quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Sequestração e Mediação da Experiência

«Este movimento dialéctico que a consciência exercita em si mesma, tanto no seu saber como no seu objecto, enquanto dele surge o novo objecto verdadeiro para a consciência, é justamente o que se chama experiência». (Hegel, Fenomenologia do Espírito)
«Da reflexão sobre a vida nasce a experiência da vida. Os acontecimentos singulares que o feixe de impulsos e sentimentos em nós suscita na sua confluência com o mundo circundante e com o destino convertem-se nela num saber objectual e universal». (Wilhelm Dilthey)
Os mass media disponibilizam um vasto conjunto de experiências que as pessoas normalmente não adquirem nos contextos práticos da vida quotidiana.
O desenvolvimento das sociedades modernas implicou um reordenamento complexo das esferas da experiência. A emergência de sistemas especializados de conhecimento — a medicina e a psiquiatria — e de instituições especializadas, tais como os hospitais, os asilos, os hospícios e as prisões, implicou a remoção de determinadas formas de experiência dos locais da vida diária e concentrou-as em espaços institucionais particulares. Assim, os hospitais e as prisões constituem exemplos dramáticos desta sequestração da experiência, de resto bem analisados por Michel Foucault e Erving Goffman.
Sequestração da experiência ou, como prefere Giddens, isolamento da experiência significa privar as pessoas de viverem certas experiências nos lugares da sua vida diária. Estas experiências são retiradas dos contextos práticos da vida quotidiana e reconstituídas em instituições especializadas, cujo acesso pode ser muito restrito ou, de alguma forma, controlado. A noção de instituição total elaborada por Goffman exemplifica magistralmente este tipo de sequestração da experiência nos hospitais psiquiátricos.
Contudo, esta sequestração institucional da experiência foi acompanhada por outro desenvolvimento que, de certo modo, a neutraliza: a expansão das formas mediadas de experiência. Aquilo que era ou ainda é sequestrado pelas instituições volta a ser reinserido nos contextos práticos da vida diária através dos mass media: quer dizer que os mass media operam a dessequestração da experiência de acontecimentos geralmente envolvendo assuntos existenciais. Além disso, os mass media tornam disponível novas formas de experiência, independentemente de terem sido gradualmente separadas ou não do fluxo normal da vida quotidiana, ao mesmo tempo que produzem um contínuo entrelaçamento de diferentes formas de experiência.
A compreensão destes desenvolvimentos exige a distinção entre dois tipos de experiência: a experiência vivida e a experiência mediada.
1) Experiência vivida. O conceito de "experiência vivida" deriva da hermenêutica e da fenomenologia. Dilthey utilizou este termo para se referir à experiência adquirida pelo indivíduo no decurso normal da sua vida diária. A experiência vivida é a experiência que adquirimos durante o fluxo temporal das nossas vidas. Esta experiência é imediata, contínua e, até certo ponto, pré-reflexiva, no sentido de preceder geralmente qualquer acto de reflexão explícita. Além disso, é uma experiência situada, dado ser adquirida em contextos práticos da vida quotidiana. O seu conteúdo deriva basicamente das actividades práticas diárias de rotina e do encontro dos indivíduos com outros em contextos de interacção face a face.
2) Experiência Mediada. A experiência mediada refere-se ao tipo de experiência que adquirimos através da interacção ou da interacção quase-mediada. A experiência adquirida através da interacção quase-mediada diferencia-se da experiência vivida em quatro aspectos:
1. A experiência mediada possibilita experienciar eventos ou acontecimentos que, na sua maior parte, estão distantes espacial ou mesmo temporalmente dos contextos práticos da vida diária. Dado não serem presenciados directamente no fluxo das actividades normais da vida diária, estes eventos têm um carácter refractário: Os indivíduos que os vêem através dos mass media não podem afectá-los ou controlá-los. Por outro lado, esses eventos não afectam directamente as vidas dos receptores. Contudo, não se pode negar as conexões causais entre os eventos mediados e os contextos práticos da vida, como atesta o fenómeno da violência.
