quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A Escola como Instituição Crítica

Com o objectivo de arrefecer os ânimos, tal como se revelaram nos comentários feitos pelos professores ao post anterior, vou apresentar aqui um brevíssimo resumo de uma conferência que dei no decurso da "1ª Conferência Internacional de Filosofia da Educação", realizada no Porto, em Maio de 1998, por iniciativa do Gabinete de Filosofia da Educação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, posteriormente publicada em livro com o título "Diversidade e Identidade". Foi apresentada no dia dedicado ao "Conhecimento, Crítica e Fundamentos Filosóficos da Educação", em oposição a uma outra conferência de Richard Davies, que defendeu aquilo a que chamo uma "pedagogia administrativa".
A escola como instituição colonizada afunda-se naquilo que devia denunciar e ajudar a transcender: a sociedade de consumo. Ao criticar os fundamentos das diversas filosofias da educação, no fundo variações da pedagogia administrativa, a teoria crítica da educação nada mais faz do que lançar os fundamentos de um novo projecto educativo.
Giroux tem toda a razão quando afirma que não basta denunciar a escola como uma agência da socialização integrada: a denúncia que se satisfaz consigo mesma é resignação. «As escolas são locais contraditórios»: há, portanto, espaço para levar a cabo a tarefa de libertar o futuro, de modo a que Auschwitz nunca mais se repita. Como vimos, uma compreensão crítica da escolarização permite-nos ver as escolas como locais simultaneamente de dominação e de libertação. Deste modo, a teoria crítica da educação opõe-se ao cerne da teoria educacional administrativa, que concebe as escolas principalmente como provedoras de habilidades e atitudes necessárias para os estudantes se tornarem cidadãos patriotas, industriais e responsáveis.
A escola deve converter-se numa instituição crítica, se quiser resistir às forças da integração social e cultural em curso na sociedade administrada. O modelo de escola predominante é um modelo burocratizado imposto de cima pelo Estado e pelos seus funcionários subservientes, sem que os principais agentes educativos tenham participado como sujeitos particulares e livres de coerção na sua elaboração ou mesmo na sua crítica racional e livre. Ivan Illich chamou-lhe instituição manipuladora e Louis Althusser, analisando-o, no contexto da reprodução social das relações sociais de produção capitalistas, chamou-lhe Aparelho Ideológico de Estado, cuja função é preparar — mediante um trabalho de inculcação ideológica — os alunos para o desempenho dos papéis que lhes são socialmente atribuídos no processo de produção.
A escola como instituição crítica opõe-se frontalmente à escola como instituição manipuladora. Em vez de preparar indivíduos dóceis, apáticos e resignados, a escola como instituição crítica quer romper com a atomização da sociedade administrada, de modo a abrir caminho à emergência de subjectividades rebeldes, capazes de se libertarem a si mesmas do processo de sujeição a que as submete-sujeita a ideologia (escolar) dominante. A escola como instituição crítica deve fornecer os conceitos necessários ao aluno que se queira libertar da sujeição-submissão ideológica: a imuno-cognição crítica é a arma que os professores e os seus alunos devem erguer para se defenderem da comunicação sistematicamente distorcida imposta pela burocracia educacional e pela política economicista dominante.
Como instituição crítica, a escola deve reconquistar o espaço de libertação que coexiste no seio da escola burocratizada com o espaço da dominação. A teoria crítica da educação encara, tanto a escola no seu conjunto como as aulas que ocorrem no seu seio, como um fórum crítico e racional, onde professores e alunos se juntam para debater, entre eles na sala de aula e entre a escola e as restantes instituições sociais, os mais diversos assuntos, procurando sempre que possível um consenso racional.
Professor e aluno devem reconstruir, em constante diálogo «horizontal» e liberto da coerção, a sua subjectividade, libertando-a do seu elemento estranho — a adesão ao opressor. O meio para essa confrontação é — conforme acentua Habermas — o uso público da razão, articulado por indivíduos privados engajados numa discussão que é, em princípio, aberta e sem coerção. Só deste modo pode a escola constituir-se como o berço da subjectividade rebelde, imunizada e preparada para resistir às estupidificações da sociedade de consumo. A subjectividade rebelde é uma subjectividade que se recusa, mediante uma revolta permanente consigo mesma e com o mundo, a ser novamente colonizada pela ideologia do opressor. A mimesis cativante é o novo elemento da teoria crítica da educação.
A missão crítica da educação deve ser a autonomização dos indivíduos através de um processo educativo (relação e acção educativas) capaz de contribuir para o desenvolvimento da consciência crítica e para a emergência de uma sensibilidade não-mutilada. A reconciliação visada pela teoria crítica é, na actual conjuntura social, uma tarefa prática, da qual devem participar todos os intervenientes do processo educativo, sobretudo os professores quando encarados — segundo a expressão de Giroux — como intelectuais políticos. A sua mais nobre tarefa deverá ser ajudar os alunos a serem capazes de reflectir sobre a sua própria história, quer como indivíduos, quer como membros de sociedades mais vastas, e de usar essa reflexão justamente para alterar o curso barbarizante da história.
