecimento transforma-se em meditação e a metafísica torna-se soteriologia, doutrina da salvação. Este aspecto da filosofia indiana pode ser clarificado pela explicitação das causas do sofrimento humano. A miséria humana deve-se à ignorância, mais precisamente à ignorância da verdadeira natureza do espírito, e não a um castigo divino ou ao pecado original, como sucede no judaísmo e no cristianismo. Esta ignorância é de ordem metafísica, porque leva o homem a confundir ou identificar o espírito com a experiência psico-mental, atribuindo-lhe qualidades e atributos que não lhe pertencem. O conhecimento que suprime esta ignorância é metafísico, porque conduz o discípulo até ao limiar da iluminação: revela o verdadeiro Si-mesmo como princípio eterno. A emancipação só é possível quando se suprime a ignorância do espírito, aquela ignorância que confunde o espírito com os estados psico-mentais. Ora, segundo a filosofia indiana, os estados psíquicos e o espírito pertencem a dois modos distintos do ser. A vida mental do homem não é idêntica ao espírito. Só quem compreende esta verdade pode alcançar a libertação, não só mediante a gnose (Sâmkhya), mas também e sobretudo através da ascese e da técnica meditativa (Yoga).
O Si ou Espírito (purusa). Tal como o âtman dos Upanixades, o purusa é inexprimível. Os seus atributos são negativos: O Si é aquele que vê, é isolado, indiferente, mero espectador inactivo, e, dado ser irredutível e desprovido de qualidades, não possui inteligência ou intelecto, porque não tem desejos que, não sendo eternos, não lhe pertencem. O espírito é eternamente livre e, por isso, os estados de consciência e o fluxo da vida psico-mental são-lhe estranhos. Isto significa que o Sâmkhya e o Yoga negam ao espírito todo o atributo e toda a relação: purusa é aquilo que é e que conhece. Segundo Patañjali, a ignorância (avidyâ) consiste em considerar o efémero (anitya), o impuro (asuci), o doloroso (duhkha) e o não-espírito (anâtma) como sendo eterno (nitya), puro (suci), beatitude (sukha) e espírito (âtman). A percepção, a memória, o raciocínio e as outras faculdades psico-mentais pertencem à inteligência (buddhi): a ilusão reside no facto dos homens profanos atribuírem estas faculdades mentais ao espírito. Apesar de ser eternamente puro, impassível, autónomo e irredutível, o espírito deixa-se envolver na experiência psico-mental. Reside aqui um problema, o problema da estranha relação que liga o espírito à natureza, o purusa à prakrti. A causa e a origem desta associação são dois aspectos de um problema insolúvel. Segundo os mestres hindus, é inútil procurar uma solução para este problema, porque tal tarefa cognitiva supera a capacidade actual da compreensão humana. O intelecto ou inteligência do homem (buddhi) é um produto da substância primordial (prakrti) e, como tal, só pode manter vínculos de conhecimento com outros fenómenos. Isto significa que o intelecto não pode conhecer o espírito, a realidade transcendente, com a qual não tem nenhum tipo de relação. A causa da servidão humana é a ignorância metafísica, cujo aparecimento histórico não pode ser fixado pelo intelecto humano. O conhecimento do espírito revela-se somente quando o homem rompe as cadeias que o ligam ao mundo e supera a condição humana. Este conhecimento metafísico é um mero despertar que revela imediatamente a realidade transcendente do espírito, sem a ajuda e a ingerência da inteligência. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Carl Jung: Função Religiosa da Psique

Este post intitulado "Psicologia Analítica e Religião: Função religiosa da psique" é da autoria do meu amigo psicólogo de São Paulo/Brasil, André LF.
1.1. O Sagrado e o Numinoso. Antes de se analisar a relação entre a psicologia analítica e a religião e, especificamente, a função religiosa da psique, deve-se estabelecer algumas considerações acerca do sagrado e do numinoso
. Rudolf Otto (1985) afirma que temos o hábito de utilizar a palavra "sagrado", atribuindo-lhe um sentido figurado que difere substancialmente do seu sentido primitivo. Tal sentido figurado relaciona-se com um predicado de ordem ética, sinónimo de absoluto moral e de perfeitamente bom. Segundo Otto, o elemento moral não é encontrado nas línguas semíticas, grega e latina. Quando está presente, é apenas de modo circunstancial. Levando-se em conta que, em nossa linguagem, uma significação moral está sempre vinculada ao termo "sagrado", seria necessário, prossegue Otto, encontrar uma palavra que designasse com precisão o elemento presente no sagrado. Este elemento aparece de forma viva em todas as religiões. É a parte essencial destas, sem a qual estariam descaracterizadas. De acordo com Rudolf Otto, «convém encontrar um nome para este elemento tomado isoladamente. Esse nome fixará o carácter particular e permitirá, eventualmente, as formas inferiores ou as fases de seu desenvolvimento. Eu uso a palavra numinoso. Se lúmen pode servir para formar luminoso, numem pode formar o numinoso. Falo de uma categoria numinosa como uma categoria especial de interpretação e avaliação, um estado de alma que se manifesta quando essa categoria é aplicada, isto é, cada vez que um objecto é concebido como numinoso. Esta categoria é absolutamente sui generis, original e fundamental, ela não é um objecto de definição no sentido estrito da palavra, mas é um objecto de estudo. Não se pode tentar compreender o que ela é a não ser tentando chamar a atenção do ouvinte para ela e fazer-lhe encontrar em sua vida íntima o ponto onde ela surge e se torna então consciente». (1985, p.12).
Para Otto, aquilo que é numinoso não pode ter os seus significados esgotados em conceitos. Podemos apenas observar as tonalidades das reacções que o numinoso desperta, esforçando-nos por explicitar os meios de sua expressão simbólica. O numinoso, segundo Mircea Eliade, «singulariza-se como qualquer coisa de ganz andere, radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou cósmico; em relação ao ganz andere o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de "não ser mais do que uma criatura" - ou seja - segundo os termos com que Abraão se dirigiu ao Senhor - de não ser "senão cinza e pó"». (2001, p.16). Diante do numinoso irrompe em nós, o sentimento do mysterium tremendum, daquele mistério que faz tremer. Tal arrebatamento «pode se espalhar na alma como um calafrio. É a onda de quietude de um profundo recolhimento espiritual. Esse sentimento pode transformar-se também num estado de alma constantemente fluído, semelhante a uma ressonância que se prolonga por muito tempo, mas que termina por se apagar na alma que volta a seu estado profano. Pode também surgir bruscamente na alma como choques e convulsões. Pode conduzir a estranhas excitações, a alucinações, a transportes e a êxtases». (Otto, 1985, p.180).
