sexta-feira, 30 de maio de 2008

Imortalidade e Reciclagem

Na nossa sociedade, o infinito foi reduzido a uma série de "aqui(s) e agora(s)" e a imortalidade foi reduzida a uma reciclagem interminável de nascimentos e de mortes. O nosso mundo abdica da transcendência e a vida é vivida sem ser necessário dar o salto para a eternidade. Uma vida longa e em plena forma constitui hoje o valor supremo e a finalidade principal dos esforços de vida. Pela primeira vez na História da Cultura Ocidental, os mortais dispensam a imortalidade e parecem ser felizes sem ela.
A durabilidade foi substituída pelo transitório, que tem elevados preços ambientais, humanos e culturais. As pessoas vivem os dias e contam os dias sem "garantias" e sem pensar: uma vida estranha esta! Por isso, critico a cirurgia estética: ela representa o fim da Beleza natural e, nesta matéria, a natureza não privilegia todos com a mesma medida. E que beleza se compra? Um rosto martelado, retocado e repuxado é belo? Perde a elasticidade e a capacidade de sorrir/rir: é inumano e inestético. "Vida longa"? Para quê? "Plena forma"? Que forma? A verdade é que a vida perdeu todo o sentido: aquela noção moderna de conquistar a imortalidade na família, na nação, na fama individual, perdeu-se. Agora predomina a "notoriedade", mas esta é cativa do instante e daquilo a que chamo a reciclagem.
Uma obra interessante sobre este tema é a de Michael Thompson, "Rubbish Theory: The Creation and Destruction of Value", onde mostra claramente a relação estreita entre durabilidade e privilégio social e entre transitoriedade e privação social. Ao longo da nossa história, as elites de todas as épocas rodeavam-se de objectos duradouros, quase indestrutíveis e faraónicos, deixando para os pobres os objectos frágeis e corruptíveis. Hoje assistimos à inversão desta relação: estar rodeado dos restos da moda de ontem é tomado como sintoma de atraso ou privação. Este é o sentido da sociedade de consumo: mobilidade, extraterritorialidade e rejeição da vinculação aos objectos e as pessoas.
Este pensamento constitui um aprofundamento da filosofia do homem metabolicamente reduzido, mas, como este post foi muito comentado, resolvi completar o texto com alguns dos meus comentários e dá-lo por concluído, eliminando a referência à "vergonha nacional": uma massa amorfa sem história.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Portugal e a Questão Judaica

«O Judeu está em situação de Judeu porque vive no seio de uma comunidade que o tem como Judeu». (Jean-Paul Sartre)
A questão judaica ainda não foi estudada em Portugal: a única obra que merece algum crédito é a de António José Saraiva, "Inquisição e Cristãos-Novos". Esta obra gira em torno de duas datas terríveis da História de Portugal: 1496 quando D. Manuel seguiu o exemplo dos Reis Católicos (1492) e ordenou a expulsão de todos os judeus, tanto os castelhanos como os portugueses, e 1531 quando D. João III pediu ao papa a licença necessária para a organização da Inquisição em Portugal, bula concedida em 1536. A tese de António José Saraiva é a de que os judeus foram "assimilados", dando origem aos "cristãos-novos" ou "marranos". Contudo, a Inquisição revela que a assimilação não conseguiu extinguir a prática do judaísmo, porque muitos judeus, convertidos à força, continuavam a ser judeus por dentro ("criptojudeus") e, num momento em que o Estado vivia com dificuldades económicas, as suas grandes fortunas eram alvo da cobiça dos luso-reduzidos "cristãos-velhos". Antero de Quental tinha razão quando afirmou que a causa do atraso dos povos ibéricos residia na Igreja Católica: o judaísmo e o protestantismo foram religiões que fomentavam o novo modo de produção capitalista emergente (Max Weber), enquanto o catolicismo defendia a manutenção de relações de produção feudais. A expulsão dos judeus e a Inquisição são factores que ajudam a compreender o atraso estrutural de Portugal ou mesmo da Europa do Sul: a nossa história pode ser vista como a história de ladrões corruptos sediados em Lisboa.
O programa "O Lugar da História" da RTP2 tem tratado da questão judaica e, no episódio 16, abordou a diáspora dos judeus portugueses: a referência às comunidades de judeus portugueses de Hamburgo conhecida por "Jerusalém do Norte" e de Amesterdão reconduziu-me a um post anterior, onde acusava a inveja essencial portuguesa pela expulsão dos judeus de Portugal em 1496 e pela nossa periferia espiritual (e não apenas geográfica, como dizem os economicistas de hoje) na Europa. Na sequência do decreto de expulsão dos judeus assinado por D. Manuel em 1496, muitos cristãos-novos portugueses estabeleceram-se na Alemanha e na Holanda, entre outros países, e, em muitos casos, regressaram ao judaísmo nas nações que os acolheram. Em algumas cidades holandesas e alemãs, os cristãos-novos portugueses formaram comunidades fortes dedicadas ao comércio, mas também às artes e à cultura. A cidade de Hamburgo relembrou recentemente essa comunidade que se manteve até à II Guerra Mundial, homenageando os seus judeus de origem portuguesa. Alguns dos nossos judeus alemães regressaram a Portugal quando Hitler os perseguiu, estabelecendo-se na cidade do Porto e em Lisboa, outros foram para Israel, onde ajudaram a construir este novo país, assumindo altos cargos, sem perder contacto com velhas memórias portuguesas, ou para outros países, enquanto muitas famílias inteiras morreram nos famosos campos de extermínio nazi: a Solução Final, uma prática bem conhecida pelos luso-reduzidos cristãos-velhos portugueses que se mantêm no poder até hoje, plasmada no caso Apito Final.
A expulsão dos judeus de Portugal teve consequências nefastas no destino de Portugal, não só ao nível económico, atrasando o desenvolvimento capitalista, mas também ao nível cultural, deixando-nos sem um pensamento nacional original. Apenas vou referir alguns grandes nomes de judeus portugueses que, já no exílio, começaram a dar forma à filosofia "portuguesa":
Isaac Abravanel, pai de Leão Hebreo, dedicou-se a operações financeiras, à política e a escrever comentários ao Antigo Testamento. Segundo Carl Gebhart, ele foi considerado o «último grande comentador da Bíblia da Idade Média judaica».
Leão Hebreo nasceu em Lisboa em 1460, recebeu o nome de Jehuda Aberbanel e estudou medicina. Depois de terem sido expulsos da Península Ibérica, fixaram-se em Nápoles, onde Leão Hebreo entrou em contacto com a Academia platónica de Florença e, em colaboração com Pico de Mirandola, procurou elaborar uma síntese de Platão e Aristóteles, interpretando-os a partir de Averrois. Contudo, a sua visão do mundo inspirada nos gregos acabou por integrar elementos do misticismo judaico, elementos astrológicos e elementos da teoria macro-microcosmos, tal como fora exposto por Moisés Maimonides. Dessa síntese resultou a sua obra "Dialoghi d'Amore" (1535), onde expôs a sua visão do mundo. A obra é composta por três diálogos: o primeiro trata da essência do amor, o segundo do amor como energia cósmica (cosmologia) e o terceiro do amor como fundamento e objectivo do mundo (metafísica).
Oróbio de Castro e Samuel Usque. Apenas são referidos por Lopes Praça sem referências bibliográficas. O último escreveu "A Consolação às Tribos de Israel".
Abrahão Ferreira. Nasceu em Portugal e emigrou para a Holanda. Na sua obra "Porta del Cielo" (1655) tentou traçar o paralelo entre a teoria cabalística e a filosofia platónica. E, na sua obra "Epitome y Compendio dela Logica", tentou associar cabalística, platonismo e aristotelismo.
Samuel da Silva. Nascido em Portugal, exilou-se em Amesterdão, onde escreveu o "Tratado da Immortalidade da Anima" (1623). Seguindo parcialmente Platão, defende a tese oposta à aceite por Uriel da Costa.
Uriel da Costa. Falecido em 1640, escreveu esta obra, "Exame de tradicoens farisaicas conferidas com a lei escrita contra a immortalidade da alma", onde, seguindo o averroísmo latino, nega a imortalidade da alma. A obra de Samuel da Silva critica esta posição. Carolina Michaëlis, portuguesa de origem alemã, dedicou-lhe uma bela obra (1922).
João Serram. Nascido em Tavira, médico e professor de medicina, escreveu a obra "Mosaica Filosofica" (1602), em que tentou basear a Filosofia no Génesis.
E, finalmente, num plano superior e para além da inspiração platónica e neoplatónica, o nosso Espinosa.
Estes judeus portugueses, com excepção de Espinosa, foram renascentistas tardios do século XVII e ligados ao platonismo e ao neoplatonismo, embora alguns tenham tentado realizar uma síntese entre Platão e Aristóteles. Recorri à obra do alemão Lothar Thomas (1944), "Contribuição para a História da Filosofia Portuguesa", a única que merece confiança. As outras são nacional-reduzidas: A "História da Filosofia em Portugal" de Lopes Praça fornece bibliografia, mas omitiu estes pensadores portugueses. Também se podem consultar as obras de Pinharanda Gomes e de Barbosa Machado, escritas em chave cristã-velha e decadente. Quanto aos judeus em Portugal é melhor seguir autores estrangeiros, tais como José Amador de los Rios, Meyer Kayserling e André Chouraqui. Convém lembrar que o Padre António Vieira teve contactos com os nossos judeus no exílio (Holanda).
Infelizmente, ainda não temos bons estudos sobre estes pensadores originais portugueses judeus. Os que existem estão adulterados pelo sentimento de inveja nacional. Estes pensadores originais portugueses expulsos de Portugal viram a filosofia em conexão com a medicina, um aspecto muito curioso da nossa filosofia.
ANEXO. Já agora recomendo que veja hoje às 00:20 na RTP2 "O Lugar da História", dedicado a um judeu do Porto: "BARROS BASTO, O CAPITÃO MAL AMADO". "Neste Programa/Documentário biográfico sobre Artur Carlos de Barros Basto, capitão do Exército Português de origem judaica, nascido em 1887. Organizador e fundador da comunidade judaica do Porto, distingue-se no campo militar, na I Grande Guerra. Vivendo numa época de grande agitação política, assiste ao Regicídio, integrando a Carbonáia e a Maçonaria. Com a implantação do Estado Novo, torna-se um crítico do regime. Nos anos trinta, uma denúncia acusa-o de pederastia com alunos do Instituto Teológico Judaico, queixa não provada, mas que conduz à sua expulsão do Exército. Após a queda do "ancien" regime, a família tenta infrutiferamente a sua reabilitação, sem sucesso até hoje".
ANEXO. Quanto ao meu post inconcluso, "A Agonia do Homo Sexualis", verifico que nós homens estamos de acordo: Eu, o André LF e o Vítor Pimenta. No próximo mês, sai a versão final desse post.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Marvin Minsky e Sociedade da Mente

