terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Marxismo e Democracia

O colapso do Bloco Soviético constitui uma refutação, não da teoria de Marx, mas da sua leitura "comunista", aquela pressentida por Marx quando, no final da sua vida, dizia "não ser marxista". O fim desta leitura "comunista" de Marx permite resgatar o seu pensamento complexo, sujeito a diversas leituras possíveis, e restitui-lo finalmente ao liberalismo de Esquerda (Veja John Rawls e a Teoria da Justiça). Hoje, reler Marx é integrá-lo na herança da Civilização Ocidental e elaborar uma nova política de Esquerda, capaz de defender a democracia e a liberdade contra a democracia cleptocrática vigente nas actuais sociedades ocidentais (Veja Notas sobre Burocracia). A teoria de Marx é liberal e, neste post, pretendemos esboçar uma nova leitura daquilo a que chamaremos marxismo liberal.
O primeiro sistema completo de Hegel, o chamado sistema de Iena, foi formulado nos seus cursos na universidade de Iena, de 1802 a 1806, e compreende uma lógica, uma metafísica, uma filosofia da natureza e uma filosofia do espírito. Neste sistema, Hegel repudia a teoria do contrato social, afirmando que a "vontade geral" é o resultado de um longo processo que culmina na regulamentação final dos antagonismos sociais, isto é, na formação e consolidação do Estado Democrático. A vontade geral é o resultado do Estado e não a sua origem, como defendia Rousseau. O Estado mais primitivo era necessariamente um regime da tirania e da coacção. A tirania integrava os indivíduos, negando-os, mas com um resultado positivo: disciplinou-os e ensinou-lhes a obediência. A obediência à pessoa do tirano preparou a obediência à lei. Mas, após o Estado ter conseguido integrar os indivíduos e discipliná-los, a tirania desapareceu naturalmente, sem ser necessária a revolta do povo, cedendo o seu lugar ao regime da lei e da razão.
Para Hegel, a democracia é precisamente este regime da lei e da razão: a democracia representa a harmonização ou a identidade real entre o indivíduo e o todo social. A democracia é o mesmo governo para todos os indivíduos e a sua vontade expressa o interesse do todo. Além disso, a democracia reconcilia no indivíduo o "burguês", que tem em vista o seu próprio interesse, o "homem abstracto" de Marx, e o "cidadão", que busca o interesse do todo. A forma superior da democracia é, segundo Hegel, a "monarquia hereditária": a pessoa do monarca representa o todo elevado acima de quaisquer interesses especiais. Sendo monarca por nascimento, a sua autoridade é exercida naturalmente e sem coacção, como se fosse "por natureza" alheia aos antagonismos sociais. O monarca é, portanto, "o ponto de referência" mais estável e duradouro do movimento do todo, a "opinião pública" é o laço que une as esferas da vida e controla o seu curso e o Estado é uma organização racional da sociedade através das suas várias classes limitadas pela "classe universal": os "funcionários eleitos do Estado".
Na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito (1843), Marx critica a concepção hegeliana do Estado e do Direito. Marx rejeita a soberania encarnada por um homem, seja ele quem for (monarca hereditário ou presidente da república democraticamente eleito) e seja qual for a constituição política que limita os seus poderes, rejeita o Estado "político" e rejeita, de certo modo, o «político» enquanto político puro, isto é, o "político profissional". Com efeito, estes três elementos são repudiados porque assentam numa dupla-alienação: uma abstracção do ser real do homem, que se exprime nas relações reais entre os homens, e uma particularização do ser social e da sua vocação universal nos limites empíricos do Estado e do soberano. E é neste sentido que a crítica de Marx dos chamados "direitos do homem", levada a cabo nessa obra-prima que é Die Judenfrage (A Questão Judaica), deve ser compreendida:
«Toda a emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem.
«A emancipação política é uma redução do homem, por um lado a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral.
«A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver absorvido em si o cidadão abstracto; quando como homem individual, na vida de cada dia, no trabalho e nas suas relações, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado os seus próprios poderes como poderes sociais, de maneira a nunca mais separar de si este poder social como poder político».
Marx critica a "democracia liberal", portanto, representativa, em nome de uma verdadeira democracia: real, concreta, aperfeiçoada e «política» no sentido de ser mais participativa e alargada a todos os cidadãos. Esta concepção de democracia está muito próxima da de Espinosa, como vimos neste post Espinosa e a Política, e está muito próxima da «bela e feliz liberdade dos gregos», que Hegel considerou ultrapassada pela organização racional da sociedade moderna. A democracia deve ser expressão do "povo real" e, como tal, deve promover a reconciliação da «sociedade civil» (indivíduos e famílias reais) com o Estado. Para Hegel, a sociedade civil e a família são instituições dependentes do Estado. Pelo contrário, para Marx, a família e a sociedade civil constituem os fundamentos reais do Estado. Como escreve Marx:
«A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições (...). Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado subjectivado. A democracia parte do homem e faz do Estado o homem objectivado».
A democracia é a expressão do homem real, isto é, do "povo real", portanto, democracia participativa, porque, como afirmava Espinosa, nenhum homem deve alienar noutro(s) homem(ens) todos os seus poderes, isto é, a sua liberdade:
«De um certo ponto de vista, a democracia está para todas as outras formas de política como o cristianismo está para todas as outras religiões. O cristianismo é a essência da religião. o homem deificado sob a forma de uma religião em particular. Do mesmo modo, a democracia é a essência de todas as outras constituições políticas, é o homem socializado como constituição política particular». (A democracia é) «o género da constituição. A monarquia é uma espécie e uma má espécie». (A democracia está) «para todas as outras formas políticas (concretas) como para o Antigo Testamento». Género ainda não realizado, nem no Estado hegeliano, nem sequer na república burguesa, porque estes são realizações políticas, isto é, figuras particulares do universo social.
A razão desta incapacidade do Estado político para encarnar o universal numa democracia real e aperfeiçoada deriva da existência das classes sociais e do antagonismo social. A classe dominante confisca em seu proveito todo o poder político e a alienação social desemboca na alienação política. No Estado moderno democrático, existe efectivamente uma separação entre o Estado e a sociedade civil, entre o homem privado e o cidadão. A abolição da alienação política exige (como condição prévia) a abolição da alienação social. A "sociedade comunista" foi a designação escolhida por Marx para nomear aquela sociedade em que a democracia real substituirá a democracia formal: o Estado formalmente democrático cederá o lugar à sociedade realmente democrática, onde todos os cidadãos possam participar livre e racionalmente na esfera pública, perseguindo o interesse comum.
Ora, se é verdade que o projecto político de Marx visava a instauração de uma sociedade verdadeiramente democrática, independentemente do nome que tenha escolhido para a definir, a leitura "comunista" do seu pensamento anulou teórica e praticamente a democracia entendida como «reino da liberdade» e, de Marx, reteve, sobrevalorizando-a, apenas uma noção infeliz: a "ditadura do proletariado". Esta expressão aparece, em estado prático, no Manifesto do Partido Comunista, mas sem ser nomeada. É numa carta de Marx a Weydemeyer (1852) que encontramos esta frase: «A luta das classes leva necessariamente à ditadura do proletariado», posteriormente retomada na Crítica do Programa de Gotha (1875). Coube a Lenine conceber um partido comunista centralizado e fortemente disciplinado, avançando com o conceito de "centralismo democrático". Ora, como observaram muitos marxistas, sobretudo os marxistas ocidentais (Adorno, Horkheimer, Marcuse, Garaudy, Merleau-Ponty), este conceito constitui uma contradição nos seus próprios termos, portanto, um oxymoron (oxímoro). Rosa Luxemburgo viu bem que a ditadura do partido único era incompatível com a democracia real defendida por Marx: «A liberdade é sempre a liberdade daqueles que pensam diferentemente».
O marxismo liberal que proponho como nova política de Esquerda condena completamente o centralismo democrático das actuais democracias ocidentais e defende uma reforma do Estado capaz de combater a burocracia com menos e melhor Estado, de garantir as condições objectivas da cidadania e de eliminar a corrupção que subverte internamente a democracia, convertendo-a numa oligarquia camuflada (Veja O Eclipse da Democracia). Sem cidadania não há verdadeiramente democracia: aqui reside o núcleo duro da concepção marxista da democracia real sempre em marcha de aprofundamento e também a chave da política verdadeiramente de Esquerda, sobretudo a socialista ou social-democrata, a qual lucra muito com a leitura de Hannah Arendt. A democracia é um regime (estritamente) político e, como tal, não deve ser generalizada a todas as esferas da sociedade. Sem esta restrição não é possível imaginar um projecto político de Esquerda credível: a igualdade de oportunidades é apenas uma condição para o exercício da cidadania e não o objectivo da própria política, que, doravante, se dirige a todos os homens e não apenas ao proletariado. (A teoria marxista do proletariado foi realizada e, por isso, tornou-se inútil.)
Devo dizer que reconheço as lacunas hermenêuticas desta reflexão que resolvi partilhar publicamente no começo deste novo ano de 2008. O meu amigo Agry faz uma leitura diferente de Marx: SOBRE A DEMOCRACIA. Afinal, sou liberal e respeito a liberdade de pensamento de cada cidadão. Em democracia, a palavra do homem não pode ser confiscada por outro homem e, por isso, a representação como confiscação tende a produzir abuso de poder. O marxismo liberal aceita e fomenta o diálogo alargado (a tolerância de John Locke) e a crítica e, apesar de ser um movimento ocidental, recusa abandonar os não-ocidentais na Idade das Cavernas. (Por isso, Marx viu sempre o aspecto positivo do colonialismo: uma oportunidade para a emancipação.)
J Francisco Saraiva de Sousa