Este "tremendo", é, portanto, um dos aspectos do numinoso. No Antigo Testamento, há muitos sinónimos que exprimem o frémito sagrado. Por exemplo, no Êxodo 23.27: "Enviarei o meu temor diante de ti, desconcertando a todo povo aonde entrares, e farei que todos os inimigos te virem as costas". Ou Jô 9.34: "Ele afastaria de mim a vara de Deus, para que eu não enlouquecesse com seu terror". Vê-se, então, que Rudolf Otto, em vez de se preocupar em estudar as ideias tradicionais sobre Deus e religião, detém-se na análise das modalidades da experiência religiosa, sobretudo no que ela comporta de irracional.
Diferentemente de Otto, Eliade (2001, p.17) propõe analisar o fenómeno do sagrado em toda a sua totalidade, e não apenas no que ele comporta de irracional. Segundo Eliade, «não é a relação entre os elementos não-racional e racional que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade». E a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano. Eliade afirma ainda que o sagrado e o profano são duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história. Tais modos «não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objecto de estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em última instância, dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana». (Eliade, 2001, p.20). Ele utiliza o termo hierofania, em seu sentido etimológico, isto é, que algo de sagrado se nos revela. A história das religiões é constituída por um número expressivo de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas.
Em relação ao comportamento do homem moderno diante do sagrado, Eliade afirma: «O homem ocidental moderno experimenta um mal estar diante de inúmeras formas de manifestações do sagrado: é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo. Mas, como não tardaremos a ver, não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere». (Ibid., 2001, p.18). Essa dessacralização é muito forte em nossa época. Em vez de contemplarmos os entes como espaços de manifestação do sagrado, de uma realidade que os ultrapassa, procuramos nos apropriar deles, extraindo-lhes somente aquilo que atende aos nossos interesses imediatistas. A perda da capacidade de contemplar o numinoso que se manifesta em tudo que existe, leva o homem contemporâneo a um desenraizamento que o distancia de tudo, tornando-o um estrangeiro em terra própria. A respeito desta atitude do homem contemporâneo, o funcionário da técnica, como dizia Heidegger, diante do sagrado, afirma Umberto Galimberti (2003, p.75) que vivemos: «Um hoje que é tempo de pobreza extrema porque, como diz Hölderlin, "não mais existem os deuses que fugiram, e ainda não existem os que devem vir". O lugar que o sagrado deixou vazio é hoje ocupado por palavras religiosas que, fechadas no cálculo dos valores, limitam-se a circunscrever o recinto do agir. Assim a essência do homem empobrece quando, à sombra de religiões cuja única preocupação parece ser a dimensão ética, procura dar sentido à dor, educar para o amor, preparar-se para a morte, esquecendo o apelo de Rilke: As dores são desconhecidas, o amor não se aprende, a injunção que nos chama a entrar na morte permanece obscura. Somente o canto sobre a terra consagra e celebra».
A meu ver, esta fuga dos deuses a que se refere Hölderlin, em grande parte pode ser atribuída à hegemonia de um tipo de paradigma científico cuja visão se atém apenas na descrição redutivista dos entes, deixando de lado tudo aquilo que não cabe na estreita terminologia deste modelo de ciência. A fim de nos protegermos dos perigos de uma visão redutivista, torna-se fundamental o resgate de um olhar que contemple a riqueza dos símbolos da humanidade, sobretudo que valorize o tesouro arquetípico que jaz no inconsciente coletivo do homem. Talvez, a partir desta mudança de visão, os "deuses" possam voltar de seu exílio e nos comunicar a beleza de sua mensagem.
1.2. Função Religiosa da Psique. Antes de se abordar a função religiosa da psique, deve-se entender a concepção de Jung sobre o temo religião. Este conceito é derivado, pelos Padres da Igreja, por exemplo, Santo Agostinho, de religare, isto é, unir novamente, neste caso, o homem a Deus. Além deste significado, Jung apresenta outra derivação do termo religião, o vocábulo latino religere. De acordo com Jung (1978, par.6): «religião é - como diz o vocábulo latino religere - uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de "numinoso", isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causado por um acto arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade».
Como se poder notar por meio desta definição, Jung não se refere a uma determinada profissão de fé religiosa. A sua preocupação é com a experiência religiosa originária do homo religiosus, que ainda não foi maculada por visões estreitas disseminadas por certas instituições religiosas. Segundo Jung (1978, par.10), «os conteúdos da experiência (religiosa) foram sacralizados e, via de regra, enrijeceram dentro de uma construção mental inflexível e, frequentemente complexa». Isto não significa, prossegue ele, que se trata de uma petrificação sem vida. Ao contrário, ela pode significar um tipo de experiência religiosa para muitas pessoas.
Em seus estudos dos arquétipos do inconsciente coletivo, Jung chegou à conclusão de que o homem possui uma função religiosa natural. A esse respeito é interessante observar o relato de Jung sobre místico suíço Nicolau van de Flüe ("Bruder Klaus"). O irmão Nicolau, conta-nos Jung (2002), teve uma visão da Trindade. O efeito de tal visão foi tão grande, a ponto de ele mandar pintá-la na parede de sua cela. A visão de Bruder Klaus foi representada numa pintura da época e está preservada na Igreja paroquial de Sachseln: "é uma mandala dividida em seis partes, cujo centro é o semblante coroado de Deus" (Jung, 2002, par.12). Em seu êxtase, a visão que aparecera a Bruder Klaus era tão terrível que o seu semblante se desfigurou, de tal forma que as pessoas se assustavam quando o viam, passando a temê-lo. Podemos, então, pensar naquele mysterium tremendum, de que fala Otto, cuja força pode nos arrebatar, deixando-nos aturdidos.
Há vários registros desta experiência religiosa originária na Bíblia, nas histórias dos profetas. Como exemplo do vigor desta experiência, pode-se citar a conversão de Paulo. Durante a viagem de Saulo a Damasco, «[...] ele se viu repentinamente cercado por uma luz que vinha do céu. Caiu por terra e ouviu uma voz que lhe dizia: "Saulo, Saulo, por que você me persegue? Saulo perguntou: Quem és tu, Senhor? A voz respondeu: Eu sou Jesus, a quem você está perseguindo. Agora levante-se, entre na cidade, e aí dirão o que você deve fazer. Os homens que acompanhavam Saulo ficaram cheios de espanto, porque ouviam a voz, mas não viam ninguém. Saulo se levantou do chão e abriu os olhos, mas não conseguia ver nada. Então o pegaram pela mão e o levaram para Damasco. E Saulo ficou três dias sem poder ver, e não comeu nem bebeu nada"». (At. 9, 3-9).