Marvin Minsky, o célebre matemático e cientista de computadores, elaborou:
«(...) uma ideia muito simples: a de que a nossa mente possui colecções de diferentes métodos de actuar», isto é, a ideia da mente como "conjunto de kludges" ou de "soluções improvisadas para os problemas". Chamou-lhe a teoria da sociedade da mente.
Com esta ideia simples que implica a noção de cérebro como complexo de "subcomputadores que desempenham tarefas diferentes", Minsky pretende demolir a ideia comum de que «no interior de cada um espreita outra pessoa, a que chamamos o nosso "eu" e que se encarrega do nosso pensamento, dos nossos sentimentos, das nossas decisões e dos nossos planos, e mais tarde aprova ou lamenta». Aquela noção a que Daniel Dennett chamou "Teatro Cartesiano": «a fantasia universal de que no interior mais profundo da mente existe um lugar central especial onde todos os acontecimentos mentais finalmente se reúnem para serem vividos». Uma descrição tópica (espacial), portanto, discutível, da mente cartesiana que deixa no ar a questão: uma "fantasia" de quem?
Minsky interroga-se: Porque é esta ideia da mente cartesiana tão popular? E responde: «porque não explica nada». Pelo menos ficamos a saber que Minsky é como os seus robôs com olhos e mãos, um perfeito zombie! Porque é um ser destituído daquilo que nomeia maquinalmente "eu interior imaginário" que nem sequer pode ser convocado para assumir responsabilidades no mundo público. O sistema computacional apenas funciona, improvisando soluções para os problemas.
Detecta-se facilmente o que está por detrás deste "pensamento maquinal": uma economia irracional que deseja moldar os seres humanos à "imagem" do sistema metabolicamente reduzido. Nada melhor para o conseguir do que "lhes roubar a mente autónoma" ou qualquer outra função mental que lhes permita recusar e desobedecer, em especial aquela que decide livremente e assume responsabilidade pelos seus actos num mundo partilhado. Se não houvesse outra função do eu interior para além desta função política, ela seria suficiente para conservar a "mitologia do eu interior", isto é, para rejeitar a verdadeira mitologia da mente social computacional, mero agregado articulado de programas informáticos. A psicologia encarada como engenharia de software ao contrário, que pela observação do sistema procura descobrir a sua programação, revela ser uma tecnologia de adaptação: o ser humano é reduzido à condição de máquina obediente e estúpida através de uma operação tecnológica de dissolução do criador na criatura. A sociedade da mente significa, portanto, a colonização da mente humana por parte da economia capitalista que visa produzir os seus próprios consumidores destituídos de verdadeira inteligência. Não admira que Minsky preferisse a literatura de ficção científica em vez da literatura clássica: a mente que julga explicar através do fabrico de robôs é uma versão tecnológica das personagens de ficção científica comercial que se movem num cenário social de colecção de coisas.
Se Minsky lesse este comentário, ripostava, talvez ofendido! Mas ele é um mero robô destituído de self e os robôs ainda não foram programados para simular comportamentos ou processos mentais de ofensa! Uma teoria que produz robôs para simular tarefas humanas, para depois reduzir o humano ao robótico, não merece respeito: é profundamente ridícula, ideológica e maldosa, porque visa a dominação anestésica do homem. Reencontramos novamente Heidegger que, aquando da entrevista Der Spiegel, advertiu que «o papel da filosofia até aos nossos dias foi agora tomado pelas ciências. (...) A filosofia dissolve-se em ciências particulares: a psicologia, a lógica, a politologia». Actualmente, segundo Heidegger, o lugar da filosofia foi tomado pela "cibernética", precisamente a cibernética que orienta a robótica do humano de Marvin Minsky: uma ideologia psico-técnica colocada ao serviço da produção em série de humanos anestesiados que, dispensando o pensamento, se entregam com o rosto feliz ao consumo do planeta convertido em bem de consumo pela economia capitalista tardia. Aqui reside precisamente o perigo da tecnologia: regressão cognitiva e atrofia dos órgãos mentais.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 27 de maio de 2008

Prós e Contras: Crise Económica: Como vamos resistir?

Hoje "Prós e Contras" (26 de Maio de 2008) foi novamente dedicado à crise ou às crises económica(s) do capitalismo. A questão fundamental colocada pela Fátima Campos foi a que deu título ao programa: Como vamos resistir? O que esteve em debate foi precisamente a capacidade de resposta da economia portuguesa à crise internacional. Ora, o governo já respondeu com "seis medidas emblemáticas". Teodora Cardoso e Basílio Horta acreditam que essas medidas são suficientes para fazer frente aos constrangimentos da economia global. Mas Medina Carreira, António Nogueira Leite e Sérgio Ribeiro mostraram-se menos convencidos e com razões de peso.
Medina Carreira fez uma análise séria da economia portuguesa e apresentou-a em dois gráficos: o primeiro gráfico de linhas mostrava que a situação económica portuguesa acompanhava ao longo do tempo a situação económica da Europa, embora num perspectiva negativa, e no segundo gráfico as barras foram demolidoras para o discurso da mentira política e jornalística: ao longo das últimas décadas (70 até hoje) a economia portuguesa está a ficar cada vez mais frágil. A partir destes gráficos, Medina Carreira exigiu, numa polémica dura com Basílio Horta, uma "política da verdade", em vez da "política da conversa" dos governos nacionais ou mesmo da União Europeia: os portugueses estão cansados de ser massacrados em nome de "promessas" ou de objectivos que nunca se concretizam. Estamos mais pobres e mais miseráveis em todos os sentidos do termo, incluindo o sentido educacional, judicial e ambiental: esta é a verdade e deve ser a partir de um discurso verdadeiro que as políticas de futuro devem ser discutidas.
Medina Carreira chegou mesmo a referir a capacidade anestésica das políticas da conversa: os portugueses são efectivamente anestesiados desde o 25 de Abril de 1974. Este discurso mentiroso tem sido protagonizado pelo economicismo predominante que apresenta tudo como uma "fatalidade" que os governos fingem controlar quando é a União Europeia, mais precisamente o Banco Europeu, que controla tudo em função de políticas monetaristas irracionais. Sérgio Ribeiro que levou consigo um volume das Obras Escolhidas de Marx e Engels, cuja tradução devia ser urgentemente revista por peritos, lembrou que, nas Faculdades de Economia, já não se estuda Marx ou mesmo a economia política clássica: o economicismo protagonizado pelos economistas do capitalismo constitui efectivamente o maior inimigo da sociedade. António Nogueira Leite, seguidor da economia neoclássica, reconheceu que era necessário ensinar "teorias alternativas", de modo a ocupar o vazio de pensamento criativo produzido pela apologética vulgar e unidimensional do capitalismo autodestrutivo.
Quem já me conhece sabe bem que estou do lado de Medina Carreira e de António Nogueira Leite: Portugal perdeu quase todo o seu tecido industrial desde que aderiu à UE e depende dos "serviços" (70%), que, em termos de exportações, contam pouco, apesar de Basílio Horta ter integrado as novas empresas tecnológicas nesse sector. Com o tecido industrial destruído e depauperado, com a deslocação constante das empresas e dos capitais, com as pescas subaproveitadas e com a agricultura miserável que se pratica, Portugal vive da especulação financeira dos Bancos (o crédito e a especulação financeira) e da ajuda da União Europeia, sem pensar garantir o futuro. As reformas da administração pública, da educação e da justiça, aquelas que competem aos governos, são insuficientes e, por vezes, erram o alvo. O economicismo dominante usa sempre a mesma varinha revestida de estatísticas falseadas: assaltar o bolso dos portugueses e tentar atrair capitais estrangeiros, alegando que os trabalhadores portugueses, além de serem mão-de-obra "qualificada" barata, não fazem greves. Isto foi dito textualmente por Basílio Horta e Teodora Cardoso avançou com outras ideias terríveis para fazer dinheiro, uma das quais mexia com a saúde dos portugueses. A iniquidade moral e social das desigualdades sociais de que falou Medina Carreira continua instalada e o pensamento económico do capitalismo não pretende fazer nada para lhe pôr termo, até porque a medida avançada por Medina Carreira de fazer os ricos pagarem mais foi ineficaz, como "demonstrou" o caso francês referido prontamente por Teodora Cardoso: os ricos não querem pagar mais e, se forem forçados, deslocam os seus capitais para o estrangeiro. Teodora Cardoso, supostamente uma economista "socialista", afirmou que o capitalismo vive em crises permanentes e é o único sistema capaz de as superar, mesmo que demore algum tempo, enfim o tempo de praticamente toda a História de Portugal, sobretudo a das últimas três décadas, aquelas que mais desgastaram os portugueses devido à expectativa democrática traída.
O mais escandaloso nesta conversa económica entre economistas foi o facto de quase ninguém ter levado em conta a saúde do ambiente e a necessidade de alterar o estilo de vida dos portugueses. A excepção foram novamente Medina Carreira e Nogueira Leite que acentuaram a degradação do ensino e da educação, a miséria da "justiça" nacional, a política inactiva contra a corrupção, a ausência de uma política de dignificação do trabalho e do trabalhador, a destruição corrupta da cultura do mérito, ou a necessidade de reduzir o consumo de combustíveis.
Apreciei especialmente a crítica da educação em Portugal: As Escolas Superiores de Educação destruíram o ensino. Os investimentos avultados realizados no sistema de ensino não produziram resultados positivos: "professores ignorantes" e "alunos desmotivados" são a face visível da situação da degradação da educação nacional. Todos sabemos que, nesta situação e com estes professores e alunos, Portugal não vai ser capaz de qualificar os portugueses. A regressão mental e cognitiva tomou conta do país, a começar pelos políticos, magistrados, economistas, engenheiros e jornalistas. Mais uma vez coube a Medina Carreira, com a preciosa ajuda de Nogueira Leite, denunciar a estupidez do jornalismo nacional e a bárbarie cultural. Sérgio Ribeiro traiu Marx quando fez a defesa dos professores e dos alunos.
Apenas desejo ver o governo do Partido Socialista fazer um outro esforço para além do que tem feito a favor de Portugal: tomar consciência de que os portugueses estão exaustos e completamente perdidos e endividados, para manter um estilo de vida consumista que não nos leva a parte alguma. Precisamos de um projecto de futuro e tomar medidas realistas para garantir o futuro de um Portugal sem angústia e mais esclarecido. Se o sistema pseudodemocrático português bloqueou a possibilidade de produção de alternativas, devido às políticas corruptas que recrutam os funcionários não em função do mérito mas da cunha, então o governo que diz apostar nas qualificações e na educação deve dirigir a sua atenção para todo o sistema de ensino, a começar pelo primeiro ciclo e a terminar no ensino universitário: os seus professores são tendencialmente incompetentes e apostar neles é adiar eternamente o futuro de Portugal. Caso contrário, não iremos conseguir resistir e continuaremos a ser um país miserável com vergonha da sua pobreza.
Recomendo vivamente a leitura destes dois posts: um do Fernando Dias e o outro do Manuel Rocha. Clique e leia.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de maio de 2008