Esta missão do educador crítico está ausente em todas as formas de teorias sociais e de teorias da educação — usualmente referidas como positivismo, que tentam moldar as ciências sociais segundo os modelos das ciências naturais, tal como fazem, de resto, os programas impostos pelo Estado e suas agências de controlo social aos professores ou mesmo aos alunos. Ao reconhecer a auto-reflexão ou reflexividade dos agentes humanos, a teoria crítica da educação tem de reconhecer que uma sociedade emancipada seria aquela em que os seres humanos controlassem activamente os seus próprios destinos, através da crescente compreensão das circunstâncias em que vivem.
As indústrias culturais incutem nos estudantes uma paixão horrenda pela ignorância. Segundo Jacques Lacan, a ignorância não é um estado passivo, mas um estado activo ou de exclusão da consciência. A paixão pela ignorância que infecta a cultura da imagem magificada deve-se a uma recusa em reconhecer que as nossas subjectividades foram construídas a partir das práticas sociais e das formas de consciência sociais coisificadas correspondentes que nos dominam. A ignorância incorporada na própria estrutura do conhecimento desafia a imaginação pedagógica de qualquer professor empenhado na emancipação dos seus alunos. Estes, incapazes de encontrar conhecimento significativo no mundo fetichista das mercadorias, recorrem à violência gratuita ou a uma neblina intelectual onde qualquer coisa mais desafiadora e provocante do que o noticiário nocturno é encarada com desprezo. Esta epidemia de anastesia conceptual só beneficia a cultura burocrática dominante.
É, por isso, que a escolarização deve ser um processo de compreensão de como as subjectividades são produzidas por processos sociais objectivos. A compreensão dos processos sociais pelos quais temos sido construídos é, desde logo, auto-transformadora. Se fomos feitos, então podemos ser desfeitos e refeitos. Os professores emancipados precisam encorajar os estudantes a serem autoreflexivos sobre a sua situação no mundo e a dotá-los, mediante metodologias adequadas aos diversos contextos, com estruturas conceptuais para que eles comecem a emergir da realidade opressora. Ensinar e aprender devem ser simultaneamente um processo de investigação e de crítica permanente e um processo de construção de uma imaginação social que trabalha dentro de uma linguagem da esperança. Se o ensino for visto como uma linguagem da possibilidade, a aprendizagem pode tornar-se facilmente relevante, crítica e transformadora.
Segundo Giroux, o conhecimento é:
— relevante somente quando começa com as experiências que os estudantes trazem consigo da cultura e do mundo da vida em que estão inseridos;
— crítico somente quando essas experiências são mostradas como sendo, algumas vezes, problemáticas;
— e transformador somente quando os estudantes começam a usar o conhecimento adquirido para ajudar a conferir poder aos outros, incluindo os indivíduos da sua comunidade.
O conhecimento crítico visa a reforma social qualitativa. Mediante a reestruturação da linguagem do self procura-se ajudar o aluno a negociar melhor com o mundo que deve ser transformado, tendo em vista aquilo que Adorno chamou «vida sem angústia».
Os professores que resistem à integração social devem criar agendas de possibilidade nas suas salas de aula. A pedagogia crítica não garante que a resistência, tanto dos alunos como dos professores, não aconteça, mas fornece aos professores as bases para a compreender e para que qualquer pedagogia desenvolvida seja sensível às condições socioculturais que constróem a resistência, diminuindo a possibilidade de que os estudantes sejam responsabilizados como a sua única fonte criadora. A pedagogia emancipatória não pode ser construída a partir de teorias do comportamento que vêem os estudantes como preguiçosos, desobedientes, sem ambição ou geneticamente inferiores. Os professores que tratam os seus alunos como «atrasados mentais» esquecem-se de que eles próprios são tratados do mesmo modo pelo aparelho administrativo escolar.
A pedagogia do atrasado mental aplica-se, pois, tanto aos professores como aos seus alunos: ambos são vasilhas enchidas pelos conteúdos da ideologia administrativa opressora. Não se pode planificar aquilo que se desconhece: a cultura na sua possibilidade transcendental. Quando se refugiam por detrás da sua «profissionalização», os professores denunciam-se como aquilo que são: eus colonizados pelo opressor, incapazes de pensar conjuntamente com os seus alunos sobre a realidade que os oprime interna e externamente, de modo a transcendê-la. A pedagogia crítica que só pode ser assumida por aqueles professores que odeiam visceralmente a opressão e a injustiça visa descolonizar o eu dos alunos, de modo a prepará-los para a libertação. A acção pedagógica do teórico crítico da educação regula-se apenas pelo interesse da emancipação: autonomizar os alunos dos efeitos castradores e mutiladores da pedagogia bancária
.
A compreensão das estruturas de mediação que formam a resistência estudantil no mundo sociocultural remove o conceito de resistência estudantil das mãos do comportamentalista ou da profundidade do psicólogo, para o inserir no terreno da teoria da sociedade. A resistência à cultura pode converter-se na cultura da resistência. A pedagogia crítica transforma-se então numa pedagogia da resistência, a qual resiste aos obstáculos que lhe colocam as consciências colonizadas, ao mesmo tempo que procura imunizar outras consciências contra esta ameaça. (Trata-se apenas de um breve fragmento dessa conferência, aliás muito extensa que pode ser lida na íntegra no livro das actas já referido.)
J Francisco Saraiva de Sousa