A alma (psique), na concepção junguiana, tinha uma função religiosa. Sobre este aspecto da psique, Jung afirma: «Não fui eu que atribuí uma função religiosa à alma; simplesmente produzi os fatos que provam que a alma é naturaliter religiosa (naturalmente religiosa), ou seja, possui uma função religiosa. Esta função, porém, não foi inventada por mim, nem a introduzi na alma graças a um artifício de interpretação. Ela se produz por si mesma sem ser impulsionada a isso por qualquer opinião ou sugestão que seja». (Jung, 1970, par.14).
Muitos teólogos nunca conseguiram compreender as concepções de Jung acerca da função religiosa da psique. Alguns o acusavam de "deificar a alma". A esta acusação, ele respondia: «Não fui eu, mas o próprio Deus quem a deificou!» (ibid., par.14). Neste mesmo parágrafo, ele afirma: «quando demonstro que a alma possui uma função religiosa natural, e quando reafirmo que a tarefa mais nobre de toda a educação (do adulto) é a de transpor para a consciência o arquétipo de Deus, suas emanações e efeitos, são justamente os teólogos que me atacam e me acusam de psicologismo». Jung assevera que, se os valores supremos não estivessem depositados na alma, como mostra a experiência, a psicologia não o interessaria porque a alma não seria mais do que "miserável vapor".
Fordham afirma que o objectivo final da religião é a tentativa de expressar na consciência aquilo que vem do inconsciente coletivo. A principal função da religião, para o referido autor, é a união do homem exterior com o homem interior. Ele observa também que as diferentes religiões tentaram, ao longo da história, abarcar todas as demandas espirituais dos indivíduos, o que acabou por cristalizar a experiência religiosa primordial, transformada em dogmas e ritos muitas vezes sem sentido para o praticante.
Jung se preocupava com os riscos que a formalização estéril da experiência religiosa poderia produzir. Segundo ele (1970, par.12): «Pode acontecer que um cristão, mesmo acreditando em todas as figuras sagradas, permaneça indiferenciado e imutável no mais íntimo de sua alma, porque seu Deus encontra-se completamente fora e não é reencontrado em sua alma. Seus motivos e interesses decisivos e determinantes assim como seus impulsos não provêm de forma alguma da esfera do cristianismo, mas de uma alma inconsciente e indiferenciada que é, como sempre, pagã e arcaica. A civilização cristã mostrou-se assustadoramente vazia: nada mais do que um verniz externo; o homem interior permaneceu intocado, alheio à transformação. O estado de sua alma não corresponde mais à crença que ele professa. O desenvolvimento do Cristo em sua alma não acompanhou a evolução exterior. Pouquíssimos seres viveram a imagem divina na sua dimensão mais intima de suas almas».
Hillman (2004) também aborda a função religiosa da psique. Segundo ele, a função religiosa da psique aparece sob a forma de símbolos espontâneos que têm representações similares na religião, tais como a montanha, cruz, o jardim, o vento, o deserto e o bosque de árvores sagradas - imagens frequentes nos sonhos. A função religiosa, na concepção deste autor, também pode aparecer «através de motivos expressamente religiosos: a importância do amor, a luta contra o mal, o extermínio do dragão, a conversão ou cura milagres. Ou ainda sob a forma de insinuações ou percepções referentes à imortalidade, eternidade, metempsicose e questões sobre a morte, o após-vida, o julgamento da alma, o que é certo para ela, onde ela se encontra e para onde irá depois». (Hilmann, 2004, p.66).
Tais símbolos, apontados por Hillman, muitas vezes presentes na Bíblia, poderiam, utilizando-se a terminologia junguiana, ser considerados arquetípicos, isto é, imagens primordiais presentes no inconsciente colectivo. De acordo com Jung (2002, par. 99): «Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdos, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e acção. Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é activado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reacção instintiva contra toda a razão e vontade, ou produz um conflito de dimensões patológicas, isto é, uma neurose».
Observando-se estas afirmações de Jung, pode-se pensar que os símbolos bíblicos podem ser considerados arquetípicos na medida em que eles representam a "mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e acção". A respeito dos símbolos religiosos, Jung (2000) afirma que a função deles é dar sentido à vida humana. Ele nos alertava para os riscos que a consciência ocidental corria ao desprezar a riqueza dos símbolos que compõem os mitos. Dessa forma, homem moderno vive a época da perda do numinoso. Este triste facto implica a perda de nossa razão de ser, do sentido de nossa vida. De acordo com Jung (2000b, par 583): «Tiramos de todas as coisas seu mistério e sua numinosidade e nada mais é sagrado. Mas como a energia nunca desaparece, também a energia emocional que se manifesta nos fenómenos numinosos não deixa de existir quando ela desaparece do mundo da consciência. Como já afirmei, ela reaparece em manifestações inconscientes, em factos simbólicos que compensam certos distúrbios da psique consciente. Nossa psique está profundamente conturbada pela perda dos valores morais e espirituais. Sofre de desorientação, confusão, medo, porque perdeu suas idées forces dominantes e que até agora mantiveram em ordem nossa vida. Nossa consciência não é mais capaz de integrar o fluxo dos epifenómenos instintivos que sustentam nossa actividade psíquica».
Esta incapacidade de integração não é possível, prossegue Jung, porque a própria consciência se privou dos órgãos pelos quais poderiam ser integradas as contribuições do inconsciente e dos instintos. Tais órgãos eram os símbolos numinosos, considerados sagrados pelo consenso comum. Como afirma Jung, um conceito como "matéria física", sem a sua conotação numinosa de "Grande Mãe", já não expressa o forte sentido emocional da "Mãe Terra". Entre os responsáveis por esta perda da numinosidade, Jung (2000b, par.585) menciona a visão cientificista de nossa época: «Por causa da mentalidade científica, nosso mundo se desumanizou. O homem está isolado do cosmos. Já não está envolvido na natureza e perdeu sua participação emocional nos acontecimentos naturais que até então tinham um sentido simbólico para ele. O trovão já não é a voz de Deus nem o raio seu projéctil vingador. Nenhum rio contém qualquer espírito, nenhuma árvore significa uma vida humana, nenhuma cobra incorpora a sabedoria e nenhuma montanha é ainda habitada por um grande demónio. Também as coisas já não falam connosco, nem nós com elas, como as pedras, fontes, plantas e animais. Já não temos uma alma da selva que nos identifica com algum animal selvagem. Nossa comunicação direta com a natureza desapareceu no inconsciente, junto com a fantástica energia emocional a ela ligada».