O Holocausto não foi um Mito

Recebi hoje este e-mail que passo a transcrever:
"This week United Kingdom removed the Holocaust from schools because it 'ofended' the Moslem population that claims the Holocaust never happened...
"Didn't it? Check the photos! (Talvez amanhã resolva inserir algumas das imagens recebidas.)
"Exactamente, como foi previsto há cerca de 60 anos…
"É uma questão de História lembrar que, quando o Supremo Comandante das Forças Aliadas (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, etc.), General Dwight D. Eisenhower, encontrou as vítimas dos campos de concentração, ordenou que fosse feito o maior número possível de fotos, e fez com que os alemães das cidades vizinhas fossem guiados até aqueles campos e até mesmo enterrassem os mortos.
"E o motivo, ele assim explanou: 'Que se tenha o máximo de documentação - façam filmes - gravem testemunhos - porque, em algum momento ao longo da história, algum idiota se vai erguer e dirá que isto nunca aconteceu'.
"«Tudo o que é necessário para o triunfo do mal, é que os homens de bem nada façam»". (Edmund Burke)

"Relembrando:
"Esta semana, o Reino Unido removeu o Holocausto dos seus currículos escolares porque "ofendia" a população muçulmana, que afirma que o Holocausto nunca aconteceu...
"Este é um presságio assustador sobre o medo que está a atingir o mundo, e o quão facilmente cada país se está a deixar levar.
"Estamos há mais de 60 anos do término da Segunda Guerra Mundial.
"Este email está a ser enviado como uma corrente, em memória dos 6 milhões de judeus, 20 milhões de russos, 10 milhões de cristãos, e 1900 padres católicos que foram assassinados, massacrados, violentados, queimados, mortos à fome e humilhados, enquanto a Alemanha e a Rússia olhavam em outras direcções.
"Agora, mais do que nunca, com o Irão, entre outros, sustentando que o "Holocausto é um mito", torna-se imperativo fazer com que o mundo jamais esqueça.
"A intenção de enviar este email, é que ele seja lido por, pelo menos, 40 milhões de pessoas em todo o mundo.
"Seja um elo desta corrente e ajude a enviar o email para todo o mundo. Traduza-o para outras línguas se for o caso!"
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 25 de maio de 2008

Tecnologia ou Eclipse do Pensamento?

Como este post retomamos o tema abordado num post anterior dedicado a "Heidegger e a Questão da Técnica", com o objectivo de mostrar a superioridade do pensamento da técnica planetária de Karl Marx.

A actual crise dos preços elevados dos combustíveis mostra claramente que, nesta arena da globalização capitalista, todos os homens são funcionários do sistema de ordenamento técnico que é comandado pela economia capitalista e as suas grandes empresas, neste caso pelas companhias petrolíferas e pela especulação financeira. Na secção d' "O Princípio Esperança" dedicada às utopias técnicas, Ernst Bloch mostrou que o pensamento burguês se distancia da matéria de que trata, porque tem como fundamento uma economia que é dirigida exclusivamente não para os "cereais" mas para os seus preços. A passagem do (valor de) uso à troca operada pelo capitalismo converteu todos os bens de troca em mercadorias abstractas e estas foram transformadas em capital lucrativo. A esta mudança corresponde o aparecimento do cálculo "estranho" não só aos homens mas também às próprias coisas, um cálculo perfeitamente indiferente ao conteúdo de uns e de outros. Este cálculo económico esquece o "orgânico" e o sentido da "qualidade", desencadeando a crise ecológica que é, na sua essência, uma crise antropológica. A compreensão desta conexão fundamental entre a técnica moderna e a economia capitalista conduz necessáriamente à elaboração de uma nova filosofia da natureza e à tentativa de realizar a "esperança técnica" (Bloch).
Este é um dos aspectos da tecnologia moderna que Heidegger desprezou nos autores que o inspiraram e que não nomeou, a começar por Georg Lukács e Ernst Bloch: a tecnologia está ao serviço do capitalismo e é esse facto que a torna perigosa. Negligenciar o capitalismo na questão da técnica é submeter-se aos imperativos do sistema de mobilização total e esquecer a tarefa revolucionária fundamental: a mediatização da natureza com a vontade humana, o regnum hominis na e com a natureza (Bloch)
.
Heidegger omitiu sistematicamente os autores marxistas nas suas obras, embora a "Carta sobre o Humanismo" refira elogiosamente Marx: «Pelo facto de Marx, enquanto experimenta a alienação, atingir uma dimensão essencial da história (a alienação do homem vista como a apatridade do homem moderno), a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia.» Este reconhecimento parece anunciar um «possível diálogo produtivo com o marxismo» que Heidegger nunca levou a cabo, pelo menos explicitamente. Contudo, nesse mesmo texto, Heidegger aprisiona o marxismo na determinação metafísica que o seu pensamento pretende superar/destruir: «A essência do materialismo não consiste na afirmação de que tudo apenas é matéria; ela consiste, ao contrário, numa determinação metafísica, segundo a qual todo o ente aparece como matéria de um trabalho», de resto já antecipada por Hegel. Heidegger pode assim ligar a essência do materialismo à essência da técnica, descartando-se do marxismo visto como o culminar da metafísica: «A essência do materialismo esconde-se na essência da técnica; sobre esta, não há dúvida, muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, na sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. (...) Enquanto uma forma da verdade, a técnica funda-se na história da Metafísica».
Porém, como demonstraram Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Alfred Schmidt, Henri Lefebvre ou Kostas Axelos, as noções marxianas de natureza, história, cultura e técnica são muito mais complexas e ainda não foram devidamente compreendidas. Embora a leitura ética não tenha sido escolhida ou rejeitada por Marx, ele parece recorrer à estética para apresentar a Terra como uma obra. Neste caso, a filosofia da natureza desmistificada de Heidegger está prefigurada em Marx, de um modo muito mais interessante e produtivo. E, se for assim, a crítica que Heidegger dirige às axiologias tem pertinência e pode ser recuperada e aprofundada através de uma nova leitura de Marx que, procurando intensificar e alargar a vida, rejeita definitivamente a ideia perigosa de um fim da alienação a partir de um acto absoluto, filosófico (Hegel) ou sócio-político (Marx). Como escreveu Heidegger: «O valorar não deixa o ente ser, mas todo o valorar deixa apenas valer o ente como objecto do seu operar. O esdrúxulo empenho em demonstrar a objectividade dos valores, não sabe o que faz. Quando proclama «Deus» como «o valor supremo», isto significa uma degradação da essência de Deus. O pensar através dos valores é, aqui, e em qualquer outra situação, a maior blasfémia que se pode pensar em face do ser. Pensar contra os valores não significa, portanto, propagar que o ente é destituído de valor e que é sem importância; mas isto significa levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a subjectivação do ente em simples objecto».
A «Meditación de la Técnica» de José Ortega y Gasset é substancialmente mais profunda que as «meditações da técnica» de Heidegger, embora possam ser confrontadas e articuladas, de modo a clarificar a «essência» da técnica, mediante a recuperação do pensamento utópico de Ernst Bloch e das antropologias filosóficas de Max Scheler, H. Plessner e Arnold Gehlen. Embora não mencione os outros filósofos que se debruçaram sobre a técnica, em particular Karl Marx, Ortega y Gasset parece conhecê-los bem, porquanto sabe demarcar e distinguir as suas teses das teses defendidas por outros, sempre a partir da sua perspectiva «vitalista», a qual cai sob a alçada da crítica pertinente e actual que Hannah Arendt faz da noção de vida como «valor supremo».
«Qué es la técnica?». A esta questão, Ortega y Gasset responde deste modo:
«El conjunto de (actos técnicos) es la técnica, que podemos, desde luego, definir como la reforma que el hombre impone a la naturaleza en vista de la satisfacción de sus necesidades. Estas (...) eran imposiciones de la naturaleza al hombre. El hombre responde imponiendo a su vez un cambio a la naturaleza. Es, pues, la técnica, la reacción enérgica contra la naturaleza o circunstancia que lleva a crear entre estas y el hombre una nueva naturaleza puesta sobre aquella, una sobrenaturaleza. Conste, pues: la técnica no es lo que el hombre hace para satisfacer sus necesidades. Esta expresión es equívoca y valdría también para el repertorio biológico de los actos animales. La técnica es la reforma de la naturaleza, de esa naturaleza que nos hace necesitados y menesterosos, reforma en sentido tal que las necesidades queden a ser posible anuladas por dejar de ser problema su satisfacción. Si siempre que sentimos frío la naturaleza automáticamente pusiese a nuestra vera fuego, es evidente que no sentiríamos la necesidad de calentarnos, como normalmente no sentimos la necesidad de respirar, sino que simplemente respiramos sin sernos ello problema alguno. Pues eso hace la técnica, precisamente eso: ponernos el calor junto a la sensación de frío y anular prácticamente esta en cuanto necesidad, menesterosidad, negación, problema y angustia».
Ortega y Gasset tem consciência do carácter «tosco» desta primeira «aproximación a la pregunta: Qué es la técnica?», mas é esta aproximação que pretendemos debater. Os aspectos relevantes desta aproximação teórica são os seguintes:
1. A técnica é «a reforma que o homem impõe à natureza, tendo em vista a satisfacção das suas necessidades». Esta reforma da natureza cria uma nova natureza, denominada «sobrenatureza» ou, como dizemos hoje em dia, tecnosfera. Ora, a técnica burguesa, isto é, o "tecnicismo da técnica" moderna apreendido por Ortega y Gasset, produz a "alienação técnica da natureza" (Bloch): a reificação burguesa é, no fundo, distanciamento do orgânico, portanto, mecanicismo morto.
2. A natureza fez-nos seres «necessitados e laboriosos» e, por isso, impõe-nos a tarefa de a transformar, de modo a suprir as nossas necessidades ou carências. A teoria da técnica de Ortega y Gasset assenta numa teoria das necessidades, que Bronislaw Malinowski integrou na sua teoria funcional da cultura. De facto, a teoria da técnica de Ortega y Gasset é fortemente marcada pelo funcionalismo, aliás uma versão da racionalidade instrumental criticada por Horkheimer & Adorno, que articula com uma versão forte do «vitalismo»: todas as necessidades derivam do próprio viver. «No es, pues, el alimentarse necesario por sí, es necesario para viver. (...) Este viver es, pues, la necesidad originaria (resultante de um acto de vontade) de que todas las demás son meras consecuencias». Reduzida a natureza àquilo que nos rodeia, à «circunstancia», portanto, ao "mecanicismo" que deve ser superado por uma nova filosofia da natureza, Ortega y Gasset define a vida humana por oposição à vida animal, como não coincidindo completamente com o perfil das suas necessidades orgânicas, e, deste modo, rejeita qualquer abordagem que recorra ao «instinto» ou à própria natureza, como se fossemos extraterrestres na Terra. Apesar de ter captado a essência antropológica da técnica, a definição antropológica da técnica descartada por Heidegger, Ortega y Gasset não consegue livrar-se da definição instrumental da técnica, a qual impede o pensamento que visa aproximar a utopia concreta da técnica e a utopia concreta da sociedade.
3. A técnica é finalmente vista como uma reforma «contra la naturaleza», o que torna difícil a defesa de uma política do ambiente ou mesmo de uma ética do ambiente. A sobrenatureza de Ortega y Gasset permanece prisioneira do capitalismo e da sua visão dominadora da natureza, dado ser incapaz de alargar o âmbito das leis do orgânico a toda a natureza. A sua teoria dos três estádios da evolução da técnica, a técnica do acaso, a técnica do artesão e a técnica do técnico, mostra-se incapaz de pensar um novo estádio da técnica: "a técnica da vontade e da aliança concreta com o fogo dos fenómenos naturais e das suas leis, "o electrão" do sujeito humano e a coprodutividade mediatizada de um sujeito possível da natureza" (Bloch), capaz de integrar a sobrenaturalização da natureza, operada pela técnica, na própria natureza, mediante a reforma revolucionária da sociedade humana.
É urgente opor ao pessimismo tecnológico de Heidegger e de Ortega y Gasset o optimismo tecnológico de Karl Marx, apreendido brilhantemente por Ernst Bloch. Contudo, convém acrescentar uma nova transformação técnico-científica. A revolução científica dos séculos XVI e XVII foi uma revolução cognitiva que transformou os modos de pensar sobre a natureza, os tipos de perguntas formuladas e os métodos de procurar as respostas. A revolução científica e tecnológica do século XX teve e tem um carácter completamente diferente: operou uma revolução na organização social da ciência. Esta revolução foi o resultado do impulso motivador da racionalidade instrumental em acção no Ocidente desde a Reforma Protestante: os métodos de contabilidade que tornaram possível a empresa capitalista foram ampliados e aplicados inicialmente à tecnologia e posteriormente à ciência. Os conceitos que pertenciam ao mundo dos negócios foram aplicados na administração e na gerência da ciência e da tecnologia e a revelância tornou-se um critério importante na avaliação da ciência. A busca da racionalidade económica, aquela que define e mede tudo em termos materiais com o recurso a indicadores económicos, tornou-se particularmente evidente na burocratização da pesquisa científica: os cientistas transformaram-se em funcionários bem-posicionados na escala hierárquica das carreiras nas grandes organizações, em especialistas cada vez mais restritos e em membros anónimos de grandes associações, deixando de ser exploradores independentes, profissionais ecléticos e participantes pessoais em comunidades auto-reguladas, respectivamente. A projecção e a criação de armas militares vencedoras de guerras, bem como a crença de que a ciência e a tecnologia podem impulsionar a melhoria do bem-estar das nações, são outros factores que convenceram os governos a fornecer e a garantir avultados investimentos na pesquisa de equipa, levada a cabo em laboratórios industriais ou governamentais, com direcção determinada por decisões organizacionais e em cumprimento de obrigações contratuais.
Ora, todos os autores referidos neste post alertaram para o lado negativo desta revolução operada na organização social da ciência e da tecnologia: desencoraja ou tende mesmo a eclipsar o trabalho realmente inovador do pensamento. Com efeito, a garantia do bem-estar das populações humanas, definido e medido em termos estritamente económicos, exerce uma pressão cada vez maior sobre os limites finitos da capacidade do ecossistema planetário. Esta pressão cria constantemente novos problemas e exige novas soluções tecnológicas. Contudo, a ciência e a tecnologia, submetidas à maquinaria de produção do capitalismo e praticadas por cientistas, engenheiros e intelectuais com as capacidades críticas anestesiadas, estão cada vez menos em condições de produzir obras de qualidade e, por isso, a sociedade moderna contém nos seus valores fundamentais as sementes da sua própria extinção. A racionalidade económica colonizou todas as áreas do "mundo da vida" e da sociedade e conduz ao consumo, sem possibilidade de renovação, dos próprios recursos que a possibilitaram. É certo que os pensadores originais não desapareceram, mas a organização social da ciência, imbuída de racionalidade económica estupidificante, define-os como "improdutivos", portanto, como não merecedores de consideração ou de apoio financeiro. Daqui resulta que a racionalidade económica marginaliza e excluí o pensamento independente, o único capaz de nos salvar do desastre ecológico.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 24 de maio de 2008