2. A experiência mediada acontece num contexto diferente daquele onde o evento ocorre efectivamente. A experiência mediada é sempre experiência recontextualizada, através da recepção e apropriação dos produtos dos mass media nos contextos práticos da vida diária. O carácter recontextualizado da experiência mediada é a fonte tanto do seu encanto como da sua capacidade de chocar e desconcertar. O encanto da experiência mediada reside no facto dos mass media possibilitarem às pessoas deslocarem-se e viajarem para novos e diferentes espaços de experiência, sem ser necessário alterar os contextos espaço-temporais das suas vidas diárias. Torna-se assim possível viajar sem sair do mesmo lugar. A capacidade de chocar e desconcertar da experiência mediada reside no facto dos mass media contrastarem contextos e mundos divergentes que subitamente se unem numa experiência mediada chocante e desconcertante, tais como o mundo pacífico do receptor ser confrontado com cenários de guerra e de morte.
3. A experiência mediada relaciona-se com a relevância estrutural. O self é, em certa medida, um projecto simbólico que o indivíduo modela e remodela no decurso da sua vida. Ora, este projecto implica um conjunto de prioridades continuamente modificáveis que determinam a relevância ou não de experiências reais ou possíveis. Isto significa que não damos a todas as experiências o mesmo peso ou importância; pelo contrário, orientamo-nos para aquelas experiências que fazem parte das prioridades do projecto que queremos ser. É, por isso, que as experiências actuais ou potenciais são estruturadas em função da relevância que têm para a construção do self. A relevância aplica-se tanto à experiência vivida como à experiência mediada, com a diferença desta última não ser um fluxo contínuo mas uma sequência descontínua de experiências, cujos graus de relevância variam em função das prioridades do self.
4. A experiência mediada implica, finalmente, a não espacialização comunal. Ao contrário do que sucede com a experiência vivida, o que há de comum na experiência mediada não é a proximidade espacial dos indivíduos — a partilha de um mesmo local comum, mas o seu acesso comum às formas mediadas da comunicação social.
Como é viver num mundo mediado? O que acontece ao self num mundo cada vez mais mediado e global? Tanto Jean Baudrillard como Frederic Jameson pensam que a profusão de mensagens e de imagens mediadas dissolve efectivamente o self como uma entidade coerente e forte, ou seja, o self é absorvido pela desarticulada exibição de símbolos mediados. À medida que o indivíduo se torna cada vez mais aberto às mensagens mediadas, o self torna-se, na mesma proporção, cada vez mais disperso e descentrado, perdendo assim qualquer unidade ou coerência que pudesse ter tido. Como as imagens reflectidas num espelho, o self torna-se um jogo sem fim de símbolos que mudam a cada momento que passa. Nada é estável, nada é fixo e não há entidade separada da qual estas imagens sejam o reflexo. Na idade da saturação dos mass media, as múltiplas e mutáveis imagens são facetas do self, ou, parafraseando Goffman, por detrás das imagens ou das máscaras não se esconde nenhum si-mesmo.
Embora não se possa negar a pertinência destas observações, aliás bastante pessimistas quanto aos efeitos dos mass media, convém afirmar que o self não foi dissolvido pela profusão de mensagens mediadas, mas transformado, juntamente com as condições da sua formação. A crescente disponibilidade de materiais simbólicos mediados permite ao self desembaraçar-se dos locais e dos contextos da vida quotidiana, sobretudo naqueles indivíduos que preferem utilizar a Internet. Esta libertação pode ser vista como um enriquecimento do self, dado abrir a sua natureza para influências provenientes de locais distantes, sem impedir a sua participação activa.
Viver num mundo mediado implica assim um contínuo entrelaçamento de formas diferentes de experiência, das quais os indivíduos dependem cada vez mais para informar e remodelar a seu projecto. Graças à disponibilidade e ao acesso aos novos media electrónicos, as experiências mediadas criam novas oportunidades, novas opções e novas arenas para a experimentação de si-mesmos. A libertação dos locais da vida normal lança o indivíduo para dentro de um mundo extremamente complexo, onde ele é chamado a formar uma opinião, a tomar uma decisão ou, até mesmo, a assumir novos tipos de responsabilidade por questões ou eventos que acontecem em lugares distantes num mundo cada vez mais global.
J Francisco Saraiva de Sousa