Ele afirmava que fenómenos como as representações simbólicas são muito irritantes para um intelecto científico, pois não se deixavam formular de maneira satisfatória ao modo lógico de pensar. Além desta visão cientificista que obstaculiza nosso acesso ao numinoso, os próprios representantes do cristianismo, contribuem, através de interpretações redutoras da riqueza do simbolismo religioso, para que tal acesso seja prejudicado. É muito frequente a ênfase no aspecto exterior das celebrações e liturgias religiosas, em detrimento do acesso aos conteúdos numinosos presentes na nossa psique. A conseqüência desta visão religiosa deturpada pelo formalismo estéril pode ser observada na perda da fé religiosa. Segundo Jung (2000b, par.565-566): «[...] em nossa época há muitas pessoas que perderam sua fé em uma ou outra das religiões do mundo. Já não reservam nenhum lugar para ela. Enquanto a vida flui harmoniosamente sem ela, a perda não é sentida. Sobrevindo, porém o sofrimento, a situação muda às vezes drasticamente. A pessoa procura então subterfúgios e começa a pensar sobre o sentido da vida e sobre as experiências acabrunhadoras que a acompanham. Desde tempos imemoriais as pessoas criaram concepções de um ou mais seres superiores e de uma vida no além. Só a época moderna acredita poder viver sem isso. Pelo fato de não se poder ver, com a ajuda do telescópio e do radar, o céu com o trono de deus e pelo fato de não se haver provado (com certeza) que os entes queridos ainda vagueiam por aí com um corpo mais ou menos visível, supõe-se que essas concepções não sejam verdadeiras. Enquanto concepções não são, inclusive, “verdadeiras” o bastante, pois acompanharam a vida humana desde os tempos pré-históricos e ainda agora estão prontas a irromper na consciência na primeira oportunidade. É lamentável a perda dessas convicções».
Mas a perda do acesso ao numinoso, assevera Jung, é compensada pelos símbolos de nossos sonhos e também pela função religiosa da psique. Por meio desta, o indivíduo poderá acessar os conteúdos sagrados em si, estabelecendo com o Si-mesmo uma verdadeira re-ligação (religare), sendo este contacto fundamental para uma existência mais rica e autêntica. Desta forma, apresenta-se ao indivíduo uma tarefa crucial para o seu processo de individuação: a de estabelecer uma relação com as imagens numinosas que existem dentro de seu inconsciente. Para tornar possível este contacto, é preciso atenuar a influência do estéril formalismo religioso que impede o acesso a tais imagens. (Procurou-se neste post estabelecer, de forma genérica, algumas considerações sobre o numinoso e o sagrado e sobre a função religiosa da psique.)
REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
BÍBLIA DO PEREGRINO. Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2000.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martin Fontes, 2001.
GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado: o cristianismo e a dessacralização do sagrado. São Paulo: Paulus, 2003.
HILLMAN, James. Uma busca interior em psicologia e religião. 4.ed. São Paulo: Paulus, 2004.
JUNG, Carl Gustav. Psychologie et Alchimie. Paris: Éditions Buchet/ Chastel, 1970.
______. Psicologia e religião. O.C. XII/1. Petrópolis: Vozes, 1978.
______. A natureza da psique. O.C. VIII/2. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2000a.
______. A vida simbólica. O.C. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 2000b.
______. Os arquétipos do inconsciente coletivo. O.C. IX/1. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
OTTO, Rudolph. O sagrado. São Paulo: Imprensa Metodista, 1985.
André LF

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Cérebro e Experiência Mística

William James (1902) criou a Psicologia Transpessoal, cujo objecto de estudo é a "consciência cósmica", um estágio de consciência que transcende os limites do indivíduo e elimina as fronteiras que limitam a sua consciência. A filosofia da experiência de James considera a religião, não como uma crença na experiência alheia, mas como uma experiência pessoal, que não pode ser relegada à categoria de mera fantasia ou mesmo da loucura, tal como defende o "materialismo médico": a religião diz respeito aos "sentimentos, actos e experiências de indivíduos na sua solidão, na medida em que se sintam relacionados com o que quer que possam considerar o divino". James rejeita a tese psicopatológica, mostrando o que distingue o "santo" e o "místico" do doente mental e expondo os critérios que permitem reconhecer a experiência mística legítima. A sua hipótese é a de que o "self" subconsciente constitui o intermediário entre o poder superior e a natureza propriamente dita.
O principal objectivo da neurociência espiritual, algumas vezes denominada neuroteologia, é identificar e explicar os correlatos neurais das experiências místicas, espirituais e religiosas, sem pretender depreciar ou minimizar o seu significado e valor e negar ou confirmar a realidade externa de Deus mediante o delineamento dos correlatos neurais da sua experiência. Estas experiências constituem uma dimensão fundamental da existência humana e estão presentes através de todas as culturas humanas. A neurociência espiritual parte do pressuposto de que estas experiências são mediadas pelo cérebro, tal como todos os outros aspectos da experiência humana. A experiência mística é caracterizada por um sentido de união com Deus. Além disso, inclui outros elementos, tais como o sentido de ter tocado ou alcançado o último fundamento da realidade, a experiência da eternidade e do ilimitado, o sentido de união com a humanidade e o universo, bem como sentimentos de afecto positivo, paz, alegria e amor incondicional. James destacou quatro aspectos que caracterizam os estados de consciência mística ou experiência mística legítima: 1) a sua inefabilidade, 2) a sua qualidade noética, 3) a sua transitoriedade e 4) a sua passividade. A experiência mística é inefável no sentido de não poder ser comunicada aos outros precisamente por ser experimentada directamente, na primeira pessoa do singular, e dotada de uma qualidade noética, no sentido de ser um estado de visão interior dirigida às profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto discursivo. Estas duas características são suficientes para definir um estado de experiência mística como um estado de sentimento e de conhecimento peculiar. As outras duas qualidades da consciência mística são menos nítidas. A experiência mística é também transitória, no sentido de não poder ser sustentada durante muito tempo, e passiva, no sentido do místico sentir que a sua própria vontade está adormecida, embora o seu estado exija inicialmente operações da vontade, como a fixação da atenção ou a execução de determinados gestos corporais.
Persinger (1983) elaborou a hipótese de que as experiências místicas, espirituais e religiosas são evocadas por micro-ataques eléctricos (ou convulsões), transitórios e passageiros, no interior dos lobos temporais. Os estudos de Devinski (2003), Naito & Matsui (1998) e Saver & Rabin (1997) evidenciaram que estas experiências ocorrem frequentemente em conjunção com experiências de ataques ictais, peri-ictais e pós-ictais ligadas à epilepsia do lobo temporal (TLE). Ogata & Miyakawa (1998) e Trevisol-Bittencourt & Troiano (2000) associaram-nas à intensificação interictal de sentimentos místicos e espirituais, e Dewhurst (1970), à conversão religiosa. Num estudo realizado com dois pacientes com epilepsia do lobo temporal, Ramachandran & Blakeslee (1998) verificaram que, em comparação com as respostas dadas pelo grupo de não-religiosos, eles responderam com maior ênfase ou excitação emocional às palavras religiosas da lista apresentada do que aos termos sexuais e violentos. Foram realizados cinco estudos sobre diversos tipos de meditação, em especial Yoga (Herzog et al., 1990-91), Yoga Tântrico (Lou et al., 1999), Tibetana (Newberg et al., 2001), Kundalini (Lazar et al., 2000) e Yoga Nidra (Kjaer et al., 2002). Porém, vou destacar apenas dois neuro-estudos sobre o misticismo cristão: um estudo de SPECT (photon emission computed tomography study) e outro de fMRI que também envolvem o lobo parietal.