Antropologia Vetero-Testamentária: o Ser do Homem

Segunda Parte
HOMEM FORTALECIDO. O termo hebraico "ruah" é usado 398 vezes e distingue-se de "napas" e de "basar" em dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, "ruah" designa principalmente uma força natural, o "vento", em 113 casos dos 389 casos em que é usado. Em segundo lugar, "ruah" é atribuído mais a Deus (136 vezes) do que aos homens, animais e ídolos, enquanto "napas" se refere a Deus somente em três por cento dos casos, e "basar" em nenhum caso. Isto significa que "ruah" é um conceito teo-antropológico.
No Antigo Testamento, "ruah" é o termo usado para significar "vento", "alento", "força vital", "espírito", "ânimo" e "força de vontade". No seu sentido meteorológico, "ruah" significa não o ar como tal, mas o ar em movimento, mais precisamente a força que produz mudanças e, neste sentido, é um instrumento de Deus. Quando surge em paralelismo com "basar", "ruah" é o divinamente forte, por oposição ao humanamente débil ("basar"): um fenómeno poderoso que depende da disposição de Deus. O "vento" do homem é o seu "alento" que, como força da vida, lhe é dado por Deus. É Deus que "forma" o "alento" no interior do homem, do qual dependem a vida e a morte. O "alento" do homem não pode ser separado do "ruah" de Deus. Este último não é somente o "vento" que dá vida e faz "alento" do homem, mas também indica a "palavra": o "vento" de Deus é força vital criadora que dá uma qualidade extraordinária ao homem "prudente e sábio". Pode também indicar um ser independente e invisível colocado à disposição de Deus.
O sopro de alento produz mudanças de ânimo e, por isso, o termo é usado para indicar a disposição anímica do homem: onde há "ruah", há também sabedoria. Além dos movimentos anímicos, "ruah" é usado para indicar o veículo das acções energéticas da vontade. A força e a liberdade da vontade humana dependem da actividade da energia de Deus. Elas conduzem ao caminho do conhecimento cuja meta é a sabedoria. Neste caso, "ruah" pode significar "espírito". Compreendido como "ruah", o homem revela-se a partir da comunicação de Deus com o homem. Isto implica que os "ventos" de Deus e do homem se encontram numa relação dinâmica: o espírito vivo do homem bom e obreiro vem-lhe de Deus.
HOMEM RACIOCINANTE. "Leb" é o termo hebraico mais importante do vocabulário antropológico do Antigo Testamento, geralmente traduzido por "coração", sendo usado 858 vezes.
No Antigo Testamento, "leb" é o termo usado para significar "coração", "sentimento", "desejo", "razão", "decisão" e "coração de Deus". Israel captou, especialmente nas doenças, a importância do coração como órgão vital central e definitivo da vida. Contudo, a sua concepção de coração ultrapassa o seu aspecto anatómico e as suas funções psicológicas: as actividades essenciais do coração humano são de natureza espiritual-psíquica. O "coração" indica, na maior parte dos casos, o inexplorável, o profundamente oculto, tudo aquilo que se contrapõe ao homem exterior. As actividades atribuídas ao coração referem-se à sensibilidade e à emocionalidade e correspondem às que nós atribuímos ao sentimento e ao afecto. O coração indica a disposição ou o temperamento do homem e constitui a sede de determinadas disposições de ânimo, tais como a alegria e a preocupação, a coragem e o medo. Tal como "napas", o coração também deseja e anseia, mas os seus desejos são os mais internos e ocultos. Um coração que perdeu o alento pode ceder à soberba e a altivez de coração é a ousadia.
Tudo aquilo que hoje atribuímos à "cabeça" e ao cérebro era atribuído pelos hebreus ao coração: a maior parte das funções intelectuais ou racionais. O coração era visto como o órgão do entendimento: a abundância de conhecimento que é tirada do coração procede de um escutar que sabe aprender. O coração só é sábio e instruído quando está disposto a ouvir ou a escutar. O conhecimento realiza-se no coração: "roubar o coração" significa privá-lo de conhecimento, enganá-lo. A "irreflexão" é a "falta de coração". O conhecimento deve conduzir a uma consciência duradoura. A expressão "subir ao coração" ("alah al-l") equivale a tornar-se consciente. O coração converte-se, pois, no tesouro do saber e das recordações: as palavras devem ser retidas e meditadas no coração. "Abrir o seu coração" significa comunicar todo o seu conhecimento e partilhá-lo. Ao coração são atribuídos o pensar, o considerar, o reflectir e o meditar: o "homem sábio" é o "homem de coração". Porém, os judeus dificilmente distinguem entre "conhecer" e "escolher", entre "ouvir" e "obedecer", entre "teoria" e "praxis": o coração é não somente o órgão do entendimento mas também o órgão do querer. Biblicamente, a consciência chama-se "leb", porque é um órgão que escuta. "Golpear o coração" não indica um palpitar no sentido fisiológico ou a razão emocional, mas a reacção ao juízo ético da consciência. "Falar ao coração" é fundamentalmente "falar à consciência", procurando levá-la a decidir, a escolher o seu caminho. Na entrega consciente da vontade, descobrimos a correlação entre os aspectos consciente e voluntário da acção humana que possibilita compreender a obediência total e incondicional: o que é próprio do coração, sobretudo quando representa o ser do homem, é o chamamento a pensar, em especial, a escutar a palavra de Deus. O "coração de Deus" reside na sua livre decisão para o amor e para o cuidar da criatura, e, sem o conhecer, não se pode compreender a verdadeira situação do homem.
O homem veterotestamentário é o ser que escuta a palavra de Deus: a sua essência revela-se no escutar. Ora, no "rosto" ("panim") estão reunidos os órgãos da comunicação (olhos, boca e ouvidos), que permitem ao homem comunicar com os outros e escutar o chamamento (ouvidos) e responder-lhe (boca) na promessa que lhe foi feita. A capacidade de falar ("sapa") revela a humanidade do homem: o homem que recusa escutar renuncia, nesse mesmo acto, à vida.
O pensamento veterotestamentário, isto é, hebraico, não é dualista, mas realista: apresenta o corpo em interacção orgânica com a vida psíquica. Portanto, afirmação total da existência corporal do homem! O corpo é o veículo de uma vida pessoal e espiritual, devedora de uma vocação de Deus, que descobre a sua nobreza no facto de ser "imagem de Deus". O homem hebreu não via a pessoa humana como "alma encarnada" mas como "corpo animado": um corpo cuja vida era o resultado do alento de Deus. O pecado não é visto como "desejo de carne" e a redenção deve realizar-se num acontecimento corporal. A dicotomia entre "nefes" ("napas") traduzido como alma e "basar" como carne é posterior e reflecte a imagem do homem da filosofia grega: o cristianismo deve ser visto como "judaísmo helenizado" que abandona "ruah".
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 23 de maio de 2008