12 comentários:

E. A. disse...

Marx, como Nietzsche, foram bandeiras para o que houve de mais terrível no século XX...
Penso se é possível "reler" Marx, como diz.
Penso se é possível superar a nossa natureza perversa e perversora.
Se calhar, só queremos algo que justifique a nossa maldade, só queremos regras para as transgredir, como dizia Bataille. O oxímoro é a hybris do nosso destino.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, por isso tenho defendido a necessidade de pensarmos a nossa animalidade que a civilização procura capturar de modo irracional. Os escritos de juventude de Marx fornece muitos elementos para realizar essa tarefa. O meu objectivo é mais político. Recuperar Marx pode ajudar-nos a melhor a qualidade da democracia, de resto ameaçada por estas elites financeiras, políticas e jurídicas. O liberalismo possibilita controlar opoder judicial. Detesto o regime da lei! (Muitas coisas ficaram subentendidas. Precisava retomar muitos posts.)
Maldade radical à Kant? Curioso, se bem o entendo, Marx pensa que esse mal pode ser vencido pelo homem total, o ser genérico: o homem humano.
Mas não estou satisfeito com oo texto: apenas um começo. Contudo, a cidadania é um conceito sagrado para Marx e a nossa Europa carece disso. Permite também criticar a noção de representação e convida a imaginar novas formas de limitar o poder dos "políticos puros".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Além disso, adoro a expressão "confiscar" o poder. Faz-me lembrar Elias Canetti. De facto, os políticos europeus e ocidentais confiscam tudo em nome de uma falsa democracia representativa. :)))

AGRY disse...

Desculpe, estive ausente.
As questões que suscita, obrigar-me-iam a uma resposta cuidada e, por isso, trabalhosa. Terá de ficar para outra altura. Falar de ideias-síntese é, relativamente, fácil. Dissecá-las é que dá um pouco mais de trabalho.
Como sabe Marx não criou, propriamente, uma teoria de Estado. Surgem, aqui e ali referências,como, aliás, em Engels. É Lénine quem experimenta a necessidade de ir mais longe.
Recordo-lhe Engels:
“A sociedade que de novo organiza a produção sobre a base de uma associação livre e igual dos produtores remete a máquina de Estado inteirinha para onde então há-de ser o lugar dela: para o museu das antiguidades, para junto da roda de fiar e do machado de bronze”
O marxismo não será uma religião mas, apesar de toda a liberdade que ele concede para o seu enriquecimento não poderemos descaracterizá-lo. Haverá um dia alguém que crie uma teoria alternativa e que terá, inevitavelmente, Marx como referência.
Em síntese: Einstein virou a física clássica do avesso mas não a destruiu.
Abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado pelo seu comentário.
Acredita que não foram produzidas alternativas ao materialismo histórico? Acredita que a sua "aplicação soviética" foi um sucesso?
Um abraço

AGRY disse...

Desculpe, mas esse tipo de perguntas deve ser dirigido aos
fundamentalistas e/ou ortodoxos.
Não a mim

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tanto melhor não ser fundamentalista. Significa maior abertura ao diálogo e à crítica. :))

Manuel Rocha disse...

Gostei da leitura que faz do pensamento de Marx.

Tenho algumas dúvidas no entanto sobre as ilacções que daí decorrem para a leitura do exercicio da cidadania e da democracia actuais.

Tenho para mim que a globalização do americam-dream simplificou a ordem social que Marx concebeu. Hoje o Mundo divide-se entre os que são ricos e os restantes que ainda não sendo, sonham sé-lo. E a participação na vida politica tem por principal motivação a criação de janelas de oportunidade para esse percurso tão desejado. E fica por aí. Mesmo entre aqueles muitos que em certos dias acordam viarados para o lado esquerdo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, a leitura implica um desenvolvimento que deve ter em conta a globalização, sobretudo as desigualdades a que se refere. É, por isso, que penso ser necessário reler Marx.
Um abraço

ARNALDO ARNOLDE disse...

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J Francisco, por favor, vc disse que - no final da vida - Marx disse que não era marxista....
Fiquei curioso !
Vc poderia informar em que obra, texto, artigo, em suma, qual o ano e o título desse escrito de Marx onde ele diz que não é marxista ?

Obrigado.

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ARNALDO ARNOLDE disse...

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Ahh por favor J Francisco, vc fala tb em atualizar Marx para que exista democracia.

Eu sempre quis saber sobre isso !

Vc poderia explicar/sintetizar como seria a democracia para Marx ?

Qual seria a forma de sociedade democrática para Marx ?

Teria estado, como tal estado democrático seria ?

Obrigado.

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J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi

Marx disse isso diversas vezes, nomeadamente na sua correspondência. Os escritos de juventude revelam essa ligação à democracia. :)