Newberg et al. (2003) mediram o fluxo sanguíneo cerebral regional de monges franciscanos enquanto rezavam uma oração que envolvia a repetição interna de uma frase particular: o estado de oração mostrou um aumento significativo de fluxo sanguíneo cerebral no córtex pré-frontal, nos lobos frontais inferiores e no lóbulo parietal inferior. A alteração observada no córtex pré-frontal direito mostrou uma correlação inversa com aquela observada no lóbulo parietal superior ipsilateral. As mudanças na actividade do lóbulo parietal superior foram interpretadas como reflexo de um sentido modificado do esquema corporal experienciado durante o estado de oração (Newberg et al., 2001).
Beauregard & Paquette (2006) mediram a actividade cerebral de frades carmelitas contemplativos enquanto eles estavam subjectivamente num estado de união com Deus. Este estado estava associado a locais de activação significativa no córtex orbitofrontal medial direito (área 11 de Brodmann), no córtex temporal médio direito (área 21 de Brodmann), nos lóbulos parietal superior (área 7 de Brodmann) e inferior (área 40 de Brodmann) direitos, no caudado direito, no córtex pré-frontal medial esquerdo (área 10 de Brodmann), no córtex cingulado anterior esquerdo (área 32 de Brodmann), no lóbulo parietal inferior esquerdo (área 7 de Brodmann), na ínsula esquerda (área 13 de Brodmann), no caudado esquerdo e no brainstem esquerdo. O córtex extra-estriado visual também foi activado. Isto significa que as experiências místicas são mediadas por diversas regiões e sistemas do cérebro: os "estados de consciência mística" implicam mudanças nas esferas da percepção, da cognição e da emoção. A activação temporal medial direita parece estar relacionada com a impressão subjectiva de contacto com uma realidade espiritual e o sistema neural que suporta esta união com o divino pode ser largamente o mesmo que apoia a união com outro ser humano.
Núcleo Caudado. Estudos anteriores de fMRI mostraram que o núcleo caudado é sistematicamente activado em tarefas que envolvam emoções positivas, tais como felicidade (Damásio et al. 1999), amor romântico (Bartels & Zeki, 2000) e amor maternal (Bartels & Zeki, 2004). Isto significa provavelmente que, na experiência mística, a activação deste núcleo está relacionada com os sentimentos de alegria e de amor incondicional.
Tronco Cerebral. Damásio (1999) mostrou que certos núcleos do tronco encefálico mapeiam o estado interno do organismo durante a emoção. É provável que, na experiência mística, a activação do tronco cerebral esquerdo esteja ligada às alterações somatoviscerais associadas aos sentimentos de alegria e de amor incondicional.
Ínsula. A ínsula estabelece fortes conexões com as regiões envolvidas na regulação autonómica (Cechetto, 1994) e contém uma representação topográfica dos inputs provenientes das áreas somatossensorial, auditiva, visual, gustativa, olfactiva e visceral. Augustine (1996) mostrou que a ínsula integra representações da experiência sensorial externa e do estado somático interno. É activada no processamento emocional e pode fornecer uma representação das respostas visceral e somática acessível à consciência (Critchley et al., 2004; Damásio, 1999). A activação da ínsula esquerda (área 13 de Brodmann) na experiência mística está relacionada com a representação de reacções somatoviscerais associadas aos sentimentos de alegria e de amor incondicional.
Córtex Pré-Frontal Medial. A activação do córtex pré-frontal medial esquerdo (área 10 de Brodmann) está ligada à consciência desses sentimentos. Outros estudos de fMRI mostraram que esta área cerebral está envolvida na representação metacognitiva do seu próprio estado emocional (Lane & Nadel, 2000), recebe informação sensorial do corpo e do meio externo via córtex orbitofrontal e está interconectada com as estruturas do sistema límbico, tais como amígdala, striatum ventral, hipotálamo, região periaqueductal cinzenta do mesencéfalo e núcleos do tronco cerebral (Barbas, 1993; Carmichael & Price, 1995).
Córtex Cingulado Anterior. A activação do córtex cingulado anterior dorsal esquerdo (área 32 de Brodmann) está ligada à consciência emocional associada com a detecção interoceptiva de sinais emocionais durante a experiência mística (Lane et al., 1997; Lane et al., 2000). Esta área cerebral projecta-se para as áreas da regulação visceral do hipotálamo e da região periaqueductal cinzenta do mesencéfalo (Ongur, Ferry & Price, 2003).
Córtex Orbitofrontal Medial. O córtex orbitofrontal medial é responsável pelo prazer subjectivo (Kringelbach et al., 2003), sendo activado no agrado produzido por estímulos olfactivos ou gustativos (Araujo et al., 2003; Rolls et al., 2003) ou musicais (Blood & Zatorre, 2001). Os córtices insular e cingulado estão reciprocamente conectados (Carmichael & Price, 1995; Cavada et al., 2000). A activação do córtex orbitofrontal medial direito (área 11 de Brodmann) foi relacionada com o facto das experiências vividas durante o estado místico serem consideradas pelos sujeitos como emocionalmente agradáveis.
Lóbulo Parietal Superior. O lóbulo parietal superior direito (área 7 de Brodmann) está envolvido na percepção espacial do self (Neggers & Van der Lubbe, 2006). A sua activação durante a experiência mística pode reflectir uma modificação do esquema corporal associada com a impressão vivida pelos sujeitos de serem absorvidos por alguma coisa maravilhosa.