A Agonia do Homo Sexualis

Post em construção.
Como este post já mereceu alguns comentários, vou reproduzir alguns deles que serão removidos quando editar o texto previsto:
A tese que vou defender é a de que o físico não é o caminho que leva à metafísica: a performance sexual aboliu a êxtase. Leveza, velocidade, novidade e variedade, numa palavra rodagem, são os traços do homem consumidor de sexo.
O échangisme é uma estratégia usada pelos casais em Paris para fazer face à incerteza, que os livra do sexo casual, da "ménage à trois" e do adultério. Porém, a existência de clubes de échangistes institucionalizou a troca, isto é, a "ménage à quatre, six, huit", etc., quanto mais melhor.
O sexo faz parte da dieta alimentar do homem consumidor: os parceiros tornaram-se objectos de consumo; prova-se e deita-se fora, porque o homo sexualis consumidor se desembaraçou dos vínculos sociais e do compromisso. O homo sexualis já não olha para os parceiros, como se vê pelo uso compulsivo do telemóvel ou mesmo da Internet. Conectado à rede mas sempre sozinho: eis o homo (simultaneamente) sexualis e consumens. A questão é esta: Será que o sexo em si é importante?
Sexo sem vínculo? Sem amor? Sem compromisso? Sexo sem vínculo é masturbação acompanhada! Erich Fromm disse coisas interessantes a este propósito. Comer muito vicia e sexar muito também vicia: a comida engorda e o sexo faz com que a pessoa se torne um Nada ou, como diria Gil Vicente, "Ninguém". É preciso derrubar a imagem consumista do sexo e as suas patologias. Sexo já não é transgressão mas rotina comercializada e controlada pelas indústrias. O membro viril ou a fornalha feminina são impuros, tal como em Israel: quanto maior melhor. Apenas exploração do aspecto físico do sexo sem metafísica e sem risco. O preservativo significa sexo seguro! Está tudo contaminado pelo metabolismo reduzido...
Estive a ver parte de um documentário sobre Maio de 68 e seus efeitos mundiais. Conhecemos os resultados finais tristes (morte de Che Guevara aos 39 anos baleado pelo exército boliviano, a morte de estudantes mexicanos, a tomada de Praga pelo exército russo e a emulação do estudante de filosofia, a vitória de De Gaulle, etc.) e sobretudo os seus efeitos paralisantes a longo termo. Essa geração de 68 é a que está actualmente no poder e é corrupta: os filhos e netos são seres desmiolados e decadentes. Gado sem força de vontade. E, no entanto, sabemos que podemos e devemos desobedecer e paralisar o mundo, na tentativa de o livrar da desigualdade, da injustiça, da falsa liberdade e da miséria mental.
O sexo já não vale nada. Os velhos fazem figuras tristes querendo parecer mais novos e inventando a sexualidade na Terceira Idade: caras de plástico inestético e viagra. Os novos seguem scripts: executam movimentos com a finalidade de atingir um orgasmo físico sem futuro. É tudo masturbação mental e física. Por detrás da máscara corporal, seja velha ou nova, não há nada: o sexo já não satisfaz e induz comportamentos aditivos. Tal como os toxicodependentes, os consumidores de sexo querem sempre uma dose maior, mas ficam sempre sozinhos, mais velhos e, lá no fundo, profundamente infelizes. A vida nestas condições metabolicamente reduzidas está irremediavelmente perdida e só há um meio de sair deste mundo cinzento: a Grande Recusa que diz Não à falsa Paz...
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Antropologia Vetero-Testamentária: o Ser do Homem

Primeira Parte
«Iahweh, Senhor nosso
quão poderoso é o teu nome
em toda a terra
«Ele divulga a tua majestade sobre o céu.
Pela boca das crianças e dos bebés
tu o firmaste, qual fortaleza,
contra os teus adversários,
para reprimir o inimigo e o vingador.
«Quando vejo o céu, obra dos teus dedos,
a lua e as estrelas que fixaste,
que é um mortal, para dele te lembrares,
e um filho de Adão, que venhas visitá-lo?
«E o fizeste pouco menos do que um deus,
coroando-o de glória e beleza.
Para que domine as obras de tuas mãos
sob os seus pés tudo colocaste:
«ovelhas e bois, todos eles,
e as feras do campo também;
a ave do céu e os peixes do oceano
que percorrem as sendas dos mares.
«Iahweh, Senhor nosso,
quão poderoso é o teu nome
em toda a terra!» (Salmo 8)
De todos os seres existentes que habitam a Terra o Homem é o único que faz perguntas e a pergunta que o atormenta mais é a questão do homem. O Antigo Testamento fornece uma resposta a esta questão do homem. O objectivo deste post é precisamente clarificar a imagem veterotestamentária do homem.
Israel tinha a convicção de que o homem ocupa um lugar especial no seio da natureza que o rodeia. A natureza está submetida a uma ordem e a leis próprias que o homem deve reconhecer e que não pode controlar de modo arbitrário. O homem situa-se face à natureza na sua condição de chamado/convocado por Deus. A posse da terra está condicionada pela fidelidade à Aliança. Isto significa que a relação pessoal do homem com a natureza foi incluída por Deus na esfera da conduta responsável do homem. Este deve estar consciente da sua especial posição dentro do mundo das criaturas e assumir a sua responsabilidade pessoal pela natureza. A sua fé centra-se num único Deus, que não é uma força da natureza, mas o Senhor Vivo que apenas se relaciona com o homem através da comunhão da palavra. Na palavra o homem autorevela-se como ser superior a todas as coisas e forças naturais, como totalmente outro, como um ser cuja essência e condição só encontram garantia em Deus (Walther Eichrodt, G. von Rad, Jürgen Moltmann, Ernst Bloch, Wolfhart Pannenberg, Ruiz de la Peña, E. Jüngel, H. de Lubac, K. Rahner, Bruno Forte, U. von Balthasar, J. I. González Faus, L. F. Ladaria, J. B. Metz, H. Thielicke).
As estruturas antropológicas do Antigo Testamento podem ser explicitadas em quatro traços essenciais estabelecidos através da terminologia (Hans Walter Wolff): o Homem necessitado ("napas"), o Homem efémero ("basar"), o Homem fortalecido ("ruah") e o Homem raciocinante ("leb" ou "lebad"). Seguimos a via da terminologia antropológica do Antigo Testamento, mas levando em conta que a diferenciação do aspecto espiritual ou interior e do aspecto corporal do ser humano, tal como aparece nos dois relatos da criação, é o elemento constitutivo de toda a visão veterotestamentária do homem. Este duplo aspecto do ser humano revela que o homem é feito de matéria terrestre, de pó e de cinza, ao mesmo tempo que é dotado de uma potencialidade espiritual que o converte num eu consciente. Porém, esta concepção veterotestamentária ignora totalmente o dualismo estrito. Carne e espírito, corpo e alma, não constituem opostos irreconciliáveis, mas aspectos que revelam a totalidade vital do homem, porque, neste pensamento sintético e esterométrico, o corpo vivo e as suas diferentes partes são considerados órgão e veículo da vida pessoal, de tal modo que em cada parte se expressa e se capta a totalidade da pessoa.
HOMEM NECESSITADO. O termo hebraico "napas" constitui o termo fundamental da antropologia do Antigo Testamento, sendo usada 755 vezes, por vezes para definir o próprio ser humano. Embora abusivamente traduzido por "alma", este termo é usado em diversos contextos, para referir "garganta", "pescoço", "ânsia", "alma", "vida" e "pessoa". A garganta é o órgão da alimentação e da respiração e, quando "o homem saciado" é contraposto à "garganta faminta", compreende-se que o homem é ser necessitado na sua totalidade, sendo a garganta o assento onde se localizam as necessidades elementares da vida. O "pescoço" ("sawwar") é o exterior da garganta e "napas" como pescoço do homem apresenta-o como um ser necessitado de ajuda, oprimido e ameaçado. Ora, o homem como ser necessitado e ameaçado, anseia com o seu "napas" pelos alimentos e pela conservação da vida. "Napas" é precisamente um desejar vital, um ansiar, ambicionar ou suspirar por, que normalmente arrasta o homem para a acção. Como órgão específico e como acto de desejar, "napas" significa a sede e o acto de outras impressões e situações anímicas, nomeadamente da compaixão com o necessitado, sobretudo enquanto alma sofredora e como espírito atribulado, como é o caso do sujeito concreto das lamentações do saltério. Mas, se designa o órgão de necessidades vitais que têm de ser satisfeitas para que o homem possa viver, "napas" significa a própria vida identificada com o "sangue" e, por isso, representa o contrário da morte. Porém, "napas" é o próprio homem, indicando neste caso não o que uma pessoa ou indivíduo ("hayyim") tem, mas "o" (pronome pessoal ou reflexivo em vez do nome) a quem pertence a vida.
No Antigo Testamento, o homem é pensado como indivíduo que, no seu desejo ou ânsia de vida, é absolutamente dependente, como o indicam a garganta enquanto órgão da alimentação e da respiração e o pescoço como a parte do corpo especialmente em perigo. "Napas" apresenta o homem na sua necessidade e ansiedade, incluindo a sua excitabilidade e vulnerabilidade emocional, representando-o como pessoa ou indivíduo isolado. "Napas" revela o aspecto necessitado, ansioso de vida e, portanto, vivo do homem, de resto semelhante ao animal. Perante Deus, inicia-se um diálogo do homem com o seu "napas", isto é, consigo mesmo. O homem reconhece-se perante Deus não só como "napas" na sua necessidade, mas também na condução do seu eu para a esperança e o louvor.
HOMEM EFÉMERO. O termo hebraico "basar" é usado 273 vezes, 104 das quais para referir os animais, mais precisamente a carne dos animais vivos. Dado nunca ser usado em relação a Deus, parece indicar algo que o homem partilha com os animais, captando os seres vivos no aspecto corporal. É usado para referir a "carne", o "corpo", o "parentesco" e a "debilidade". Em primeiro lugar, "basar" indica a carne de animais vivos, sobretudo quando se trata de animais sacrificados segundo prescrições rituais. Enquanto alimento refere-se tanto à carne animal como à carne humana. É usado para referir uma parte ou "pedaço" do corpo humano, geralmente em associação com outros elementos corporais, podendo ser usado eufemisticamente para referir o "membro viril", o pénis, não para indicar a capacidade de engendrar, mas para expressar a infidelidade e a impureza. Como este termo é utilizado para indicar a parte visível do corpo, pode designar nalguns casos todo o corpo humano, e, como carne, pode ser usado para referir aquilo que une os homens mutuamente e, no seu sentido jurídico, designa o parentesco ou os familiares ou "parentes carnais", podendo significar "toda a humanidade" ("Kol-basar"). Pode especificar o vivente como aquele ser "em que há alento" ou como "ser vivo", por oposição ao cadáver ("nebela") ou os restos mortais. A oposição entre o "coração de pedra" e o "coração de carne" mostra que este termo pode ser usado para destacar o tipo de parentesco de todos os seres vivos, valorizando a conduta humana.
No Antigo Testamento, "basar" caracteriza a vida humana em geral como débil e caduca em si mesma. O ser humano é descrito por contraposição a Deus como um ser sem força e caduco. Dado não ser usado em relação a Deus, "basar" capta algo especificamente humano e indica sempre o poder humano limitado e deficiente por oposição ao poder de Deus, o único em que se pode confiar, dado ser superior a todos os outros poderes. "Basar" é o homem caduco em si mesmo, exposto ao pecado, cuja "carne" depende do "sopro vital" de Deus e não resiste à voz do Deus vivo. Em suma, "basar" significa não somente a falta de força da criatura mortal, a sua debilidade e caducidade essenciais, mas também a sua debilidade na fidelidade e na obediência frente à vontade de Deus. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 20 de maio de 2008

Prós e Contras: Quem trava o aumento dos combustíveis?