27 comentários:

Manuel Rocha disse...

Gostei e concordo com o fio condutor. Absolutamente. Voltarei à noite para elaborar um pouco sobre duas derivas que têm a ver com o espaço de liberdade do professor e da escola nos dias que correm. Ele existe, inclusive para cultivar o sentido critico. Mas para isso seria preciso que houvesse individuos preparados para sair com segurança do quadrado defensivo em que se refugiam com o seu fraco dominio das artes que pretendem ensinar. Como dizia há tempos um professor que muito prezo, "há sempre campo para cultivar as margens" ! Já era assim antes do 25 de Abril. Mas,tal como então, depende de quem.

Até logo, que vou trabalhar com professores.

Helena Antunes disse...

Gostei muito deste texto!

Tenho um amigo que se formou em Filosofia na FLUP!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel e Helena

Obrigado pelo vosso apoio! Como podem calcular, estou exausto e cansado de "polémica". Devo estar a ficar "velho". :)

E. A. disse...

Bom dia!

Grande festim sobre o post de ontem!

Mas este texto é muito, muito melhor! É este que deve ser lido com atenção, reflectido e discutido!
Reparem que 10 anos se passaram sobre a publicação deste ensaio e nada se contribuiu para a edificação da "instituição crítica"! Lacan tem razão quando diz que a ignorância n é um estado passivo, mas é um ingresso às areias pantanosas da estupidez! Que soem alarmes! Segurem-se aos braços das árvores! A electricidade neuronal entrará em curto-circuito!

N tenho tempo para dizer muito, apesar de me apetecer, mas quero sublinhar uma implicação implícita:

A escola como instituição crítica deve fornecer os conceitos necessários ao aluno que se queira libertar da sujeição-submissão ideológica: a imuno-cognição crítica é a arma que os professores e os seus alunos devem erguer para se defenderem da comunicação sistematicamente distorcida imposta pela burocracia educacional e pela política economicista dominante.

Os conceitos que fala, os instrumentos, devem ser introduzidos e sustidos pelo pensamento crítico, ou seja, a Filosofia. É ela que deve estar presente, desde logo e para sempre; deve ser a raiz e a possibilidade, o rigor do domínio e a libertação!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bom Dia Papillon

Sempre defendo a Filosofia! Só ela nos pode iluminar neste mundo escuro e indigente! Nem imagina as reacções e algumas muito boas. Nem tudo está mal. :)

pinto disse...

"Hummmm
Duas ameaças, uma aqui, outra no email... Caricato!
Mais um indício de falta de bom senso! Querem PIDE! Ganhe juízo e tenha coragem de argumentar racionalmente no espaço público, tendo em conta que vivemos em DEMOCRACIA!"

Provavelmente não conhece a lei nem sabe o que é difamação confunde-a com democracia de facto V. Exª pensa muito pouco e mal

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Pinto

Já todos conhecemos o que significa "ausência de pensamento", aquela que produz surtos de insanidade mental! Tenho todo o blogue a afirmar a democracia. Portanto, fique no seu espaço, em vez de dizer disparates! E consulte um psiquiatra!

pinto disse...