Lóbulo Parietal Inferior. O lóbulo parietal inferior esquerdo está envolvido no processamento da representação visuo-espacial do corpo (Felician et al., 2003). Na experiência mística, a sua activação estava relacionada com uma alteração do esquema corporal. O lóbulo parietal inferior direito desempenha um papel fundamental na distinção entre o self e os outros (Ruby & Decety, 2003), bem como na imagética motora (Decety, 1996) experienciada durante o estado de união com Deus. Finalmente, a activação do córtex visual extra-estriado durante a experiência mística está relacionada com as imagens visuais mentais (Ganis, Thompson & Kosslyn, 2004). (Este post começa a cumprir a promessa feita aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Amputação e Transexualismo (III)

Freund & Blanchard (1993) introduziram o conceito de erros de localização do alvo erótico para explicar porque razão alguns homens experienciam fantasias eróticas de personificar ou mudar os seus corpos de modo a assemelharem-se ao tipo de pessoa pelo qual experienciam desejo sexual. Para quase todos os tipos de objectos sexuais, existem pequenos subgrupos de homens que desenvolvem fetiches por roupas associados com o objecto desejado, que desenvolvem fantasias eróticas de ser o objecto desejado e que desenvolvem um desejo persistente e intenso para transformar os seus próprios corpos em fac-símiles do objecto desejado. Estes homens experienciam erros de localização do alvo erótico: quaisquer que sejam os seus alvos eróticos preferidos, estes indivíduos localizam-nos não só noutras pessoas (alloerótico), mas também e preferencialmente em si próprios (analloerótico). O modelo proposto por Freund & Blanchard (1993) fornece uma explicação do fetichismo trasvestido e do transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual, ao mesmo tempo que permite compreender a relação existente entre acrotomofilia, pretending e apotemnofilia (Lawrence, 2006).
Os alvos eróticos podem ser mulheres, homens, crianças e amputados. A atracção por mulheres é denominada ginefilia, a atracção por homens, androfilia, a atracção por crianças, pedofilia, e a atracção por amputados, acrotomofilia. Os indivíduos que desejam assemelhar-se temporariamente aos seus alvos eróticos simulam-nos em si mesmos: se os alvos eróticos forem as mulheres, a simulação é chamada trasvestismo, se forem os homens, homovestismo, se forem as crianças, pedovestismo, e se forem os amputados, pretending. Quando os indivíduos desejam transformar os seus próprios corpos no alvo ou num fac-símile do alvo erótico preferido, os desejos são denominados, respectivamente, transexualismo autoginefílico, construção corporal hipermasculina nalguns homens gay, autopedofilia e apotemnofilia. As simulações (trasvestismo, homovestismo, pedovestismo e pretending) e as transformações corporais (transexualismo autoginefílico, construção corporal, autopedofilia e apotemnofilia) constituem erros de localização do alvo erótico.
Homens Heterossexuais. O alvo erótico preferido pelos homens heterossexuais é a mulher madura, embora prefiram mulheres mais novas do que eles próprios. Esta preferência erótica normal por mulheres é chamada ginefilia. Porém, alguns homens heterossexuais experienciam erros de localização do alvo erótico. Uns ficam sexualmente excitados quando usam roupas de mulher ou quando tentam assemelhar-se temporariamente com as mulheres. Alguns homens vestem uma única peça de roupa feminina, geralmente roupa interior ou lingerie, com o seu vestuário masculino e, através dos web-sites web-cam, tendem a participar na subcultura de trasvestismo online, envolvendo-se em actos homossexuais e utilizando regularmente maquilhagem. Estes comportamentos revelam uma parafilia chamada fetichismo trasvestido. Outros são sexualmente excitados pela ideia de mudar permanentemente os seus próprios corpos de modo a adquirir corpos similares aos das mulheres. Estes comportamentos manifestam uma parafilia chamada transexualismo autoginefílico.
Homens Homossexuais. O alvo erótico preferido pelos homens homossexuais é o homem maduro, embora os mais masculinizados prefiram homens mais jovens do que eles próprios. Esta preferência erótica normal é chamada androfilia. Porém, alguns homens homossexuais experienciam erros de localização do alvo erótico. Uns são sexualmente excitados quando vestem certos tipos de roupas de homem. Zavitzianos (1972, 1977) forjou o termo homovestismo para designar este fenómeno, relatando o caso de um homem gay que se masturbava até atingir o orgasmo enquanto tinha vestido um uniforme militar masculino e imaginava que era outro homem. Outros são sexualmente excitados pela ideia de mudar os seus próprios corpos de modo a adquirir corpos similares aos dos seus alvos eróticos. Actualmente, a musculação ou o cultivo da aparência masculina estão muito banalizadas entre os homens gay, incluindo os efeminados e passivos. Isto significa que este fenómeno pode constituir o equivalente do transexualismo autoginefílico: a construção corporal ou a tentativa de adquirir um somatotipo masculino sexualmente apelativo.
Homens Pedófilos. O alvo erótico preferido pelos homens pedófilos é a criança, embora nem todos os pedófilos sejam do tipo exclusivo. Segundo CID-10, a pedofilia é "uma preferência (erótica) por crianças", geralmente por crianças na pré-puberdade, com 13 anos ou menos (DSM-IV). Estes homens podem limitar a sua actividade a despir a criança e a observá-la, exibindo-se eles próprios e masturbando-se na presença da criança ou tocando-lhe e acariciando-a suavemente. Outros pedófilos executam fellatio ou cunnilingus na criança ou penetram-lhe a vagina, a boca ou o ânus com os seus dedos, objectos estranhos ou com o pénis e utilizam a força física em graus variáveis para concretizarem os seus objectivos. Porém, alguns homens pedófilos experienciam erros de localização do alvo erótico. Embora não usem os termos pedovestismo e autopedofilia, Freund & Blanchard (1993) demonstraram que alguns homens pedófilos são sexualmente excitados pelo facto de se vestirem com roupas de criança (pedovestismo) e de imaginarem que são crianças. E, pelo menos um paciente, submeteu-se à reconstituição da pele da face para adquirir a aparência aproximada de uma criança: um caso paradigmaticamente representativo de autopedofilia.
Homens Amputados. O alvo erótico preferido pelos homens acrotomofílicos são os amputados e esta preferência erótica é chamada acrotomofilia. Porém, alguns destes homens experienciam erros de localização do alvo erótico. Uns ficam sexualmente excitados pela apresentação temporária de si mesmos como amputados. Este fenómeno é chamado pretending. Outros são sexualmente excitados pela ideia de alterar os seus próprios corpos de modo a tornarem-se, eles próprios, amputados. Este fenómeno é chamado apotemnofilia. A apotemnofilia parece representar a intersecção de dois aspectos parafílicos distintos e diferentes: o primeiro aspecto envolve uma invulgar preferência de alvo erótico, isto é, a atracção sexual por amputados (acrotomofilia). O segundo aspecto envolve um erro de localização do alvo erótico: o indivíduo deseja transformar o seu corpo e torná-lo semelhante ao corpo do alvo erótico desejado. A aplicação do modelo dos erros de localização do alvo erótico de Freund & Blanchard (1993) aos fenómenos de pretending e de apotemnofilia permite gerar, pelo menos, três predições testáveis, aliás já confirmadas por alguns estudos. Dado conceptualizar pretending e apotemnofilia como formas variantes de acrotomofilia, o modelo prediz que quase todos os apotemnófilos tendem a ser atraídos por amputados e que muitos deles se envolveram na simulação de ser amputados (pretending): esta predição foi confirmada pelo estudo de First (2005). O modelo prediz que pretending e apotemnofilia podem ser menos vulgares que acrotomofilia: os estudos de Dixon (1983) e de Nattress (1996) confirmam esta predição. Finalmente, o modelo prediz que a maior parte dos devotees são homens e que muitos destes homens são sexualmente atraídos por mulheres amputadas: os estudos de Dixon (1983), de Furth & Smith (2000) e de Riddle (1989) confirmam esta previsão. Ora, muitos destes homens atraídos por mulheres amputadas, desejam tornar-se semelhantes aos seus alvos eróticos. Isto implica uma elevada prevalência de cross-dressing e de problemas de identidade de género nos homens apotemnofílicos: esta previsão foi confirmada pelo estudo de First (2005), entre outros estudos.