Seguido de um EXCURSO sobre o PENSAMENTO CALCULISTA
«Para poder vencer no seu terreno o Espírito misantropo e descarnado, o materialismo deve mortificar a sua carne e fazer-se asceta. Ele apresenta-se como um ser de razão, mas desenvolve também as consequências inevitáveis do entendimento...» (Karl Marx)
"Prós e Contras" de hoje (19 de Maio de 2008) foi dedicado à discussão dos preços elevados do petróleo. Os impostos estão a pesar cerca de sessenta por cento no preço das gasolinas e, por isso, o consumo e a circulação já estão a diminuir, e muitos portugueses, empresários ou não, preferem abastecer-se em Espanha, onde os preços são muito mais baixos e acessíveis. Estes aumentos atribuídos, embora de forma dissimulada, à cartelização das companhias petrolíferas, arrastam outros sectores da economia portuguesa, alguns dos quais dizem não suportar por mais tempo estes preços descomunais do petróleo.
A questão colocada pela Fátima Campos foi a seguinte: Como vamos pagar os combustíveis? A viagem do Primeiro Ministro José Sócrates à Venezuela foi elogiada pelos empresários que o acompanharam e parece ter sido um êxito, já que os combustíveis comprados à Venezuela poderão ser pagos com produtos portugueses. Outra solução discutida para tentar travar a médio prazo os preços descomunais do petróleo é o investimento nos biocombustíveis que dentro de pouco tempo poderão compor cerca de 10% do diesel comercializado, tal como já sucede com a energia eólica incorporada na rede nacional de electricidade.
Infelizmente, não pude assistir a todo o programa e, por isso, prefiro não mencionar os nomes dos participantes. Mas a outra pergunta lançada: quem trava a escalada dos combustíveis?, e que deu o nome ao programa, parece ter ficado sem resposta, uma vez que ninguém parece ter poder para controlar a subida dos preços do petróleo, ora atribuída à especulação das companhias petrolíferas, ora atribuída aos países produtores, ora ainda atribuída às regras impostas pela União Europeia.
EXCURSO SOBRE MARX E HEIDEGGER: Como o tema de fundo deste programa de "Prós e Contras" está na linha do post anterior dedicado a "Heidegger e a Questão da Técnica", vamos reproduzir aqui os seus dois últimos comentários. Nesse post anterior dedicado à questão da técnica, o André LF fez este comentário a propósito de Heidegger:
"Francisco, a perda da capacidade de contemplar o numinoso que se manifesta em tudo que existe, leva o homem contemporâneo a um desenraizamento que o distancia de tudo, tornando-o um estrangeiro em terra própria. A respeito desta atitude do homem contemporâneo, o funcionário da técnica, como dizia Heidegger, diante do sagrado, afirma Umberto Galimberti que vivemos: "Um hoje que é tempo de pobreza extrema porque, como diz Hölderlin," não mais existem os deuses que fugiram, e ainda não existem os que devem vir". O lugar que o sagrado deixou vazio é hoje ocupado por palavras religiosas que, fechadas no cálculo dos valores, limitam-se a circunscrever o recinto do agir. Assim a essência do homem empobrece quando, à sombra de religiões cuja única preocupação parece ser a dimensão ética, procura dar sentido à dor, educar para o amor, preparar-se para a morte, esquecendo o apelo de Rilke: As dores são desconhecidas, o amor não se aprende, a injunção que nos chama a entrar na morte permanece obscura. Somente o canto sobre a terra consagra e celebra".
Em resposta, escrevi-lhe este comentário:
"André, o programa "Prós e Contras" de hoje dedicado aos combustíveis mostrou que todos são funcionários do sistema de ordenamento técnico que é comandado pela economia capitalista e as suas grandes empresas, neste caso pelas companhias petrolíferas e a sua especulação.
"Este é um dos aspectos que Heidegger desprezou nos autores que o inspiraram e que não nomeou, a começar por Lukács: a tecnologia está ao serviço do capitalismo e é esse facto que a torna perigosa. Negligenciar o capitalismo na questão da técnica é submeter-se aos imperativos do sistema de mobilização total: tudo é funcionalizado, incluindo o próprio homem. Aliás, o homem é substituído pela técnica e entregue ao sistema capitalista do consumo. Está a surgir um novo proletariado, os empregados das grandes áreas comerciais. Eles são hoje aquilo a que Marx chamava o "lumpen-proletariado".
"A noção de valor elaborada por Marx ajuda a clarificar as transformações que o André referiu. Afinal, os valores são, de certo modo, criações burguesas, dado subjectivarem o ente em mero objecto no horizonte da modernidade. Mas temos actualmente outro inimigo: os Direitos (adquiridos). E onde ficam as responsabilidades ou as obrigações? Neste programa, um empresário disse que tem direito ao carro; paga para o ter e não se interessa em gastar dinheiro para se deslocar para onde quiser. Portanto, não ao transporte público como solução para fazer face à crise dos preços elevados dos combustíveis e minorar os efeitos da crise ecológica, porque ter carro é um direito. Eles pensam a partir do seu umbigo e estão a marimbar-se para a crise ecológica: o que desejam é o seu conforto e o seu luxo; o planeta que se lixe depois de morrerem após uma vida confortável e de terem endividado as gerações futuras para manter os seus luxos. Este é um dos aspectos que mostra o predomínio do pensamento calculista em detrimento do pensamento do sentido."
Falei da omissão dos autores marxistas nas obras de Heidegger, embora a "Carta sobre o Humanismo" refira elogiosamente Marx: «Pelo facto de Marx, enquanto experimenta a alienação, atingir uma dimensão essencial da história (a alienação do homem vista como a apatridade do homem moderno), a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia.» Este reconhecimento parece anunciar um «possível diálogo produtivo com o marxismo» que Heidegger nunca levou a cabo, pelo menos explicitamente. Contudo, nesse mesmo texto, Heidegger aprisiona o marxismo na determinação metafísica que o seu pensamento pretende superar: «A essência do materialismo não consiste na afirmação de que tudo apenas é matéria; ela consiste, ao contrário, numa determinação metafísica, segundo a qual todo o ente aparece como matéria de um trabalho», de resto já antecipada por Hegel. Heidegger pode assim ligar a essência do materialismo à essência da técnica, descartando-se do marxismo visto como o culminar da metafísica: «A essência do materialismo esconde-se na essência da técnica; sobre esta, não há dúvida, muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, na sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. (...) Enquanto uma forma da verdade, a técnica funda-se na história da Metafísica».
Porém, como demonstraram Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Alfred Schmidt, Henri Lefebvre ou Kostas Axelos, as noções marxianas de natureza, história, cultura e técnica são muito mais complexas e ainda não foram devidamente compreendidas. Embora a leitura ética não tenha sido escolhida ou rejeitada por Marx, ele parece recorrer à estética para apresentar a Terra como uma obra. Neste caso, a filosofia da natureza de Heidegger está prefigurada em Marx, de um modo muito mais interessante e produtivo. E, se for assim, a crítica que Heidegger dirige às axiologias tem pertinência e pode ser recuperada e aprofundada através de uma nova leitura de Marx que, procurando intensificar e alargar a vida, rejeita definitivamente a ideia perigosa de um fim da alienação a partir de um acto absoluto, filosófico (Hegel) ou sócio-político (Marx). Como escreve Heidegger: «O valorar não deixa o ente ser, mas todo o valorar deixa apenas valer o ente como objecto do seu operar. O esdrúxulo empenho em demonstrar a objectividade dos valores, não sabe o que faz. Quando proclama «Deus» como «o valor supremo», isto significa uma degradação da essência de Deus. O pensar através dos valores é, aqui, e em qualquer outra situação, a maior blasfémia que se pode pensar em face do ser. Pensar contra os valores não significa, portanto, propagar que o ente é destituído de valor e que é sem importância; mas isto significa levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a subjectivação do ente em simples objecto».
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Heidegger e a Questão da Técnica

«A circularidade do consumo pelo consumo é o único procedimento que caracteriza distintivamente a história de um mundo que se tornou um não-mundo».
«O mundo surge agora como um objecto aberto aos ataques do pensamento calculista (...). A natureza torna-se uma bomba de gasolina gigante, uma fonte de energia para a tecnologia e a indústria moderna».
«A cada hora e a cada dia estão presos à rádio e à televisão. O cinema transporta-os semanalmente para os domínios invulgares, frequentemente apenas vulgares, da representação que simula um mundo que não o é. (...) Tudo aquilo com que, hora a hora, os meios de informação actuais excitam, surpreendem, estimulam a imaginação do Homem, tudo isso está hoje mais próximo do Homem do que o próprio campo à volta da quinta, do que o céu sobre a terra, do que o passar das horas do dia e da noite, do que os usos e costumes da aldeia, do que a herança do mundo da terra natal».
Estas e outras afirmações de Martin Heidegger parecem indicar que o filósofo da "mitologia do Ser" desejava abolir o consumismo, a exploração da terra e os meios de comunicação de massas e, como foi sugerido por Adorno, Lyotard ou mesmo Derrida, regressar ao mundo dos gregos pré-socráticos ou dos bons velhos camponeses de Schwarzwald. Os ecologistas profundos, em especial Michael E. Zimmerman e Thomas Berry, viram neste ataque ao consumismo e ao poder nivelador da comunicação social, bem como nalgumas banalidades antitecnológicas, motivos suficientes para aproximar a ecologia profunda ou o ambientalismo radical das filosofias da natureza e da técnica elaboradas pelo último Heidegger, sem se darem conta de que, segundo este filósofo, o discurso da perda e da destruição é também tecnológico. A este propósito Heidegger é peremptório: «Todas as tentativas de reconhecer a realidade existente (...) em termos de declínio e perda, em termos de fatalidade, catástrofe e destruição, é mero comportamento tecnológico. (...) A concepção instrumental da tecnologia condiciona todas as tentativas de conduzir o homem à relação correcta com a tecnologia. (...) O desejo de domínio torna-se tanto mais urgente quanto mais a tecnologia ameaça escapar ao controlo humano.» «Nenhum homem individual, nenhum grupo de homens, nenhuma comissão de estadistas proeminentes, cientistas e técnicos, nenhuma conferência de líderes de comércio e indústria, pode travar ou dirigir o progresso da história na era atómica».
Heidegger não anuncia mais uma rebelião romântica contra a tecnologia e o domínio da natureza, nem sequer propõe uma forma de colocar a tecnologia sob controlo para que ela possa servir os nossos fins racionalmente escolhidos: a sua visão do mundo tecnológico eficientemente ordenado procura revelar a essência da tecnologia, sem «nos restringir a uma compulsão absurda de avançar cegamente com a tecnologia» ou «revoltarmo-nos desesperadamente contra ela». O homem moderno enfrenta uma situação perigosa causada pelo entendimento tecnológico do ser. Segundo Heidegger, o «maior perigo» é que «a maré que se aproxima da revolução tecnológica na era atómica pode assim cativar, enfeitiçar, ofuscar e iludir o homem de que o pensamento calculista pode um dia vir a ser aceite e praticado como a única maneira de pensar». O perigo reside não tanto na devastação da natureza mas fundamentalmente no nivelamento do nosso entendimento do ser. Este perigo tecnológico não é um problema para o qual devemos encontrar uma solução, mas a condição ontológica que exige uma transformação do nosso entendimento tecnológico do ser. Isto significa que Heidegger, ao repensar a história do ser no Ocidente, não vê no nosso entendimento tecnológico do ser uma fatalidade, mas uma oportunidade de libertação: a abertura a uma transformação da nossa clareira cultural actual.
Heidegger descarta-se das definições instrumental (a técnica como meio para um fim) e antropológica (a técnica como actividade humana) da tecnologia, porque a sua tarefa é explicitar a essência da técnica moderna, a qual é procurar ordenar tudo de maneira a adquirir maior flexibilidade e eficiência: o ordenamento tecnológico do mundo converte a natureza e o homem em meros recursos ou reservas que são utilizados para aperfeiçoar a eficiência do sistema de controlo e de mobilização totais. Contudo, a compreensão da clareira tecnológica como a causa da nossa angústia provoca a transformação no nosso sentido da realidade, isto é, a necessidade de superar o pensamento predominante em termos de valores e de cálculos. O perigo apreendido como o perigo torna-se naquilo que nos salva: ele pode libertar-nos face às coisas e abrir-nos ao mistério. Se a tecnologia ameaça o enraizamento do homem, colocando-o em "fuga do pensamento", a libertação que desencadeia dá-nos uma possibilidade e uma promessa de «habitar no mundo de uma maneira totalmente diferente». Mas, para alcançar essa mudança de atitude face ao mundo, é necessário salvar a "natureza essencial do homem" e manter o "pensamento meditativo vivo". As práticas marginais devem ser preservadas, de modo a evitar que sejam mobilizadas como recursos disponíveis e a promover a retirada de importância das práticas centrais para o nosso auto-entendimento cultural. Para Heidegger, só um "novo deus" pode salvar e garantir essa mudança no nosso entendimento do mundo: o objectivo ou o acontecimento capaz de fundamentar "um novo enraizamento" do homem nas suas relações com o mundo no âmbito da "quadratura" mortais, deuses, terra e céu. Ou segundo estes versos de Hölderlin:
«Cheio de méritos, mas poeticamente
o homem habita esta terra».
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Memória, Cativeiro e Êxtase

