sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Herbert Schiller e Globalização da Comunicação

No nosso tempo, a comunicação desenrola-se numa escala cada vez mais global. Por um lado, as mensagens simbólicas são transmitidas através de grandes distâncias com relativa facilidade, quase em tempo real, de modo que as pessoas têm acesso à informação proveniente de fontes distantes. Por outro lado, com a separação entre o tempo e o espaço operada pelos meios electrónicos, o acesso às mensagens simbólicas pode ser instantâneo ou virtualmente instantâneo. Com efeito, as distâncias foram eclipsadas pela proliferação de redes de comunicação electrónica, de modo que as pessoas podem interagir umas com as outras ou agir dentro de estruturas de interacção quase mediada, mesmo que estejam situadas (em termos de contextos práticos da vida quotidiana) em diferentes lugares do mundo.
Ora, a reordenação do espaço e do tempo desencadeada pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC) integra-se num conjunto mais amplo de processos que estão a transformar radicalmente o mundo moderno tardio. Globalização é o termo usado para descrever este conjunto de processos que interconectam sistemática e reciprocamente diferentes regiões e lugares do mundo, tornando o seu alcance efectivamente global. Embora não seja um fenómeno novo, a globalização das redes de comunicação ocorreu, de forma organizadamente sistemática, no século XIX, devido ao desenvolvimento dos sistemas de cabos submarinos levado a cabo pelas potências europeias imperialistas (1), ao estabelecimento de novas agências internacionais e a divisão do mundo em esferas de operação exclusiva (2) e à formação de organizações internacionais interessadas na distribuição do espectro electromagnético (3).
Mas foi no século XX, sobretudo a partir dos anos 60, que começaram a delinear-se os quatro padrões globais da comunicação: a emergência de conglomerados transnacionais de comunicação como peças centrais no sistema global de comunicação e de difusão de informação (1); o impacto social das novas tecnologias, especialmente aquelas associadas à comunicação via satélite e, posteriormente, ao uso crescente dos métodos de digitalização da informação (2); o fluxo assimétrico/desigual dos produtos de informação e comunicação dentro do sistema global (3); e as variações e as desigualdades no acesso às redes de comunicação global (4).
Diversas teorias foram propostas para explicar os padrões estruturados da comunicação global e das suas possíveis consequências, das quais destacaremos neste post a teoria do imperialismo cultural americano, elaborada por Herbert Schiller em 1969 na sua obra "Mass Communications and American Empire".
Segundo Schiller, o período posterior à Segunda Guerra Mundial foi caracterizado pelo crescente domínio dos USA na arena internacional. Quando os impérios coloniais tradicionais do século XIX, tais como o britânico, o francês, o holandês, o espanhol e o português, começaram a entrar em declínio, foram sendo substituídos por um novo império americano emergente. O império americano emergente fundamenta-se em dois factores fundamentais: 1º) a força económica, proveniente principalmente das actividades das corporações internacionais ou multinacionais sediadas nos USA; e 2º) o know-how das comunicações que permitiram às organizações comerciais e militares americanas tomar a dianteira no desenvolvimento e no controle de novos sistemas electrónicos de comunicação no mundo moderno. Com efeito, o sistema americano de transmissão, fundamentalmente comercial dominado pelas grandes redes e financiado pelas receitas da publicidade, mostra como alguns dos mais importantes sistemas de comunicação foram completamente dominados por interesses económicos e comerciais. Além disso, o sistema americano de transmissão serviu de modelo para o desenvolvimento de outros sistemas mundiais, de modo especial nos países do Terceiro Mundo, cujo traço mais típico é, de acordo com a economia política da comunicação (Immanuel Wallerstein) e os relatórios da UNESCO, «o desenvolvimento do subdesenvolvimento».
Ora, a dependência tecnológica da comunicação e do investimento americanos, associada à procura de programas de televisão e ao custo elevado da produção doméstica local, produziram uma grande pressão para o desenvolvimento de sistemas comerciais de transmissão em muitos países do Terceiro Mundo e para a importação maciça de programas estrangeiros, especialmente americanos, embora alguns países tais como o Brasil e o México tenham conseguido produzir os seus próprios programas domésticos e locais.
O resultante mais flagrante deste dependência económica e cultural foi uma «invasão electrónica» que, segundo Schiller, ameaça destruir as tradições locais e submergir a herança cultural das nações menos desenvolvidas e subdesenvolvidas sob a avalanche de programas de TV e de outros produtos culturais, tais como filmes, provenientes dos poucos centros de poder sediados no Ocidente, aquilo a que Martin Heidegger chamou a degradante «americanização do mundo», incluindo a Europa. Estes programas culturais estão permeados pelos valores do consumismo, dado serem dirigidos fundamentalmente às necessidades dos produtores que patrocinam a televisão ou o cinema através das receitas da publicidade. Por isso, quando adoptam um sistema comercial de transmissão, os países desenvolvidos envolvem-se também e necessariamente no processo de transformação cultural e de dependência em que os valores do consumo se sobrepõem às motivações tradicionais e aos modelos alternativos de formação dos valores. Através deste processo, os indivíduos são ligados cada vez mais estreitamente a um sistema global de comunicação e de produção de mercadorias sediados quase inteiramente nos USA.
Assim, a partir da análise da conexão do complexo militar e industrial e da indústria da comunicação, a teoria do imperialismo cultural de Schiller desemboca numa extensa denúncia da crescente privatização do espaço público nos USA.
Geralmente, são atribuídos e reconhecidos quatro méritos à teoria de Schiller: 1) o destaque do carácter global dos sistemas de comunicação electrónicos, incluindo actualmente a Internet; 2) o seu carácter estruturado e sistemático; 3) a sua interligação com os poderes económico, militar e político; e 4) as dificuldades e as restrições financeiras enfrentadas pelos países subdesenvolvidos que procuram desenvolver os seus próprios sistemas de comunicação, apesar das economias emergentes tais como a China e a Índia estarem a ser bem-sucedidas nesse desenvolvimento, devido às suas taxas elevadas de crescimento económico. Muitas outras críticas foram feitas, em especial por John Thompson, que mostrou, entre outras críticas, que a hegemonia americana perde cada vez mais terreno à medida que a economia global se torna crescentemente multipolar.
Em fase desta crítica em particular, vinte cinco anos após a publicação da sua obra, Schiller reconheceu ser necessário remodelar a sua teoria do imperialismo cultural americano. Para Schiller, o domínio global da cultura de consumo e dos produtos culturais dos mass media americanos não perderam o seu apelo: a hegemonia americana continua a ser evidente, sobretudo desde a derrota da UNESCO e o colapso dos regimes socialista do Leste. O que mudou foi a base económica do domínio americano: as corporações transnacionais assumiram nos últimos tempos um papel crucial nas indústrias da comunicação global e o capital de investimento é actualmente retirado de diversas fontes de recurso. Assim, enquanto o domínio cultural permanece na mesma americano em termos da forma e do conteúdo dos produtos dos mass media, a sua base económica foi globalizada. Deste modo, o imperialismo cultural americano tornou-se, como diz Schiller, «uma dominação cultural transnacional e corporativa».
J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