A anatomia não significa realmente "destino", porque quase todos os homens destas amostras examinadas eram machos perfeitamente normais e funcionais. Mais importante do que a morfologia é aquilo que as pessoas fazem da anatomia. A teoria da determinação sexual e da diferenciação sexual do cérebro e do comportamento mostrou que o estado de repouso para os mecanismos centrais de género é feminino, ou seja, entre os mamíferos, o impulso natural é ser fêmea ou produzir fêmeas. O comportamento masculino resulta fundamentalmente da regulação hormonal, mais precisamente, da organização do cérebro fetal pela testosterona pré-natal (Wilson & Davies, 2007; Hines, 2006). Se os androgénios forem bloqueados, a feminilidade reaparece, mas, se forem activados, como sucede na via normal do desenvolvimento masculino, aparece a masculinidade. Esta conceptualização implica o reconhecimento de dois "factos" que desmentem frontalmente a psicanálise de Freud. Primeiro, um facto anatómico genital: em termos embriológicos, o pénis é um clitóris masculinizado. Segundo, um facto neurofisiológico: o cérebro masculino é um cérebro feminino androgenizado. As parafilias referidas são exibidas predominantemente por homens e mostram claramente que as sexualidades de género masculino são sexualidades em risco. Esta observação é perfeitamente congruente com a teoria da fragilidade masculina (Kraemer, 2007) e com a instabilidade do cromossoma Y (Graves): o velho preconceito de que os homens são mais resistentes do que as mulheres constitui um insulto social que visa reforçar a própria vulnerabilidade biológica do género masculino, aliás bem patente nas desvantagens dos homens no domínio socialmente mediado, na sua vulnerabilidade biológica manifestada desde a concepção, nas atitudes negativas exibidas em relação aos défices masculinos, na elevada mortalidade masculina, na maior imaturidade masculina, na maior propensão a abusar de substâncias viciantes e na elevada prevalência de perturbações de comportamento e de desenvolvimento e de doenças letais. A vulnerabilidade biológica masculina exige mais atenção e maiores cuidados prestados aos homens: o desenvolvimento do cérebro masculino está sujeito permanentemente a riscos. O macho é, por excelência, o ser-em-risco permanente e, por isso, a sociedade deve dar-lhe mais atenção. (FIM)
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 29 de novembro de 2008

Amputação e Transexualismo (II)

CID-10 define o transexualismo como "um desejo de viver e ser aceite como um membro do sexo oposto, geralmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade do seu próprio sexo anatómico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e a cirurgia para tornar o seu corpo tão congruente quanto possível com o sexo preferido". Esta perturbação da identidade sexual é distinta do transvestismo de duplo papel: "O uso de roupas do sexo oposto durante parte da existência para desfrutar a experiência temporária de ser membro do sexo oposto, mas sem qualquer desejo de uma mudança de sexo mais permanente ou de redesignação sexual cirúrgica associada". Como nenhuma excitação sexual acompanha a troca de roupas, esta perturbação é distinta da perturbação (heterossexual) do fetichismo trasvestido. O transexualismo é, pois, caracterizado pelo desconforto persistente acerca do sexo atribuído e por uma forte identificação com o sexo oposto, isto é, pela identificação de género cruzada intensa e persistente. Os transexuais são pessoas cuja identidade de género está em conflito com o seu sexo genético e com a sua aparência física. Eles sentem-se prisioneiros num corpo de "sexo errado" e, por isso, procuram mudar a sua aparência física para adquirir a semelhança corporal do sexo oposto.
Em Portugal e, de um modo geral, nos países latinos (Itália, Espanha, Brasil), o transexualismo está exclusivamente associado à homossexualidade, no sentido dos transexuais macho-para-fêmea ou fêmea-para-macho serem atraídos por parceiros do seu próprio "sexo genético". Contudo, nem todos os indivíduos transexuais são homossexuais. Blanchard (1985, 1988, 1989) propôs que existem dois tipos fundamentamentalmente diferentes de transexualismo: o homossexual e o não-homossexual. Em contraste com os transexuais homossexuais, os transexuais não-homossexuais tendem a ficar sexualmente excitados com o pensamento ou a imagem deles próprios como mulheres. Blanchard (1989) chamou a esta característica disforia de género autoginefílica. A categoria de transexuais macho-para-fêmea homossexuais inclui indivíduos que foram abertamente efeminados durante a infância (infância sexualmente atípica), que são verdadeiramente femininos na vida adulta e que são exclusivamente atraídos sexualmente por homens. A outra categoria de transexuais masculinos não-homossexuais inclui indivíduos que não foram abertamente femininos durante a infância, que não são marcadamente femininos na vida adulta e que não são exclusivamente atraídos por homens (Cohen-Kettenis & Gooren, 1999). Neste grupo, as atracções sexuais variam: atracção sexual por homens, atracção sexual por mulheres, atracção sexual por ambos e atracção sexual por nenhum (assexual). Além disso, os indivíduos da segunda categoria relatam uma história de fetichismo trasvestido ou excitação sexual com cross-dressing (Blanchard, 1985; Blanchard, Clemmensen & Steiner, 1987).