O objectivo será redefinir estes conceitos, de modo a mostrar que o homem metabolicamente reduzido não tem memória e, por isso, não é uma pessoa, porque na ausência de memória ele não pode estruturar a sua própria individualidade e fazer-se uma pessoa. O exercício da memória é colocar-se numa situação íntima de face a face consigo mesmo.
Ora, o ser metabolicamente reduzido está completamente perdido no cativeiro do consumo e teme encontrar-se consigo mesmo. A perda da anamnesis constitui um dos sintomas da regressão cognitiva e da atrofia dos órgãos mentais.
Por isso
, a libertação da caverna do consumo exige o exercício da gnose: o eu deve procurar o seu si-mesmo, recriando-se nesse acto íntimo como obra. A conversão de que tenho falado começa por ser a volta do eu ao seu si-mesmo, portanto o suicídio espiritual, de modo a emergir como subjectividade rebelde capaz de assumir em fusão com os outros libertos, isto é, os iniciados, a tarefa política da Grande Recusa.
A caverna do consumo em que vivemos tem algumas saídas, uma das quais é o êxtase resultante da descoberta espantosa da irracionalidade do consumismo: Como fui burro ao permitir que me reduzissem à condição de animal metabolicamente reduzido! O termo êxtase é usado aqui não no seu sentido místico de aguçamento anormal da consciência, mas para referir o acto de se manter do lado de fora ou dar um passo para fora das rotinas normais da sociedade estabelecida. Isto significa que o êxtase transforma a consciência que se tem da sociedade estabelecida, fazendo com que a falsa determinação se converta em possibilidade.
O êxtase tem relevância metafísica e política, porque todas as revoluções começam com a transformação da consciência. Para confrontar a condição humana sem mistificações consoladoras, precisamos de nos afastar das rotinas corriqueiras da sociedade estabelecida e das suas definições oficiais. O marginal e o rebelde são figuras autênticas, porque neles a liberdade pressupõe um certo grau de libertação da consciência: apresentam definições discordantes que desafiam as definições oficiais da própria sociedade de consumo. O mundo (socialmente) aprovado e dado como evidente é questionado: não é uma fatalidade; existem alternativas históricas. A sociedade de consumo oferece-nos cavernas quentes e confortáveis, onde nos aconchegamos com os outros, batendo os tambores que silenciam os uivos dos lobos na imensa escuridão cognitiva. Ora, êxtase é o acto corajoso de sair sozinho ou acompanhado da caverna quente do consumismo e contemplar a noite que abriga o inteiramente novo: o sonho de um mundo melhor.
A gnose (o conhecimento) constitui o único processo mediante o qual o eu cativo da ordem estabelecida pode voltar ao seu si mesmo, de modo a escapar ao cativeiro do consumo que é a terra do esquecimento. No exercício da anamnesis, o eu deve recuperar o seu si mesmo do esquecimento, mas não apenas na sua fonte originária, portanto na sua relação pacífica com a natureza, mas sobretudo no seu futuro, isto é, na pátria da identidade. Memória do futuro é, pois, o conceito a elaborar que permite à consciência escapar à cilada da "terra natal" vista como o solo originário ou o paraíso perdido, tendo em conta que o Outro se dá desde logo na linguagem que usamos. Ernst Bloch criticou serveramente a anamnesis hegeliana, a grande traição hegeliana, assente numa visão do ser cumprido e acabado, logo antidialéctivo, em vez do ser como processo utópico, o qual possibilita descobrir o futuro no passado das promessas não-cumpridas.
Através da gnose revolucionária, o homem pode operar a conversão, o suicídio espiritual ou a transformação da consciência, suscitada pela memória que realiza essa passagem de um estado de esquecimento (heteronomia) para um estado de consciência (autonomia), no qual o homem, entregue à memória de si mesmo, alcança a percepção da verdade: a necessidade de transformar o mundo. Por outras palavras, na memória em acção o homem deve descobrir o seu si-mesmo insatisfeito consigo mesmo e com o mundo estabelecido, dilacerado e desejoso de lutar contra o sistema: rever no passado, no seu e no da humanidade em relação pacífica com a natureza, as promessas não-cumpridas. Deste modo, a revolução interior resgata o passado e abre as portas ao futuro: prepara-se para a grande recusa.
A memória não é um depósito, um arquivo ou um armário que podemos pesquisar, mas um processo activo durante o qual me encontro intimamente comigo mesmo: o passado é sempre construção levada a cabo em função das preocupações presentes e das expectativas futuras. A memória é a matriz fundamental da mente e da subjectividade. Levando em conta os quadros sociais e históricos da memória, podemos ver nela uma "força" adversária da reificação que se perpetua na memória-hábito. E, como matriz da subjectividade, a memória é o triunfo do vivido singular, dado possibilitar a coincidência entre o que eu fui, o que sou e talvez o que pretendo ser, conferindo ao nosso ser sucessivo e em devir uma espécie de eternidade pessoal, no fundo a nossa identidade.
Marcuse escreveu que Marx retomou a antiga teoria do conhecimento como recordação das verdadeiras formas das coisas, distorcidas e negadas na realidade estabelecida, aquilo a que chamou o perpétuo núcleo materialista do idealismo. Neste caso, a recordação é vista como faculdade epistemológica: síntese ou reunião dos pedaços e dos fragmentos que podem ser encontrados na humanidade distorcida e na natureza desvirtuada. Passamos assim para o domínio da imaginação que, como conhecimento, retém a insolúvel tensão entre a ideia e a realidade, o potencial e o real, a qual exige a transcendência da liberdade para além das formas dadas. Neste caso, o cativeiro do consumo é reificador, mais precisamente uma prisão claustrofóbica, da qual nos podemos libertar através da gnose: memória e imaginação encontram-se unificadas no sonho diurno.
O si-mesmo descoberto possibilita uma relação de maior autenticidade consigo próprio, com os outros e com o mundo. O eu é internamente muito diferencial e, para o acordar, é preciso confrontá-lo consigo mesmo: o si-mesmo é o impulsionador da novidade, do eu inconformado. Sem o si-mesmo o homem fica alienado no mundo estabelecido. Aliás, a liberdade é sempre a liberdade do si-mesmo: este solta-se facilmente e recria-se de diversos modos.
A conversão é êxtase no sentido de abrir o eu ao seu si-mesmo, levando-o a procurar uma nova relação como o mundo: o eu apropria-se de si próprio e, ao fazê-lo, abre-se ao mundo, não para se conformar mas para o transformar qualitativamente. Com efeito, o eu social, para usar o conceito de Bergson, é muito conformista, embora seja fundamental para elaborar ao longo do desenvolvimento a nossa diferença e a nossa singularidade única. Mas é o eu rebelde que a conversão visa acordar no homem adormecido, esquecido de si mesmo, no cativeiro do consumo. Este si mesmo, o rebelde que há em nós, prefiro vê-lo como o castelo, o fogo, a luz, a centelha da alma. Ele pode ser facilmente vencido e destruído, como mostraram os campos de concentração, mas também é ele que nos permite mentir, dizer a verdade, fingir, sonhar, simular, resistir, decidir, enfim tudo isso que só nos pertence a nós mesmos.
O que está aqui em causa é a invenção de uma nova dialéctica da libertação, a qual deve esburacar a consciência endurecida das pessoas satisfeitas na sua condição metabolicamente reduzida.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Génio Maligno e Destruição da Fábrica do Mundo

«Vou supor, por consequência, não um Deus sumamente bom, fonte de verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar». (Descartes)
O tema que pretendo elaborar surgiu de um comentário que fiz ao último post do Manuel Rocha, embora ele derive de um estudo da filosofia da natureza de Descartes. A tese básica que proponho é a seguinte:
Face à actual mediocridade cognitiva dos consumidores/devoradores, aquilo a que tenho chamado regressão cognitiva, indigência de espírito e atrofia das funções mentais superiores, o mundo é, para estes sujeitos metabolicamente reduzidos, uma "caixa negra" que usam mas sem conhecer o seu funcionamento. Se um Génio Maligno eliminasse selectivamente os fabricadores do mundo e do seu sentido, a manada metabolicamente reduzida regressava à Idade da Pedra ou, pelo menos, a um tipo de sociedade anterior ao pacto social atravessada pelo obscurantismo e pela violência. O procedimento do behaviorismo, a psicologia do capitalismo, tem sido matar a alma, de modo a criar pessoas apáticas, passivas e submissas. Este procedimento teve e tem como resultado a barbárie cultural predominante: estímulos e respostas selectivamente condicionadas são suficientes para manter a "malta satisfeita", porque as pessoas foram de tal modo seduzidas pelo consumo conspícuo que «deixaram» secar a alma. A economia de mercado tardia condiciona-as para o consumo irracional e as pessoas não se apercebem disso, mesmo que sejam constantemente alertadas. O capitalismo assimila tudo o que o ameaça: um modo de produção, de informação e de vida que seca tudo à sua volta.
Contudo, a esta tese é, como já disse, muito anterior e foi tematizada pela primeira vez num estudo sobre a filosofia da natureza de Descartes. De facto, o horizonte instrumental que Descartes tematizou e legitimou nas suas obras, desde as "Regras para a Direcção do Espírito" até aos "Princípios da Filosofia", passando pelo "Discurso do Método" e pelas "Meditações sobre a Filosofia Primeira", é inseparável da expansão da economia de mercado. O cogito cartesiano afasta-se da natureza para a dominar e, neste acto em que afirma a sua infinita liberdade na solidão, mergulha, qual "ser-sem-abrigo", no abismo, onde impera o sistema que sempre o dominou. A dúvida hiperbólica revela que o cogito não é livre diante do sistema económico emergente. O génio maligno engana Descartes, insinuando-se no seio do seu pensamento, sem que ele se aperceba disso, como um «embuste». Forçando um pouco as palavras de E. Husserl, seria fácil encarar o cogito cartesiano como um resíduo do horizonte instrumental, cuja presença não é detectada pelo procedimento da dúvida. O génio maligno que enganou Descartes era a lógica da exploração da natureza inerente ao sistema capitalista que iniciava então a sua conquista do mundo.
Embora tenha triunfado sobre a cultura tradicional, a razão cartesiana não conseguiu transcender, mantendo a sua autonomia, a racionalização económica levada a cabo pelo sistema capitalista: a sua racionalidade é, pois, a racionalidade funcional do novo sistema económico. O cogito cartesiano é uma auto-ilusão, na medida em que se engana sempre que se julga infinitamente livre e autónomo, à imagem de Deus, quando, na verdade, mais não é do que uma criação de uma sociedade, cuja reprodução social exige a mecanização da natureza, encarada, desde o início, como uma fonte inesgotável de matérias-primas para a indústria nascente. Assim, a filosofia de Descartes, como a caracterizou F. Borkenau, é a «filosofia da era da manufactura».
Como foi dito neste segmento de texto, o génio maligno é algo bem real: é o próprio sistema económico capitalista e a sua lógica do lucro que colonizou o mundo da vida e, portanto, o próprio cogito. Como tal, ele é o principal agente responsável pela actual barbárie cultural que ainda não triunfou completamente devido à necessidade de conservar e de fomentar o desenvolvimento das forças de produção. O alargamento universal da educação tem um efeito contrário ao previsto: os criadores são cada vez mais escassos, sobretudo os criadores de sentido. Se estes criadores escassos e sujeitos à fragmentação do conhecimento fossem eliminados por um génio maligno, a humanidade seria incapaz de manter o actual nível de vida, de resto já muito degradado em termos culturais e cognitivos. O progresso está a produzir o seu contrário: a barbárie e o regresso à mitologia.
A teoria crítica é a Filosofia que visa transformar qualitativamente o mundo. Ora, a mudança qualitativa implica agentes e, na actual conjuntura social, não temos agentes mas seres metabolicamente reduzidos. Isso dificulta a tarefa política da teoria crítica, porque exige recriar os agentes como obra. Além disso, o modelo económico dominante é auto-destrutivo e extremamente irracional na sua lógica de funcionamento cego. De facto, o génio maligno de Descartes, o nosso inimigo, colocou toda a sua "indústria", sobretudo a indústria cultural, para nos enganar: os sujeitos metabolicamente reduzidos são seres-enganados e auto-enganados que vivem prisioneiros na caverna do consumo conspícuo. A missão é precisamente libertá-los dessa prisão, mas eles preferem a servidão em vez da libertação, como se verifica nesta polémica em torno do discurso do Presidente Cavaco Silva sobre o afastamento dos jovens da política. O problema é mais grave e reside na própria regressão cognitiva e no modelo de sociedade que a promove e que T. Veblen reconduz ao consumo conspícuo: «O consumo improdutivo de bens é honorífico, principalmente porque é uma marca de proeza e um requisito da dignidade humana; secundariamente, torna-se tal consumo por si mesmo substancialmente honorífico, especialmente no caso das coisas desejáveis. (...) O consumo de artigos de luxo, no seu verdadeiro sentido, é consumo que visa o conforto do próprio consumidor; é, portanto, atributo do senhor. (...) Para o homem ocioso, o consumo conspícuo de bens valiosos é um instrumento de respeitabilidade».
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Homem Trágico e Homem Utópico

«O carácter estranho desta natureza (social) relativamente à primeira (natural), a apreensão moderna sentimental da natureza, não são mais do que a projecção da experiência que ensina ao homem que o mundo ambiente que ele mesmo criou não é para ele um lar, mas uma prisão». (G. Lukács)
«Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades que se condicionam uma à outra». (G. Lukács)
Esta é uma longa meditação livre e incompleta em torno da antropologia de Georg Lukács (1885-1971): a experiência trágica é a essência última e genuína do humano e somente nela pode o homem conseguir auto-possuir-se como totalidade não extensiva mas intensiva, não empírica mas simbólica, não material mas formal. No seu período inicial de produção filosófica, antes da adesão ao marxismo, Lukács via a arte como refúgio do "homem problemático", cuja missão era construir o seu próprio cosmos, retirando-se do mundo ao redor para formar uma comunidade sem janelas para o exterior, onde o homem estaria instalado na totalidade intensiva, isto é, em si mesmo como obra. Era no utópico que ele descobria a essência do humano.
A hipótese que orienta a meditação em curso é esta: O Homem metabolicamente reduzido, portanto o homem consumidor de hoje, é um ser que não tem experiência de si mesmo, dos outros e do mundo. E, como ser carente de mundo mas devorador de mundo, é um ser anestesiado e fragmentado. Esta é a presente condição do homem na sociedade de consumidores. O animal metabolicamente reduzido deixou de ser homem problemático, aquele que, reconhecendo a inadequação empírica entre a alma e as formas, procura instalar-se na totalidade intensiva. Noções tais como "mundo fechado" ou "mundo aberto" são absolutamente estranhas ao homem metabolicamente reduzido: ele deixou de ser sensível à fractura, portanto à tragédia essencial humana, a qual exige um sentido forte de individualidade. O homem anestesiado é ser-anti-mundo e anti-humano: mero "tubo digestivo".
Em 1911, Georg Lukács escreveu um «romance», Acerca da Pobreza de Espírito, onde narra, em forma de diálogo, o seu próprio suicídio. A personagem principal do diálogo, o próprio Lukács, vê o suicídio como a única possibilidade de adequação com o tipo de vida que transcende toda a forma, ao passo que o autor Lukács descobre na possibilidade de dar forma à sua vivência, na criação da obra, a razão para não se suicidar. A personagem diz que o suicídio é uma categoria da vida e o autor argumenta que já está morto há muito tempo, dado ter suicidado o "homem velho" para que nascesse o "homem novo": o "homem criador" da obra através da qual se manifesta o espírito. Ora, este "suicídio espiritual", aliás muito próximo do suicídio empírico, permite ao homem transcender a casta comum e a casta ética e enquadrar-se na casta estético-religiosa ou metafísica, cujo fruto é a obra. Para o "homem problemático", a arte é a antecipação utópica da conciliação da forma e da vida.
Lukács via em Dostoiévski o maior artista do alargamento da alma até à amplitude cósmica. Neste alargamento que resulta do rompimento da dualidade eu/mundo funda-se uma ordem profunda, em cuja essência não há nada de casual. Segundo o jovem Lukács, todo o homem é necessário para a realização de todos os outros homens: uma conexão global e planetária. O que importa na relação entre os homens não é o mero estar-com-os-outros, mas ser-com-os-outros. É este ser-em-relação (uso os termos de Lukács) que possibilita a manifestação da essência intemporal da alma como conexão ou união supratemporal de duas almas.
Ora, para que o homem consiga situar-se ao nível da realidade alma, é necessário desprender-se de todas as ligações sociais, de todos os laços que o ligam à sua situação social, sejam eles a classe ou a origem. Só assim poderão aparecer e surgir as novas relações que unem as almas umas às outras. Só assim poderá o homem conseguir desprender-se daquilo que não é essencial (o supérfluo) e ganhar ou conquistar a sua verdadeira "pátria".
Dostoiévski já tinha reclamado esta "revolução interior" (revolucionismo interior) como a única maneira de o homem se salvar, enquanto humano, num mundo em que parece ser impossível levar a cabo a revolução das estruturas sociais. Isto é anticapitalismo romântico, logo utopismo salvífico, que pode e deve ser relido e recuperado para iluminar o nosso interior e, quem sabe?, mudar o mundo ameaçado. Para conseguirmos travar o consumo devorador, levado em conta nos cálculos económicos desde que Thorstein Veblen descobriu o consumo conspícuo, é necessário recriar o homem e incutir-lhe a noção de desprendimento, aliás da autoria de Mestre Eckhart e da sua "pobreza": delimitar os territórios do "nosso possível" é operar uma revolução interior, aquilo a que chamarei a Grande Conversão, a qual prepara para a Grande Recusa. Discriminar entre o essencial e o não-essencial é recusar o supérfluo na nossa vida, é recusar tratar a natureza como instrumento e fonte de matérias-primas, é ensinar a vê-la como "pátria", numa atitude de rejeição do consumismo. Como descobriu Veblen, as pessoas acima da linha da mera subsistência não aproveitam o excesso que a sociedade lhes dá para expandirem as suas próprias vidas e viverem com mais sabedoria, mais inteligência e mais compreensão; pelo contrário, em vez de cultivarem a sua mente, procuram impressionar as outras pessoas pelo facto de serem possuidoras desse excesso. Dedicam todo o tempo da sua vida metabolicamente reduzida a inflar e a inflacionar o próprio self no consumo conspícuo.
O nosso fio condutor nesta meditação livre sem fim à vista reside na tentativa de recuperar o pensamento originário de Lukács e mostrar que o homem anestesiado se converteu em gado que convida ao abate, tal como sucede com o gado doméstico. O Homem anestesiado deixou de ser homem: ele é o AntiHumano, para usar este termo de Sartre. Ou melhor: nós problemáticos que pertencemos à casta estético-religiosa ou metafísica temos como missão recriar o homem como obra. A nossa tarefa é criar o Homem Novo, matando o homem anestesiado.
O Homem Trágico de Lukács constitui uma revolta romântica contra o capitalismo levada a cabo a partir de uma "ética de esquerda" e a sua realização começa com o suicídio espiritual. Se não operarmos esse suicídio espiritual, não nos libertaremos da fragmentação e da alienação da nossa vida diária. Convido-vos a praticarmos em conjunto e em conexão o nosso suicídio espiritual: a Grande Conversão ao homem liberto da pobreza de espírito, capaz de converter o memento mori goetheano em memento vivere. Nesse momento, o homem torna-se Homem utópico.
(Entretanto, recomendo a leitura deste post maravilhoso do Fernando Dias sobre o pensamento planetário.)
J Francisco Saraiva de Sousa