7 comentários:

Manuel Rocha disse...

Gostei muito deste texto. E acho que assenta que nem luva a fenómenos de consciência mediada como é o caso da dita "consciência ambiental". Maioritariamente as pessoas dão exemplos de problemas ambientais antipodas porque não têm elementos para descodificar a experiência imediata dos seus quotidianos.
Ontem comentavamos certos modos de viajar ( turismos de massas)para os quais esta análise também é muito pertinente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Exacto e foi isso que me levou a escrever este post.
Falta pensar uma data de modalidades da experiência mediada que permitem desconstruir o modo de fazer notícias, por ex., ou o turismo. :)

André LF disse...

Ao procurar, no Google, referências sobre Arnold Gehlen, fui transportado para este Blog que, para mim, tem sido uma maravilhosa descoberta. Francisco, aqueles que dizem que você pratica "ociologia" estão completamente equivocados. Parabéns pela escolha dos filósofos, dos temas e, sobretudo, pelos seus comentários lúcidos e oportunos. Estou lendo tudo o que foi publicado no seu blog.
Um abraço do André.
São Paulo, Brasil.

E. A. disse...

Gostei desta reflexão sobre o sequestro da experiência; sobretudo porque esta palavra (não sei se foi escolhida por si) encerra em si mesmo o problema: há o escamoteamento de uma experiência vivida, resgatada pela experiência mediada, mas com uma paga: as consequências de viver num mundo despido, cujo acesso é virtual.
Concordo consigo que o self não morre, até porque em qualquer modo de ser, a sua condição é ter de ser livre, no sentido de ter de ganhar uma forma, ao se informar. Mas quero ressalvar o estilhaçamento do sujeito. Em sequência ao texto sobre a "carnavalização" da vida, penso que o abuso da máscara enfraquece o self e o deforma. Os modelos de personalidades que temos, e que os jovens seguem, são eles mesmo máscaras magnificamente produzidas. A internet é um atraente baile de máscaras, e por aí adiante. Ou seja, um mundo esquivo, em que a solidificação do self se torna ela mesma ilusória; a criação de identidade, a individuação, existindo, é fraca e heterónoma. E admitindo que este processo obscuro é subversor, não posso ser muito optimista com a experiência mediada. Como, de resto, já fiz ver noutras discussões, em particular sobre o uso da Internet.

Il faut arracher la masque! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado pelos vossos brilhantes comentários, Manuel, Papillon e André do Brasil. Bem-vindo!
Papillon, adorei o seu comentário e esse nome reconduz-me a uma peça de Sartre; daí a preferência por sequestro em vez de isolamento ou privação!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André, afinal nós portugueses e brasileiros somos "farinha do mesmo saco". Mas temos um bom instrumento de trabalho: a língua que nos une e cuja ascendência é boa (latim e grego). Procuro cultivar o optimismo, embora por vezes desespere! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

respeito as suas reservas em relação à net, com as quais conta com o meu assentimento. porém, ao contrário da primeira geração dos media electrónicos, esta última dá-nos a possibilidade de sermos activos e de criar a nossa própria agenda, espacando à passividade que nos impõe, por ex, a TV. Nem tudo é perfeito, mas tb depende da nossa vontade de participar e de fazer uso da palavra. Adorei este seu comentário. Bons sonhos! :)))