A propósito se queria ganhar protagonismo à custa dos Professores, não resultou.
É que sabe, voçê e o seu Blog não são minimamente importantes, daí que seja o último post que aqui coloco , em Tribunal veremos...é que a lei é para todos inclusivamente para os mais distraídos

E. A. disse...

Ai!
Então n é que, além de a-crítico é desavergonhado? Além de ignorante é obstinado?
CLISTERES-MENTAIS, PRECISAM-SE!

e processe! processe muito, que eu gosto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Não sei se são professores, mas, se forem, a Ministério da Educação e todos os órgãos de Soberania têm aqui a prova de que existem por aí uns atrasados mentais malcriados (matéria de processo) que se fazem passar por professores ou coisa do género.
Osga e Pinto: Reduzam-se a vossa mediocridade! Afinal, são dois cobardes malcriados! Dêem o rosto para serem processados em Tribunal.

António disse...
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J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Osga

Sou democrata e tenho sentido de humor. Não insultei ninguém, nem esse é o meu estilo. Assunto encerrado. :)

Setora disse...

"A sua mais nobre tarefa (dos professores) deverá ser ajudar os alunos a serem capazes de reflectir sobre a sua própria história, quer como indivíduos, quer como membros de sociedades mais vastas, e de usar essa reflexão justamente para alterar o curso barbarizante da história."

Pois, mas a formatação que temos é a desta barbárie. É difícil pensar para lá dos conceitos e referentes que temos inculcados. É, portanto, condicionada a reflexão que somos capazes de fazer sobre a nossa própria história.
E agora menos tempo temos para reflectir e até conversar sobre tudo isto.
Pintos e osgas nem merecem comentário. Estão mais avançados na barbárie.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Setora

Sei isso e também estou preocupado. Devemos ser unidos: qualidade da educação e defesa da dignidade dos professores.
Abraço

António disse...
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Manuel Rocha disse...

Francisco,

Permita-me uma sugestão: publique todos os comentários. Eu sei que aparentemente não esclarecem nada. Mas na realidade não é assim. São deveras importantes para ajudar quem luta pela dignidade deste nobre oficio do ensimo porque ajuda a separar as águas. haverá quem neles se reveja, sem dúvida, mas quero crer que mais haverá quem deles se demarque !

Apetecia-me publicar relatório da sessão de formação de professores. Seria imensamente esclarecedor. Mas nestas coisas há que preservar as questões de ética necessariamente implicitas.


Papillon,

Mil desculpas pelo "pipi", chegam ?
::))
Eu às teclas sou um desastre, peço imensa desculpa por essas e outras ...:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Os comentários foram muito ofensivos e até a Papillon não pouparam. Foi desagradável! Insultos mesmo!

Manuel Rocha disse...

Por isso mesmo, meu caro !

Publique !

As pessoas de baixo nivel têm que ser desmascaradas. A classe dos professores terá que reconhecer que tb as tem no seu seio em abundância e sentir-se compelida a resolver essa questão!

Sem essa separação de águas e respectivos reflexos na expressão pública pela demarcação dessas sub-criaturas, estão os professores a pactuar com a legitimação da generalização da suspeição sobre toda a classe !

António disse...
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António disse...
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J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Aqui está uma amostra!

António disse...
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António disse...

Toma lá que é democrático e aprende

http://www.youtube.com/watch?v=xSmdpgBX0jE

André LF disse...

Um sujeito chamado "pinto" não merece credibilidade...Seria cômico ver um Pinto consultando um psiquiatra.

André LF disse...

O Pinto no tribunal será castrado pela verdadeira justiça! Francisco, não perca o seu sagrado tempo tentando dialogar com sujeitos cujas mentes estão preenchidas por uma argamassa. Eles são inimigos da razão e do debate lúcido. São movidos exclusivamente pela paixão e pelo ressentimento. Isto mesmo, Papillon, chumbo neles!

André LF disse...

Excelente texto!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado André!
De facto, recusei alguns comentários por terem muitos palavrões. Depois o Manuel pediu para os aceitar e foi o que fiz. Posteriormente o próprio autor eliminou-os!
Vivemos aqui um conflito entre o ministério da educação e os professores. Um blogue de um professor da Univ. do Minho desapareceu. Era de humor! Isto é "ditadura"! :)