Manuel Rocha disse...

Excelente, para não variar !
:)
Na conclusão temos uma pequena diferença. Não me parece que o capital se tenha "globalizado" assim tanto.haverá isso sim novas formas de investir a riqueza. Além disso nos dias que correm é um erro identificar a origem do investidor pelo passaporte. Independentemente da sua nacionalidade, eles são tão "ocidentais" como os súbditos de sua Majestade - em cujas universidades de resto se formaram.

Aqui há tempos vi um programa sobre a "nova China". Um dos seus seus novos capitalistas que foi entrevistado, vivia numa réplica do Palácio de Versalhes e tinha no jardim,entre outras do género, uma estátua de Adam Smith !

Báscicamente, a globalização é um produto da hegemonia da concepção da ordem económica que o Ocidente foi capaz de internacionalizar. Mas em boa parte deve-o aos contributos da governança do tipo Ocidental implementados graças á formação "ocidental" dos seus dirigentes. Eduardo dos Santos ou Benazir Butto são ( ela era ...) tão ocidentais quanto nós ! Parece-me pois que Schiller se esqueceu deste aspecto...::))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, tem razão e, além disso, Schiller esquece outros factores, nomeadamente a emergência de culturas híbridas, nómadas e a recepção das mensagens. Mencioonou uns nomes muito interessantes, mas pelo menos um ainda é muito "ditador"... :)