Estes dois tipos de transexualismo masculino têm etiologias diferentes. Os estudos sobre a ordem de nascimento e a "sibling sex ratio" (Blanchard, 2001) mostraram que, nos homens, a orientação sexual e o número de irmãos mais velhos estão correlacionadas, embora o número de irmãs mais velhas não esteja associada à orientação sexual. Os transexuais homossexuais têm um excesso de irmãos mais velhos, ao passo que os transexuais não-homossexuais não manifestam nenhum excesso de irmãos mais velhos. Blanchard (1997, 2001) atribuiu este efeito à progressiva imunização das mães em relação aos "Y-linked minor histocompatibility antigens": os anticorpos das mães atravessam a barreira placental, entram no cérebro fetal e impedem a diferenciação sexual do cérebro numa direcção tipicamente masculina. Como a imunização maternal aumenta com a sucessão de gravidezes masculinas, a probabilidade de homossexualidade aumenta nos filhos nascidos mais tarde. Mais recentemente, Henningsson et al. (2005) descobriram três polimorfismos genéticos associados ao transexualismo que envolvem, numa combinação determinada, o gene receptor de androgénios (AR gene), o gene da aromatase (a aromatase aromatiza a testosterona, convertendo-a em estradiol) e o gene receptor beta de estrogénios (ERbeta), cujo alelo longo parece aumentar a susceptibilidade ao transexualismo, desde que o gene AR tenha um nível menor de actividade, sobretudo no núcleo do leito da stria terminalis, responsável pela identidade de género (Zhou et al., 1995; Kruijver et al., 2000). Os estudos com animais, em especial carneiros, demonstraram a importância da aromatização da testosterona em estradiol na motivação sexual e na preferência de parceiro sexual: os carneiros homossexuais exibem baixos níveis de actividade da aromatase na área preóptica medial quando comparados com os carneiros heterossexuais (Roselli et al., 2002) e os ratinhos "aromatase knockout" exibem comportamento sexual alterado (Bakker et al., 2004).
Existem paralelos ou similitudes entre o tipo não-homossexual de transexualismo macho-para-fêmea e o desejo de amputação de um membro saudável (Lawrence, 2006; First, 2004), mas vamos procurar levar em conta as três condições: os dois tipos de transexualismo e o desejo de amputação, comparando-os em função de oito características. As duas primeiras características são partilhadas pelas pessoas que exibem as três condições e as restantes aproximam apenas o transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual e o desejo de ser amputado.
1. Desconforto Corporal. Os indivíduos pertencentes às três condições sentem uma profunda insatisfação com os seus corpos que desejam modificar cirurgicamente para adquirir uma configuração corporal mais congruente com o sexo desejado ou a imagem corporal preferida.
2. Simulação. Os transexuais de ambos os tipos e as pessoas que desejam a amputação envolvem-se quase sempre na simulação do seu status ou corpo desejado, usando roupas, próteses e outros apetrechos. No caso dos transexuais, esta simulação é denominada trasvestismo ou "cross-dressing", e, no caso dos indivíduos que desejam ser amputados, "pretending".
3. Cirurgia. Os transexuais homossexuais são muito efeminados na sua aparência e comportamento e, por isso, tendem a assemelhar-se naturalmente com as pessoas com corpos ou status desejados (Whitam, 1987, 1997). Esta semelhança natural leva-os a procurar muito cedo, pelo menos logo no início da idade adulta, cirurgia de mudança de sexo. Os transexuais não-homossexuais e os indivíduos que desejam a amputação do membro não se assemelham com as condições ou status desejados. Os membros destes dois grupos tendem a procurar muito mais tarde, no caso dos transexuais após terem sido casados e criado os filhos (Blanchard, 1989), a cirurgia capaz de lhes dar a forma corporal desejada.
4. Condições Parafílicas Específicas. As similaridades entre os transexuais não-homossexuais e as pessoas que desejam a amputação envolvem a presença de características parafílicas específicas que estão praticamente ausentes nos transexuais homossexuais. Cada uma destas condições constituem desenvolvimentos dessas parafilias: os transexuais não-homossexuais exibem um interesse sexual parafílico chamado autoginefilia que Blanchard (1989) definiu como "a propensão de um homem ficar sexualmente excitado com o pensamento ou imagem de si próprio como uma fêmea". As pessoas que desejam ser amputadas desenvolvem também um interesse sexual parafílico chamado acrotomofilia: excitam-se sexualmente com a ideia de ser um amputado. Estas parafilias podem estar na origem do desejo de se submeterem posteriormente a cirurgia.
5. Excitação Sexual. Os transexuais não-homossexuais excitam-se sexualmente com a simulação do corpo ou status desejados através do cross-dressing, mas o mesmo não acontece com os transexuais homossexuais que não se excitam com o cross-dressing. As pessoas que desejam ser amputadas relatam frequentemente que ficam sexualmente excitadas quando pretendem ou simulam ser um amputado ("pretending").
6. Atracção Sexual. As pessoas com estas duas condições são sexualmente atraídas por indivíduos com o mesmo tipo de corpo que querem adquirir, o que não sucede no caso dos transexuais homossexuais. Os transexuais masculinos homossexuais são andrófilos, os transexuais masculinos não-homossexuais são autoginéfilos e os pretenders são acrotomófilos.
7. Interesses Parafílicos. As condições do transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual e o desejo pela amputação estão associadas a uma elevada prevalência de outros interesses parafílicos. Os transexuais não-homossexuais têm invariavelmente uma história de fetichismo travestista (Blanchard, 1985) e alguns exibem comportamentos e fantasias sadomasoquistas (Bolin, 1988). O estudo de First (2005) revelou que as pessoas que desejam ser amputadas usam frequentemente a metáfora do "corpo errado" para justificar o seu desejo de ser amputadas: elas acreditam que querem a amputação porque vivem numa "forma corporal errada" (Furth & Smith, 2000).
8. Recusa da Explicação Parafílica. Os transexuais macho-para-fêmea não-homossexuais e os indivíduos que desejam a amputação do membro consideram que as explicações baseadas na parafilia não descrevem adequada e completamente as suas experiências. Os transexuais insistem que os seus desejos de mudança de sexo expressam primariamente as suas "verdadeiras identidades" (Lawrence, 2005) e as pessoas que desejam a amputação do membro afirmam que a motivação primária que as leva a procurar a amputação é a aquisição de congruência entre os seus corpos e as identidades preferidas (First, 2005).
Nas três condições, quase todos os indivíduos afectados experienciam uma profunda insatisfação com os seus corpos, o que os leva a desejar modificá-los cirurgicamente para construir corpos mais aceitáveis e congruentes com as suas "verdadeiras identidades". A modificação cirúrgica do corpo implica necessariamente uma amputação que, no caso dos transexuais, é a remoção dos órgãos genitais masculinos (castração cirúrgica) e a sua transformação numa neovagina construída cirurgicamente (vaginoplastia): o uso frequente de vibradores é recomentado para manter a nova passagem vaginal limpa e aberta e evitar o seu colapso. Nas três condições, a cirurgia parece ser uma solução efectiva para estes indivíduos que experienciam um desejo inusitado para transformar os seus corpos. Porém, este desejo de modificar a sua actual identidade corporal e de adquirir um outro corpo mais congruente com a "identidade verdadeira" pode ser visto como uma consequência da sexualidade parafílica. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa