terça-feira, 29 de julho de 2008

Ernst Bloch: Ontologia da Possibilidade

«O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis». (Ernst Bloch)
O esclarecimento entendido como desencantamento do mundo (Weber) procurou explicar racionalmente a relação entre o homem e a fantasia e a relação fantástica do homem com o mundo, recorrendo ao caminho que parte dos mitos e das utopias e termina na ciência ou, mais precisamente, na glorificação ideológica do que é: a realidade estabelecida. A fantasia foi considerada como um processo anímico primitivo, que prescinde do princípio de realidade. O resultado desta desvalorização e concomitante abandono da fantasia e do seu poder para formular desejos sensatos foi a hipertrofia do entendimento técnico. Hoje vivemos na situação de realizar muitas coisas que não queremos, sem saber o que realmente queremos. Ernst Bloch recuperou o poder da fantasia utópica, com o objectivo de mostrar que aquilo que é não pode ser verdadeiro. Se "a necessidade (privação) ensina a pensar", como diz Bloch, então a abundância metabolicamente reduzida produz regressão cognitiva e atrofia dos órgãos mentais, portanto, o homem metabolicamente reduzido de hoje que conserva a sua vida sem procurar a auto-expansão.
A concepção blochiana do homem começa no limiar do fundo vital, onde entre o ser e o ter se abre o mundo: "a necessidade ensina a pensar". Na escala composta pelo impulso, ainda obscuro e amorfo, o afã, o impulso já sentido, a ânsia, o impulso ainda sem meta, o instinto, o impulso que busca já o específico, o desejo, o impulso passivo mas com uma prefiguração, e o querer, que inclui uma actividade diferenciada, é o instinto o primeiro nível da dinâmica teleológica. A esperança é o ponto onde a consciência e o ser se encaixam, isto é, onde o elemento subjectivo e o elemento objectivo do processo do mundo convergem. No homem, os impulsos atravessam a temporalidade da vida anímica e mostram quase sempre um pré-conhecimento do fim. Por isso, em vez de instintos, Bloch prefere falar de tendências, cujos elementos são: um défice, uma meta e uma antecipação ou ainda-não, formando um arco que se estende do presente para o futuro. A tendência básica e primária não é o instinto sexual, como em Freud, mas a fome, a tendência a suum esse conservare, isto é, a tendência que impulsiona simplesmente a conservar-se vivo, da qual procedem os instintos imediatos e os movimentos do sentimento ou emoções. A esperança é algo biologicamente constitutivo da existência: a privação converte a fome em docta fames, em fome informada e instruída, inclusive esclarecida. O si mesmo é levado para além da conservação da sua vida: explode e a autoconservação transforma-se em auto-expansão. Da fome economicamente esclarecida nasce a decisão alimentada pelos sonhos diurnos de suprimir todas as circunstâncias em que o homem é um ser oprimido, ofendido e humilhado.
Ao analisar o mundo onírico de certos pacientes, Freud estudou aquilo a que Bloch chamou o já-não-consciente: a fantasia produtiva do homem ocupa-se das vivências que não pôde dominar e que, por isso, reprimiu. Nos sonhos nocturnos, aflora à consciência o passado reprimido e os impulsos reprimidos buscam a sua libertação nos sonhos. Esta fantasia produtiva que actua sobre o passado insuperado manifesta-se primordialmente nos sonhos nocturnos dos homens. Porém, como mostrou Bloch, não são só os pacientes que sonham: as pessoas saudáveis e felizes também sonham e estes sonhos não são desencadeados somente por vivências desagradáveis mas também por vivências felizes. No sonhar acordado, desperto, revela-se um ainda-não-consciente, isto é, uma antecipação do futuro que ainda-não-existe. Esta fantasia que se manifesta no limiar do presente que se conhece é uma fantasia fascinada pela novidade possível. É uma imaginação poética que não pretende modificar o passado insuportável, mas que penetra no futuro ainda-não-realizado, para o antecipar mediante formas simbólicas e ideais. Os sonhos diurnos têm a sua origem num défice e tendem a superá-lo. São sonhos de uma vida melhor que resultam do jogo da fantasia criadora: o sonhador encontra-se quase sempre no centro dos acontecimentos. Bloch analisa a sua estrutura sub specie utopica, isto é, a partir da fantasia criadora voltada para o futuro: os sonhos diurnos são voluntários (1), o eu do sonhador é conservado, embora não tenha nada a ver com os paraísos artificiais de Baudelaire (2), visam uma vida melhor e, devido à sua amplitude, podem abarcar outros eus com os quais procura melhorar a vida da comunidade (3), e tendem a ir até ao fim, sem satisfação fictícia, abstinência ou resignação (4). O sonho nocturno nutre-se da regressão, enquanto o sonho diurno prefigura e antecipa um outro princípio de realidade e, por isso, projecta-se no futuro. Os sonhos acordados têm um carácter intencional e projectam-se, quando visam um futuro autêntico, para o não-cumprido, o ainda-não-consciente, de modo a descrever um arco utópico que vai da fantasia antecipativa até ao futuro entrevisto. Como determinação fundamental do sonho diurno, o ainda-não-consciente constitui a única pré-consciência do futuro. O sonho diurno encerra na sua latência uma tendência para a claridade e, quando o presságio quer ser razoável, começa a florescer a esperança esclarecida, a docta spes. A partir do momento em que entra em jogo a razão, a esperança como afecto expectativo do sonhar para a frente deixa de ser mero estado de ânimo e converte-se em actuação consciente-sapiente: a função utópica como forma interna do acto da esperança abandona o passado e os seus conteúdos apoiam-se nas futuras possibilidades do ser de outro modo, ou seja, do ser melhor. A forma interna histórica da esperança é a cultura humana considerada no seu horizonte utópico-concreto. A simbiose de ambas constitui a docta spes, a atitude adoptada pela filosofia num mundo ainda-não-concluído.
A antropologia da esperança exige necessariamente uma ontologia do mundo aberto ao futuro e à história: a esperança humana encontra-se fundada nas infinitas possibilidades abertas do processo cósmico. Sem estas possibilidades reais, a esperança seria um absurdo, porque, segundo Kierkegaard, a esperança é precisamente a "paixão pelo possível". Bloch valoriza muito mais o conceito de possibilidade do que o conceito de realidade: a realidade mais não é do que a realização da possibilidade. Por isso, Bloch elaborou uma ontologia do que ainda-não-é mas que é possível ou susceptível de vir a ser. Ao sentido de realidade do homem corresponde logicamente o sentido de possibilidade. O mundo em que vivemos e esperamos não é um edifício acabado e concluído, mas uma combinação de realidades e de possibilidades, isto é, um processo aberto. Não é um sistema de estruturas eternamente repetíveis e reproduzíveis, mas uma história aberta, onde acontecem e podem ser realizadas coisas novas. O mundo é, segundo a expressão feliz de Bloch, um laboratorium possibilis salutis: não é um céu da perfeição nem um inferno do aniquilamento, mas simplesmente uma terra imperfeita, cujas possibilidades estão abertas ao bem e ao mal. Isto significa que o futuro do mundo pode ser ou a morte do universo e o nada ou a pátria da identidade.
Com exclusão das possibilidades irreais, existem diversos tipos de possibilidades: a possibilidade formal, na qual se baseia o optimismo ingénuo das utopias abstractas; a possibilidade epistemológica, que, apesar de constituir o fundamento da liberdade da razão humana, é demasiado subjectiva; a possibilidade objectiva que reside na raiz das próprias coisas; e a possibilidade dialéctica, que permite captar a relação entre utopia e «matéria», porque, "sem matéria não existe um suporte para a antecipação" e sem antecipação "não há horizonte para a matéria". Esta última categoria de possibilidade permite superar a oposição entre uma utopia que reflecte o movimento da realidade (o possível objecto) e uma utopia que é fonte da liberdade humana. A categoria de possibilidade dialéctica rompe com uma ontologia acabada do ser já existente e avança com uma ontologia do ser ainda-não-existente: a utopia exige a insatisfação permanente com o que existe, a exploração do homem pelo homem, ao mesmo tempo que procura explicitar as possibilidades concretas das quais a realidade está grávida. Constitui o eixo da perfectibilidade da mais absoluta de todas as utopias sociais: a naturalização do homem e a humanização da natureza (Marx).
Para Bloch, a finalidade da filosofia é a transformação do mundo. Graças à possibilidade real e dialéctica, os sonhos utópicos, que são diurnos, acordados e contagiosos, não degeneram em ilusões ocas, mas ajudam a conservar o optimismo militante. Este optimismo está fundado sobre a utopia concreta, que o liberta do quietismo e lhe atribui o seu próprio lugar à frente do processo do mundo, onde se produz o novum. A produção da frente e do novum ao longo da história humana desemboca numa nova realidade que capta uma terceira categoria: ultimum. O ultimum deverá ser a pátria da identidade. Assim, a utopia concreta constitui "o ponto de intersecção entre o sonho e a vida, sem o qual o sonho seria mera utopia abstracta e a vida pura trivialidade". A utopia concreta faz da esperança subjectiva uma esperança comunitária, uma docta spes, uma esperança esclarecida, que critica o mundo existente, com a sua capacidade de se erguer por cima do imediato e do fáctico e inventar novos possíveis a partir da "obscuridade do momento vivido". A utopia concreta visa eliminar a miséria humana e o direito natural visa suprimir a humilhação do homem. Segundo Marx, o imperativo categórico é "subverter todas as condições em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado e desvalorizado».
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 27 de julho de 2008

Antropologia da Esperança de Ernst Bloch


Coube a Ernst Bloch elaborar não só um "princípio esperança" para o homem, mas também uma ontologia da possibilidade para o mundo. A consciência antecipante é uma forma de ruptura com o nosso tempo metabolicamente reduzido. A consciência humana é socialmente utópica quando não se refere a um estado social passado ou presente, mas quando considera uma vida social futura ainda-não-existente. As utopias são antecipações de um estado futuro, desejado, que, por comparação com a situação de miséria presente, oferece uma vida melhor, mais livre e mais humana. Bloch distingue dois tipos de utopias: as utopias abstractas, cujo projecto é completamente desligado da realidade presente e das possibilidades oferecidas pelo princípio de realidade, para construir em espírito os castelos de areia de um "outro mundo", e as utopias concretas, cujo espírito ultrapassa a realidade presente e considera o futuro, relacionando esse projecto com as contradições e os sofrimentos do presente, a fim de os vencer. Estas últimas utopias não jogam com possibilidades irreais, mas com possibilidades dialécticas de uma realidade objectiva, procurando novas alternativas sociais na esfera do que é realmente possível e motivando assim mudanças concretas. Só desejando o que parece impossível é que se atinge realmente as fronteiras do possível. A transformação qualitativa do mundo deve manter a visão utópica de um outro mundo, de um outro princípio de realidade. Sem a utopia não é possível mudar o mundo.
A esperança tem sido classificada entre os afectos e as disposições anímicas do homem e descrita exclusivamente do ponto de vista psicológico. Espinoza associava a esperança com o medo e via nestas duas disposições a impotência da nossa alma. A esperança representava o ópio dos homens que desejavam evadir-se da realidade. Contudo, Dostoiévski entendeu a esperança de um modo diferente: A formiga conhece a estrutura do seu formigueiro e a abelha, da sua colmeia, enquanto o homem desconhece a sua própria estrutura. Isto significa que o homem não é um ser acabado, como a formiga ou a abelha: o seu ser não lhe foi dado, mas recomendado como uma tarefa a realizar. O homem permanece oculto a si mesmo e, por isso, procura sempre o seu verdadeiro ser. O homem é, para si mesmo, uma questão aberta, um enigma e frequentemente um espectro. É forçado a dar a si mesmo a resposta da sua humanidade, sem poder continuar e permanecer na história com nenhuma dessas respostas. O homem é, na sua mera existência factual, uma experiência aberta.
Esperar não significa ter todas as esperanças que se desejam, mas estar aberto, em atitude expectante. Desespero não significa sepultar certas esperanças ou destruir certas ilusões, mas desistir da sua própria latência, o que ainda não é mas deveria ser, e, portanto, renunciar a si mesmo. Estar expectante significa estar em estado de disponibilidade, não estar vinculado nem ao passado nem a sonhos dourados, mas consentir a experiência aberta que somos. Neste sentido, a esperança não é algo que uns possuem e outros não possuem, mas uma situação fundamental ou simplesmente o mais importante elemento constitutivo da existência humana. O homem espera enquanto vive e vice-versa, vive enquanto espera.
Os animais têm o seu próprio meio vital específico da sua classe, o qual lhes pertence intrinsecamente como a parte exterior dos seus instintos. O homem é o único ser que não está sujeito a nenhum meio ambiente determinado. É um ser aberto ao mundo, que tem necessidade e capacidade para construir em qualquer local o seu mundo cultural, o seu próprio meio vital. Porém, existe um elemento e um meio ambiente sem os quais o homem não pode viver de modo humano: é a esperança que constitui o seu hábito de vida. Neste contexto, a esperança designa uma peculiaridade do ser especificamente humano e o meio, elemento ou fluído, exigido pela existência especificamente humana. Afirmar que o homem é um ser escatológico é superar todas as antropologias que tratam o homem como ser da palavra, ser político ou ser instrumental, sem levar em conta a sua abertura ao tempo. Na esperança, o homem não conhece experiências definitivas, mas capta novos obstáculos, impulsos e ocasiões para evidenciar a sua vitalidade. É um ser descobridor, um conquistador, um criador de símbolos e de obras, um jogador. É um ser que se olha a si mesmo por cima do homem e que projecta o seu olhar para o futuro para além do presente: a sua manifestação vital é um compromisso com o futuro para o qual caminha.
Como não está essencialmente determinado, o homem revela sempre um novo rosto através das suas culturas e da sua longa história. Porém, é possível assinalar a direcção em que o homem se move. A essência do homem consiste mais numa orientação e perspectiva do que num traço definível. Na esperança, o homem reconhece cada situação em que se encontra como uma estação no caminho que tem de superar e deixar para trás de si, afim de realizar o seu ser humano. Esta direcção domina o espírito e o corpo do homem, porque, nesta orientação, o homem sofre e actua como um todo. Quando resiste a esta orientação da sua conduta total, o homem adoece e o seu comportamento torna-se retrógrado: os homens morrem na e para a vida, como se se movessem numa rua sem saída, quais seres autofóbicos. Este desespero que tomou conta do homem metabolicamente reduzido induz a delinquência e a criminalidade. A morte por desespero e a criminalidade por falta de esperança revelam que o homem, como ser temporal, está orientado para o futuro e que a esta orientação corresponde a esperança. Ao contrário do animal, o homem pode errar e equivocar-se de maneira total e absoluta. A sua esperança representa o risco da sua vida e, neste jogo arriscado da vida, o homem pode conquistar-se ou perder-se: a sua pessoa está sempre em jogo, portanto, em risco. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Althusser e Marx: Sobre Antropologia

«Je suis. Mais je ne suis pas en possession de moi-même. Telle est l'origine de notre devenir». (Ernst Bloch)
Com o advento do estruturalismo e das ciências sociais e humanas, o conceito de essência ou natureza do homem tornou-se alvo de críticas desconstrutivistas, embora não tenha sido completamente abandonado pela antropologia filosófica. Este recuo em relação ao estudo filosófico do homem conduziu ao triunfo do pensamento conformista e, se quisermos mudar qualitativamente a sociedade estabelecida, não podemos abdicar do conceito de natureza do homem. É necessário retomá-lo de novo e demarcá-lo das abordagens das demais teorias clássicas do homem.
A este propósito a história do desenvolvimento do pensamento de Karl Marx é exemplar. Althusser demonstrou de modo inteligente que Marx, a partir de 1845, «rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência do homem». O desenvolvimento do pensamento científico-filosófico de Marx é atravessado por uma ruptura epistemológica que o divide em dois grandes períodos essenciais: o período ainda ideológico de juventude, anterior à ruptura de 1845, e o período científico, posterior à ruptura de 1845. O primeiro período, sobretudo a sua segunda etapa (1842-1845), é dominado pela problemática teórica do humanismo, em particular do humanismo comunitário de Feuerbach. Com efeito, o homem é pensado como ser comunitário, ou seja, como um ser que só se realiza teórica e praticamente nas relações humanas universais, tanto com os homens como com os seus objectos. É nesta essência do homem que se fundam a história e a política. Assim, a história mais não é que a alienação e a produção da razão na desrazão, do homem verdadeiro no homem alienado: «Nos produtos alienados do seu trabalho (mercadorias, Estado, religião), o homem, sem o saber, realiza a essência do homem. Esta perda do homem, que produz a história e o homem, supõe efectivamente uma essência preexistente definida. No final da história, este homem, transformado em objectividade inumana, não terá mais do que tomar, como sujeito, a sua própria essência alienada na propriedade, na religião e no Estado, para vir a ser o homem total, o homem verdadeiro» (Althusser).
Ora, se a história mais não é do que a alienação do homem, ou seja, a exteriorização da sua essência nos produtos alienados do seu trabalho, a acção política deverá ser uma reapropriação prática da sua essência pelo homem: «Com efeito, o Estado, como a religião, é efectivamente o homem, mas o homem na sua desapossessão; o homem está cindido entre o cidadão (Estado) e o homem civil, duas abstracções. No céu do Estado, nos "direitos do cidadão", o homem vive imaginariamente a comunidade humana de que está privado na terra dos "direitos do homem". A revolução não será mais somente política (reforma liberal racional do Estado), mas também "humana" ("comunista"), para restituir ao homem a sua natureza alienada na forma fantástica do dinheiro, do poder e dos deuses. Por conseguinte, esta revolução prática será a obra comum da filosofia e do proletariado porquanto, na filosofia, o homem é afirmado teoricamente; no proletariado, ele é negado praticamente. A penetração da filosofia no proletariado será a revolta consciente da afirmação contra a sua própria negação, a revolta do homem contra as suas condições inumanas. Então, o proletariado negará a sua própria negação e tomará posse de si mesmo no comunismo. A revolução é a prática mesma da lógica imanente à alienação: é o momento em que a critica, até aí desarmada, reconhece as suas armas no proletariado. Ela dá ao proletariado a teoria do que ele é: o proletariado dá-lhe, por sua vez, a sua força armada, uma só e mesma força em que cada um se alia como que consigo mesmo. A aliança revolucionária do proletariado e da filosofia é, pois, ainda aqui, selada na essência do homem» (Althusser).
Após a ruptura de 1845, Marx não só rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência do homem, como também parece romper radicalmente com toda a antropologia filosófica ou todo o humanismo teórico. Os três aspectos indissociáveis desta ruptura são os seguintes: 1) formação de uma teoria da história e da política fundada em conceitos radicalmente novos, tais como os conceitos de formação social, modo de produção, forças produtivas, relações de produção, superestrutura, ideologias, determinação em última instância pela economia, determinação específica dos outros níveis, etc.; 2) crítica radical das pretensões teóricas de todo o humanismo filosófico; e 3) definição do humanismo como ideologia. A essência do homem criticada (2) é definida como ideologia (3), categoria esta que pertence à nova teoria da sociedade e da história (1). Esta ruptura é, num só e mesmo acto epistemológico, a rejeição da problemática da filosofia anterior e a adopção de uma problemática nova, desta vez "científica". A filosofia anterior idealista repousava, em todos os seus domínios e desenvolvimentos, sobre uma problemática da natureza humana, constituída por um sistema coerente de conceitos precisos, estreitamente articulados uns aos outros. Os seus dois postulados complementares e indissociáveis, analisados por Marx na sua VI Tese sobre Feuerbach, precisam que existe uma essência universal do homem (1), a qual é o atributo dos indivíduos tomados isoladamente, que são os seus sujeitos reais (2).
Althusser demonstrou que a sua existência e a sua unidade pressupõem toda uma concepção empirista-idealista do mundo: «Para que a essência do homem seja atributo universal, é preciso, com efeito, que os sujeitos concretos existam como dados absolutos: o que implica um empirismo do sujeito. Para que esses indivíduos empíricos sejam homens, é preciso que tragam cada um em si toda a essência humana, se não de facto, ao menos de direito: o que implica, pois, o idealismo da essência. O idealismo do sujeito implica, pois, o idealismo da essência e reciprocamente». É certo que esta relação se pode inverter no seu contrário (empirismo do conceito/idealismo do sujeito), mas esta inversão somente diz respeito à estrutura fundamental dessa problemática, que permanece fixa. Isto significa que os termos em presença e a sua relação só variam no interior de uma estrutura-tipo invariante, que constitui a própria problemática: «a um idealismo da essência corresponde sempre um empirismo do sujeito ou a um idealismo do sujeito, um empirismo da essência» (Althusser). Quando rejeitou a essência do homem como fundamento teórico da teoria da história e da política, Marx rejeita igualmente todo o sistema orgânico de postulados da problemática antropológico-humanista anterior a si. Os antigos conceitos são não só recusados como também substituídos por conceitos novos: «Com efeito, Marx funda uma nova problemática, um novo modo sistemático de apresentar as questões ao mundo, novos princípios e um novo método» (Althusser). Esta descoberta científica de Marx, que está contida imediatamente na teoria do "materialismo histórico", propõe uma nova teoria da história das sociedades humanas e uma nova concepção da filosofia, mais precisamente uma teoria materialista dialéctico-histórica dos diferentes níveis específicos da prática humana nas suas articulações próprias, fundadas nas articulações específicas da unidade da sociedade humana.
Se Marx — ou para sermos mais precisos, se Althusser — rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência humana preexistente definida, e se a substitui por uma nova teoria da história e por uma nova prática da filosofia, cabe-nos o direito legítimo de perguntar se ainda é possível uma teoria do homem, isto é, uma Antropologia. Parece-nos que nem Marx nem Althusser negaram completamente a possibilidade de uma antropologia, desde que não se caia nas armadilhas de uma problemática do humanismo da essência. Como se sabe, Marx afirmou, em O Capital, que o seu «método analítico não parte do homem, mas do período social economicamente dado...». Após os seus "Elementos de Auto-crítica", Althusser escreveu, na sua resposta a John Lewis, que «"o homem" é um mito da ideologia burguesa: o Marxismo-Leninismo não pode partir do "homem". "Parte do período social economicamente determinado": e, no termo da sua análise, ele pode "chegar" aos homens reais. Esses são então o ponto de chegada de uma análise que parte das relações sociais do modo de produção existente, das relações de classe e da luta de classes. Esses homens são radicalmente diferentes do "homem" da ideologia burguesa». E Althusser acrescenta: «"A sociedade não é composta de indivíduos", diz Marx. Efectivamente: a sociedade não é uma "composição", uma "adição" de indivíduos; o que a constitui é o sistema das suas relações sociais em que vivem, trabalham e lutam os seus indivíduos. Efectivamente: a sociedade não é composta de indivíduos em geral, quaisquer, os quais seriam outros tantos exemplares do "homem"; porque cada sociedade tem os seus indivíduos, histórica e socialmente determinados. O indivíduo-escravo não é o indivíduo-servo nem o indivíduo-proletário, e o mesmo se passa quanto aos indivíduos de cada classe dominante correspondente. No mesmo sentido, mesmo uma classe não é "composta" de quaisquer indivíduos: cada classe tem os seus indivíduos, modelados na sua individualidade pelas suas condições de vida, de trabalho, de exploração e de luta — pelas relações da luta de classes. Na sua massa, os homens reais são aquilo que as condições de classe deles fazem. Essas condições não dependem da "natureza" burguesa do "homem": a liberdade. Pelo contrário, as suas liberdades, incluindo as formas e os limites dessas liberdades, dependem dessas condições».
Este texto não deixa margem para dúvidas: a teoria da subjectividade e da individualidade, ou seja, a antropologia é possível, desde que se fundamente na teoria do "materialismo histórico". Althusser, embora crítico intransigente do humanismo da essência, está, no entanto, de acordo com Georg Luckács quando este escreve que «para o marxismo não há, pois, em última análise, ciência jurídica, economia política, história, etc., autónomas: há somente uma ciência, histórica e dialéctica, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade». Isto quer dizer que a antropologia só é possível enquanto teoria regional (e dependente) da teoria do materialismo histórico, ou seja, da ciência da história das sociedades humanas. Até mesmo certos antropólogos de orientação marxista, como por exemplo J. Copans, S. Tornay, M. Godelier ou C. Backès-Clément, que criticam pontualmente certas teses defendidas por Althusser, reconhecem que o projecto de uma antropologia geral deverá defini-la como a «ciência única das formações sociais e históricas». Com a definição da antropologia como ciência do desenvolvimento das sociedades humanas, os marxistas pretendem salvaguardar a sua problemática teórica de toda e qualquer investida por parte da problemática com a qual Marx tinha (supostamente) rompido em 1845.
Quando responde às críticas de John Lewis, Althusser aproveita a ocasião para criticar severamente a antropologia de Sartre e não só. Após Marx, Nietzsche e Freud, tem-se vindo a assistir à consumação da ruína do essencialismo metafísico enquanto corrente do pensamento filosófico. Um dos seus momentos, e não o menos importante, foi o êxito das várias correntes do existencialismo, em particular do existencialismo ateu de Sartre. Na verdade, Jean-Paul Sartre teve sempre como projecto fundamental lançar as bases para a formulação da antropologia dos tempos modernos. Como pretendia realmente romper com a sociedade burguesa e emancipar o homem, Sartre teve de dialogar com o marxismo, que ocupava precisamente esse terreno. Desse diálogo resultou a sua conversão ao marxismo. Para Sartre, o marxismo é «a única antropologia possível, que deve ser simultaneamente histórica e estrutural. É a única, ao mesmo tempo, que toma o homem na sua totalidade, isto é, a partir da materialidade da sua condição». Contudo, o marxismo congelado apresenta uma falha: «Ele perdeu por completo o sentido do que é um homem», empobrecendo e desumanizando assim a sua própria concepção da história e da dialéctica, ou seja, «o marxismo tende a eliminar o questionador da sua investigação e a fazer do questionado o objecto de um Saber absoluto». É, por isso, que «nós podemos, ao mesmo tempo, declarar-nos em profundo acordo com a filosofia marxista e manter, provisoriamente, a autonomia da ideologia existencial». Ora, se há no próprio âmago da filosofia marxista «o lugar vago de uma antropologia concreta», a função do existencialismo será a de «reconquistar o homem no interior do marxismo».
Quando no seu empreendimento filosófico se depara com o essencialismo metafísico, Sartre rejeita-o e, na "Crítica da Razão Dialéctica", afirma que é impossível «elaborar a definição de algo como uma essência humana, ou seja, um conjunto fixo de determinações a partir das quais seria possível consignar um lugar definido aos objectos estudados». Deste modo, Sartre vê-se impossibilitado de ultrapassar o essencialismo metafísico. Em vez de o superar, opõe-se-lhe no âmbito do seu próprio terreno, o da filosofia especulativa. Assim, à ideia de que o homem em geral se define por uma essência humana abstracta, opõe a simples inexistência dessa essência abstracta. Esta tese não o liberta da concepção do homem em geral, mas leva-o antes a defini-lo através da ausência de uma essência preestabelecida, ou seja, por uma liberdade abstracta, ontologicamente constitutiva da realidade humana. Isto significa que toda a sua antropologia é construída à base de entidades abstractas, tais como o em-si, o para-si, o homem, o outro, a liberdade, não passando as suas análises concretas de partes justificativas da construção filosófica. Como não reconhece claramente a excentricidade posicional da essência humana real, Sartre remete todos os problemas inerentes à mudança social para a escolha, para o projecto livre do homem, ou seja, do indivíduo em geral, concebido enquanto suporte e origem última de todas as relações sociais. Quando afirma que «o homem não é‚ senão aquilo que faz de si mesmo», Sartre mais não faz do que conceder a prioridade ontológica essencial ao indivíduo em geral relativamente às relações sociais. E a tese fundamental da "Crítica da Razão Dialéctica" continua a ser a mesma. Efectivamente, escreve Sartre, «o único fundamento concreto da dialéctica histórica é a estrutura dialéctica da acção individual», ou seja, os únicos agentes dessa dialéctica histórica «são os homens individuais enquanto executantes de livres actividades». Quer dizer que o homem, enquanto indivíduo livre, é obrigatoriamente considerado como factor da história, e simultaneamente da sua própria história. Dado que não reconhece os homens individuais como sendo um produto prévio das relações sociais, Sartre, que mais não faz do que considerá-los como sendo anteriores às relações sociais, acaba por psicologizar e subjectivar invencivelmente todas as coordenadas de base da antropologia, impedindo deste modo a constituição de uma antropologia verdadeiramente científica e filosófica.
O desenvolvimento de um certo número de ciências humanas no âmbito do seu positivismo acarretou necessariamente a dissolução da vasta influência do existencialismo. Assim, a psicanálise, a linguística e a etnologia mostraram que a antropologia não pode encontrar outro fundamento que não seja nas estruturas objectivas, impessoais e inconscientes que subentendem e informam toda a existência humana. É precisamente esta a ideia central que Lévi-Strauss opõe a Sartre quando, no último capítulo de "O Pensamento Selvagem", escreve que «quem começa por se instalar nas pretensas evidências do eu nunca mais de lá sai». E a sua crítica a Sartre continua nestes termos: «Entrincheirado no individualismo e no empirismo, um Cogito — que quer ser ingénuo e primitivo — perde-se nos impasses da psicologia social. Porque é evidente que as situações a partir das quais Sartre procura definir as condições formais da realidade social: greve, combates de boxe, desafio de futebol, bicha de espera numa paragem de autocarro, não passam todas senão de incidentes secundários da vida em sociedade; elas não podem, portanto, servir para desvendar os seus fundamentos (...). Ao mesmo tempo que rendemos homenagem à fenomenologia sartriana, não esperamos encontrar nela senão um ponto de chegada, nunca um ponto de partida».
Apesar da sua crítica severa mas justa à fenomenologia sartriana, Lévi-Strauss não consegue superar a antropologia e o humanismo filosóficos através de uma concepção rigorosa das ciências humanas, uma vez que a sua leitura se baseia implícita ou explicitamente numa concepção geral do homem que se distingue sobretudo por uma ausência: a estrutura das relações de produção, no que diz respeito ao contributo de Marx. É certo que Lévi-Strauss clama por inúmeras vezes a importância que dedica ao «incontestável primado das infra-estruturas», mas, quando as reduz aos dados geográficos, apercebemo-nos imediatamente o quão afastado está da economia política, no referente à sua acepção marxista. Lévi-Strauss é assim levado a substituir as infra-estruturas económicas, colocadas entre parêntesis, por outras, que irão preencher por completo o papel de estruturas de base. Estas outras estruturas mais não são do que as estruturas linguísticas que foram promovidas a essa função pela antropologia estrutural. A partir do contributo das ciências linguísticas para o estudo dos factos culturais, e mediante uma constante passagem sub-reptícia ao sentido generalizado em que, por oposição ao natural, o termo cultural pretende designar tudo o que é social, a antropologia estrutural é levada a construir, na base dessas ciências, a ciência-piloto para o conjunto das ciências humanas. Deste modo, apresenta a linguagem como sendo a essência de tudo o que é humano. Com efeito, Lévi-Strauss afirma inequivocamente que «a linguagem é ao mesmo tempo o facto cultural por excelência (que distingue o homem do animal) e aquele por intermédio do qual todas as formas de vida social se estabelecem e perpetuam». Dado que têm por contextura a linguagem, as instituições sociais e as condutas individuais são apenas «modalidades temporais das leis universais em que consiste a actividade inconsciente do espírito». Ao afirmar que as leis universais do espírito humano orientam e governam o mundo, Lévi-Strauss nada mais faz do que modernizar a velha tradição do idealismo sociológico francês — a do comtismo por oposição ao marxismo, sem lograr no entanto uma vitória contundente sobre o humanismo existencialista.
A fenomenologia sartriana e a antropologia estrutural são, portanto, duas abordagens antropológicas literalmente opostas, mas, a um nível bastante mais profundo, perfeitamente análogas. Sartre, ao defender a prioridade ontológica essencial do indivíduo relativamente às relações sociais, e Lévi-Strauss, ao afirmar axiomaticamente que a linguagem impregna todas as categorias sociais, nada podendo existir sem ela na ordem dos fenómenos sociais, remetem-nos, pelo menos parcialmente, para aquém da revolução teórica operada por Marx. Como não conseguiram ultrapassar real e cientificamente o essencialismo metafísico, ambos permaneceram prisioneiros de uma problemática antropológica tradicional e sobretudo de um conceito metafísico, não dialéctico e não histórico, de essência humana, claramente desmistificado por Marx na VI Tese sobre Feuerbach, onde se diz que a natureza humana é «o conjunto das relações sociais». A partir desse momento, qualquer teoria antropológica que se pretenda cientifica deve, se não quiser ser tratada como especulativa e abstracta, substituir a concepção pré-dialéctica de essência humana por uma nova concepção dialéctica e histórica, sem no entanto procurar reduzi-la a um único traço fixo. Com efeito, o que desaparece hoje não é, de forma alguma, a essência humana, mas sim a forma ideológica mistificada sob a qual esta era apresentada. O essencialismo metafísico afirmava que os indivíduos eram exemplos singulares do homem em geral, cuja essência era definida por um conjunto de propriedades universais e imutáveis, possuindo em si mesmas a forma psicológica, propriedades naturais ou sobrenaturais mas, em todo o caso, não históricas. Ou seja, o essencialismo metafísico mais não é do que uma teoria de uma essência humana abstracta, espontaneamente inerente ao indivíduo isolado. Marx rompeu radicalmente com uma tal problemática filosófico-antropológica: ao fazê-lo tornou possível um conhecimento genuinamente científico e filosófico do homem. Contudo, se a antropologia pretende abarcar a totalidade do homem, procurando implicitamente o conhecimento do ser da realidade humana, o conceito marxista de essência humana, enquanto conjunto das relações sociais, apresenta-se como insuficiente, uma vez que escamoteia a complexidade da organização humana. Althusser e, de um modo geral, os marxistas dizem, e com toda a razão, que cada sociedade ou cada classe social possui os seus próprios indivíduos reais, mas esquecem-se de acrescentar que esses indivíduos foram modelados pelo seu meio social porque os seus cérebros são dotados geneticamente de uma organização morfológica aberta às instruções do meio exterior. Assim, os indivíduos sociais são aqueles que já trazem, na estrutura fina dos seus cérebros, a marca cultural da sua sociedade e/ou da sua classe social.
Tal como o modelo marxista ortodoxo, a maior parte dos modelos antropológicos, com excepção dos de Max Scheler, H. Plessner, A. Portmann, Arnold Gehlen e Herbert Marcuse, nem sempre levam em conta a complexidade da natureza humana, mesmo que, como os de Sartre ou de Lévi-Strauss, reclamem o conhecimento da totalidade do homem. Convém retomar a antropologia a partir de baixo, representada por A. Gehlen, H. Plessner ou A. Portmann, que procura apreender a essência do homem a partir de uma reflexão vigorosa da biologia moderna e não somente a partir das chamadas ciências humanas que demoliram a noção de homem, e ser céptico em relação a uma antropologia a partir de cima, onde se poderia incluir a antropologia estrutural, a antropologia existencial, a antropologia dialogal (M. Buber, F. Ebner) e a antropologia cultural (Ernst Cassirer, E. Rothacker, M. Landmann, H. J. Schoeps). Com efeito, na medida em que conhecemos o ser humano, conhecemo-lo como interrogação, como liberdade e abertura. Como dizem os teólogos: o homem é mistério. Se, como diz H. Plessner, «somos, mas não nos possuímos», então a consequência desta condição humana foi claramente inferida por Ernst Bloch: «Essa a razão por que não fazemos mais que nos transformar». A nova antropologia dialéctica, portanto, negativa, deve ser simultaneamente científica e filosófica no sentido estabelecido pelo Jovem-Marx, muito diferente daquele apresentado por Althusser: a verdadeira teoria do Homem não pretende liquidar a humanidade, apresentando o "enigma resolvido" do homem em termos de estruturas objectivas, tal como pretendiam Lévi-Strauss e os estruturalistas, incluindo Althusser e Foucault, mas sonhar com o futuro do homem novo. Sem a consciência antecipante, aquela que considera uma vida social futura ainda-não-existente, alicerçada na utopia concreta, não podemos romper com o nosso tempo inumano e ajudar a construir um mundo melhor.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 22 de julho de 2008

Controle Feminino e Lesbianismo

As sociedades ocidentais têm tentado suprimir o comportamento homossexual de modo severo e até mesmo brutal, e, actualmente, assistimos a um espectáculo degradante com os lideres islâmicos, indianos e negros a acusar o Ocidente de ter inventado a homossexualidade, propondo frequentemente punições brutais, incluindo a morte dos homossexuais. O sistema legal dos países ocidentais possibilita que essas "declarações" sejam feitas, de modo ileso e impune, no espaço ocidental. Esta passividade humilhante do sistema legal pode ser interpretada, não só como uma regressão cultural suicida preocupante, mas também como um controle masculino das leis que visam a supressão da homossexualidade masculina: no Ocidente, a democracia tornou-se uma farsa, encenada mediaticamente por abusadores do poder que já não encobrem a sua corrupção, diante de um auditório universal apático, passivo e atrofiado mental e cognitivamente.
A actividade lésbica constitui uma importante forma de sexualidade feminina e, por isso, as campanhas anti-gay e as leis podem ser encaradas como actividades sociais relevantes que visam suprimir a sexualidade feminina. As duas teorias do controle fazem predições diferentes sobre as atitudes em relação ao comportamento homossexual. Estas predições podem ser testadas empiricamente através de estudos planeados para saber se são os homens ou as mulheres que revelam maior intolerância em relação ao lesbianismo.
Diversos estudos (Whitley, 1988; Herek & Capitanio, 1999) mostraram que as mulheres se opõem mais ao lesbianismo do que os homens. Isto significa que as mulheres são mais negativas e intolerantes em relação ao lesbianismo do que os homens. Porém, os homens são mais negativos e intolerantes em relação à homossexualidade masculina do que em relação à homossexualidade feminina. O padrão feminino confirma a teoria do controle feminino, enquanto o padrão masculino contraria a teoria do controle masculino da supressão da sexualidade feminina.
Os homens e as mulheres são mais negativos e intolerantes em relação à homossexualidade do seu próprio género do que em relação à homossexualidade do género oposto. Este padrão escapa à capacidade de explanação de qualquer teoria evolucionista proposta, porque seria de esperar que, quantos mais membros do seu próprio género se tornassem homossexuais, menor seria a competição entre rivais pelo acesso aos acasalamentos com membros do sexo oposto. Em vez de incentivar a homossexualidade do mesmo género, com o objectivo de reduzir o número de rivais, os homens heterossexuais parecem reprimir a possibilidade de outros homens se tornarem abertamente homossexuais e encorajar a homossexualidade feminina. Em vez de promover a homossexualidade feminina, as mulheres toleram melhor a homossexualidade do género oposto e são intolerantes em relação ao lesbianismo. Ambas as atitudes indicam a reacção oposta à que seria de esperar: os homens são mais homofóbicos do que lesbofóbicos e as mulheres são mais lesbofóbicas do que homofóbicas, provavelmente por terem medo de ser alvo das investidas homossexuais. As atitudes em relação à homossexualidade exigem uma nova explicação científica e talvez mesmo uma reavaliação crítica do conceito de homofobia.
Anexo: Aproveito este momento para agradecer à minha amiga Papillon o seu amável texto que me dedica.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 19 de julho de 2008

Economia Sexual e Violência Conjugal

Em Portugal, a violência conjugal é um fenómeno cada vez mais frequente, banal e ubíquo, e, devido à regressão mental e cognitiva e ao atavismo cultural, está normalizada. No entanto, ainda não foi alvo do reconhecimento social e jurídico-político: a violência conjugal constitui um problema social importante. Os portugueses têm esse hábito terrível que é omitir tudo aquilo que os revele na sua verdadeira essência ou fingir que nada de grave se passa com eles. Quando se tomam algumas medidas legislativas, estas são claramente discriminatórias: a violência doméstica é vista como um fenómeno que ocorre unicamente no seio de casais heterossexuais. Portugal silencia as suas "vítimas" para manter o seu auto-retrato de um «país de brandos costumes», apesar dos meios de comunicação social exibirem diariamente imagens e notícias de violência preocupante, incluindo homicídios com contornos muito violentos e macabros.

Apesar das dificuldades teóricas, metodológicas e sociais, já existem muitíssimos estudos (Neilson, 2004; Brand & Kidd, 1986; Burke & Follingstad, 1999; Bryant & Demian, 1994; Gardner, 1989; Bradford, Ryan & Rothblum, 1994; KurdeK, 1994; Marrujo & Kreger, 1996; Merrill, 2001; Miller et al, 2001; Poorman & Seelau, 2001; Renzetti, 1992) que mostraram que os incidentes de violência ocorrem frequentemente tanto nos casais heterossexuais como nos casais homossexuais (11-12%). Estes estudos refutaram a premissa de que a violência é perpetrada somente por homens sobre mulheres heterossexuais e sugerem que a violência doméstica constitui um "abuso de poder" que pode ocorrer em qualquer tipo de relação íntima, independentemente do género ou da orientação sexual (Rohrbaugh, 2006).

Além disso, os tipos de violência, muito sumariamente, o abuso físico, o abuso sexual e o abuso psicológico, entre outros, são similares em todos os casais, excepto no facto das vítimas do mesmo-género sofrerem frequentemente de stress adicional devido ao seu isolamento social e jurídico e ao medo de que o abusador(a) possa expor, de modo hostil, a sua (das vítimas) orientação sexual. Aliás, em Portugal, as vítimas tendem a silenciar os abusos que sofrem nas suas relações íntimas, até mesmo das famílias, talvez porque, neste país, algumas das características extravagantes dos abusadores (infidelidade conjugal, agressividade, falsas imagens de masculinidade, alcoolismo, homofobia suspeita, o ditado segundo o qual "entre marido e mulher não se deve meter a colher", heterosexismo irracional) sejam admiradas e incentivadas publicamente.

As características dos abusadores parecem ser similares em todos os tipos de relações. Geralmente, os abusadores têm uma história de doença mental grave e sofreram abusos sexuais durante a infância. Os abusadores também são emocionalmente dependentes, sentem-se impotentes, tendem a responsabilizar os outros pelos seus problemas e usam a violência como um meio para impor poder, controle e dominação nas suas relações íntimas. É provável que o tipo de violência seja mais suave nos casais do mesmo-género do que nos casais de diferente-género, mas alguns estudos mostraram que a violência do mesmo-género não se reduz somente ao abuso ou terrorismo íntimo, mas abrange igualmente o uso de violência física e psicológica para dominar, controlar, intimidar e degradar o parceiro(a).

Uma meta-análise dos estudos disponíveis mostra claramente que os homens e as mulheres iniciam tais actos de violência íntima na mesma proporção, embora os homens possam causar mais danos graves (Archer, 2000). As ligações entre a actividade sexual e o abuso masculino, feminino ou recíproco, foram estudadas por DeMaris (1997) numa amostra de casais violentos. Embora o sexo fosse relativamente raro durante os episódios de violência, estes casais têm, em geral, mais relações sexuais que os casais não-violentos. Esta elevada frequência de actividade sexual parece reflectir um padrão no qual a vítima pode tentar apaziguar ou aplacar o parceiro violento através da oferta de sexo. DeMaris descobriu uma assimetria nos padrões de apaziguamento sexual: a elevada sexualidade era somente observada nos casos em que o marido era violento. Os casais com mulheres violentas não exibiam elevadas taxas de sexo.
Ora, esta assimetria confirma a teoria da troca social, segundo a qual o sexo é algo que as mulheres oferecem aos homens. Uma vítima feminina de violência pode frequentemente apaziguar ou aplacar o seu marido violento através da oferta de sexo-extra ao seu parceiro. Pelo contrário, uma vítima masculina não pode escapar à violência através da oferta de favores sexuais à sua mulher violenta. Isto significa que, até mesmo neste contexto de violência doméstica, a sexualidade feminina possui um valor para a troca social, enquanto a sexualidade masculina carece de valor.
Dois estudos providenciam duas versões institucionalizadas da troca de sexo para reduzir a vitimização violenta. Quando a Austrália era uma mera colónia penal, o açoite público severo dos condenados era uma forma comum de punição das infracções graves. As mulheres condenadas tinham uma opção: se concordassem permanecer nuas durante a punição, podiam ver reduzidas para metade o número de golpes (Hughes, 1988). Isto pode significar que a exibição dos corpos nus dá prazer aos observadores. Os prisioneiros masculinos não tinham essa opção e, por isso, as suas sentenças não eram apaziguadas ou reduzidas. Actualmente, nos EUA, alguns gangues de jovens iniciam os novos membros através do seu espancamento pelos membros do gangue. Porém, as mulheres têm a opção de ser "sexed in", isto é, de ter relações sexuais com qualquer membro do gangue, em vez do espancamento grupal (Miller, 1998). Neste caso, o sexo é visto como um recurso feminino e os homens não têm outra alternativa a não ser sofrer o espancamento físico, porque não têm nada para oferecer. O valor de troca da sexualidade feminina possibilita às mulheres usar o sexo para reduzir o número de açoites que deviam sofrer. Aliás, em Portugal, muitas mulheres oferecem sexo para obter "cargos universitários" ou outros privilégios profissionais.
Os dados da minha pesquisa de campo revelam uma associação forte entre o abusador e o seu papel sexual preferido: os homens gay sexualmente activos e as lésbicas butch tendem a usar mais a violência física do que os seus parceiros com preferências sexuais complementares às suas. A maior parte dos casais do mesmo-sexo diferenciados sexualmente revela uma assimetria idêntica àquela observada nos casais heterossexuais violentos: elevada frequência de actividade sexual, nudismo e terrorismo íntimo: os parceiros sexualmente atípicos oferecem sexo-extra para apaziguar a agressividade do parceiro violento e, muito frequentemente, são alvo de práticas sexuais humilhantes. Contudo, nos casais homossexuais masculinos, a escalada de violência pode ser muito grave, porque as vítimas tendem a defender-se mais do que as vítimas heterossexuais. O isolamento social é favorecido pelo abusador e a vítima pode ficar completamente isolada no mundo, até mesmo da família e dos amigos, e perder a oportunidade de uma vida profissional segura, com graves efeitos na sua saúde.
Os espaços residenciais deveriam garantir intimidade, segurança psicológica e socialização. «Estar em sua casa» significa dispor de um espaço pessoal que, por um lado, se pode assinalar com a sua marca e que, por outro lado, delimita um território inviolável sobre o qual se exerce um direito. Desta ideia destacam-se dois aspectos funcionais: a protecção contra o mundo exterior (função de protecção) e o apego a um lugar, factor de um sentimento de identidade (função de ancoradouro). No universo doméstico, a vida de cada pessoa não deve ser perturbada de maneira imprevisível, mais ou menos brusca ou violenta, por perigos que transformariam esse espaço numa espécie de lugar estratégico que obrigasse a defender-se permanentemente de tal ou tal ameaça eventual. No entanto, quando se partilha a habitação com outras pessoas, em particular com o companheiro, a vida de cada um pode ser perturbada, de maneira mais ou menos violenta, pelo próprio companheiro e/ou pela intromissão de terceiros. É frequente um dos membros do casal chegar a casa e surpreender o seu companheiro na cama com outro indivíduo ou ser espancado e agredido pelo companheiro. Nestes casos, a habitação deixa de ser um espaço de segurança e transforma-se num espaço de humilhação: os casais homossexuais em que um dos membros não «alinha em esquemas a três», enquanto o outro anda sempre à procura de novas experiências sexuais, tendem a viver num clima de permanente tensão e de agressão.
Apesar da sua inclinação sexual promíscua, muitíssimos homossexuais de ambos os sexos estabelecem uniões estáveis, fechadas ou abertas. Muitos destes casais têm uma vida conjugal normal, semelhante ou mesmo superior à dos casais heterossexuais normais, mas outros vivem em conflito permanente, com episódios regulares de violência doméstica. Os incidentes de violência doméstica ocorrem com a mesma frequência nos casais homossexuais como nos casais heterossexuais. Os tipos de violência doméstica são similares em todos os casais, embora a violência do mesmo género tenda a constituir terrorismo íntimo. As suas vítimas tendem a defender-se das agressões mais vezes do que as vítimas do género oposto e esta elevada reactividade leva frequentemente a uma escalada de violência física (Pitt & Dolan-Soto, 2001).
As avenças conjugais começam quando um membro do casal descobre que o seu companheiro o traí frequentemente ou quando este procura negociar uma relação aberta. Quando após longa negociação concordam em abrir a relação a terceiros, o casal pode comprometer-se num tipo de ligação em que ambos se envolvem sexualmente com terceiros, não devendo nenhum deles fazer sexo sem a participação do outro, ou numa ligação do tipo «cada um por sua conta». Mas, independentemente do tipo negociado de abertura do casal, estas relações abertas tendem a gerar situações de conflito, inveja e ciúme, conduzindo frequentemente à violência psicológica, sexual e física, ao mesmo tempo que desgasta a qualidade do sexo conjugal. A relação torna-se abusiva e um dos membros adquire mais poder e controle sobre o outro, sobretudo quando este está numa situação social vulnerável e precária. Este poder é usado de um modo que prejudica o outro e lhe provoca medo.
Geralmente, os abusadores conseguem isolar o seu companheiro dos amigos, da família e da comunidade gay, tornando-o mais dependente. Este isolamento é acompanhado frequentemente por outros comportamentos de abuso, incluindo agressões físicas graves e destruição do património. Estes padrões de abuso isolam efectivamente a vítima, reduzem a sua auto-estima e geram medo. Com as vítimas isoladas, os abusadores tendem a procurar mais sexo ocasional com múltiplos parceiros e/ou a sair regularmente com «amigos coloridos» e a manter relações paralelas, a que chamam «amizades coloridas». Quando procedem deste modo, os insultos começam a ser acompanhados por agressões físicas de todos os tipos. Paradoxalmente, muitas destas relações violentas não se dissolvem e tendem a durar, através de renegociações que objectivamente não alteram o ciclo de violência doméstica. Os casais que andam juntos no engate agridem-se frequentemente em lugares públicos, por causa da escolha do terceiro elemento e, quando fazem sexo com terceiros, um deles fica sexual e emocionalmente prejudicado. Com a excepção de uns poucos casos de agressões físicas públicas, provavelmente desencadeadas sob o efeito do álcool ou de drogas (cocaína), os abusadores da nossa amostra não revelaram um padrão de associação com o uso de drogas, mas de associação com baixa auto-estima e comportamento sexual compulsivo.
Outros padrões de abuso frequentes são insinuar que o companheiro é gay, incitá-lo e/ou forçá-lo a frequentar os circuitos de engate gay, tentar prostitui-lo, fazer periclitar o seu emprego, destruir os seus bens ou propriedade, insultá-lo com palavrões ofensivos e preconceituosos, fazer sexo de modo a magoá-lo ou feri-lo, fazer "chupões" em zonas do corpo visíveis, culpá-lo por todos os problemas, controlar o seu dinheiro e gastos, enfim usar abusivamente os seus bens.
As vinculações dos casais gay são muito mais fixas e permanentes do que as dos casais de lésbicas, que, pelo menos em Portugal, dissolvem mais rapidamente a relação quando surgem dificuldades, além de serem menos duradouras. Os casais gay resistem ao tempo, com durações observadas de muito mais de 16 anos, e à violência doméstica. Os abusadores justificam-se perante as vítimas, dizendo-lhes «ando com outros mas não te troco por ninguém». Além de revelar mais um aspecto da dissociação entre afectividade e sexualidade, este dado sugere que os abusadores temem perder os seus companheiros.
Numa sociedade homofóbica, as vítimas do mesmo sexo ficam sozinhas, entregues a si mesmas e às agressões do parceiro, social, legal e policialmente isoladas, como os judeus de Arendt. De facto, «a psique humana pode ser destruída mesmo sem a destruição física do homem» e, em muitos casos o terror heterosexista português leva as suas vítimas à morte sem designar tal acto como suicídio. Esta ausência de homofilia (Weinberg, 1977) é um problema preocupante da sociedade portuguesa, que mata jurídica, moral e individualmente os homossexuais. Nenhuma instituição apoia as vítimas do mesmo sexo. Apenas a Internet possibilita o seu desabafo e, se não fosse ela, teríamos negligenciado um dos problemas preocupantes da vida quotidiana dos casais homossexuais.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Homens e Mulheres perante as Leis

Os homens têm controlado as leis ao longo dos tempos e as leis podem ser usadas para regular o sexo. Se o propósito do controle masculino fosse sufocar a sexualidade feminina, os homens poderiam ter usado o sistema legal para regular e punir a sexualidade feminina. A questão que se coloca é, portanto, a seguinte: Os homens usaram e usam o seu poder jurídico-político para restringir ou suprimir a sexualidade feminina? A resposta a esta questão é muito mais relevante para a teoria do controle masculino do que para a teoria do controle feminino da sexualidade das mulheres. Muitas leis parecem apontar na direcção do controle masculino e as teorias feministas tendem a apresentar as mulheres como vítimas do domínio dos homens, esquecendo que o sistema prisional é muito mais duro e pesado para os homens do que para as mulheres.
1. As leis relativas à sexualidade adolescente parecem proteger mais as adolescentes femininas do que os adolescentes masculinos. A promiscuidade sexual tem sido usada pela polícia e pelos tribunais como um sinal de delinquência sexual e este comportamento é mais atribuído às raparigas adolescentes do que aos rapazes adolescentes. Porém, estes esforços para controlar a sexualidade feminina adolescente têm sido realizados por instituições que visam prevenir a gravidez e a promiscuidade entre as mulheres adolescentes. As agências governamentais dirigidas para o controle da sexualidade feminina tendem a ser lideradas ou apoiadas por mulheres e, em Portugal, as ordens religiosas femininas cumprem essa missão.
2. As leis relativas ao adultério parecem confirmar completamente o modelo do controle masculino da sexualidade feminina. Com efeito, ao longo da história do Ocidente, a infidelidade feminina tem sido mais severamente punida do que a infidelidade masculina. Neste aspecto, não podemos negar o controle masculino: a figura do "homem enganado" pela mulher é alvo de escárnio e de desprezo. Nos léxicos eróticos heterossexuais, o campo lexical do adultério ocupa uma posição de relevo, não tanto pela sua frequência, mas sobretudo pelos estereótipos sociais associados às infidelidades: 3,59% e 15% respectivamente num léxico português e num léxico brasileiro.
3. As leis relativas ao controle do nascimento e ao aborto podem ser interpretadas como contributos masculinos para a supressão da sexualidade feminina. O controle de nascimentos e o aborto permitem às mulheres envolver-se facilmente em actividades sexuais, sem correr o risco de alternar períodos de gravidez e períodos de disponibilidade sexual. Para assegurar as gravidezes, as leis são feitas de modo a ter efeitos indirectos sobre o comportamento sexual feminino e estes efeitos tendem a restringir a sexualidade feminina.
4. As leis sexuais, isto é, aquelas leis que punem os chamados crimes sexuais, concentram a sua atenção mais sobre os homens do que sobre as mulheres. Deixando de lado as leis homofóbicas e a violência conjugal, três categorias de leis sexuais merecem especial atenção, porque mostram claramente que o sistema legal procura regular a sexualidade masculina: a coerção sexual (violação), a prostituição e o vício comercializado, e as ofensas sexuais.
4.1. Coerção Sexual. A violação sexual é praticada predominantemente pelos homens (99%) e, por isso, os homens são mais frequentemente punidos e presos do que as mulheres. As leis procuram controlar o comportamento coercitivo dos homens. Porém, alguns estudos mostraram que 22% das mulheres e 16% dos homens disseram ter estado envolvidos em sexo contra a sua vontade. Estes dados não alteram o padrão anterior: os homens são presos por terem praticado violação com recurso à força.
4.2. Prostituição e Vício Comercializado. A prostituição é fundamentalmente uma actividade feminina e, por isso, são predominantemente as mulheres que constituem os alvos das leis. Porém, a prostituição é mais combatida pelas mulheres do que pelos homens. Os homens são geralmente apoiantes activos da prostituição, cuja supressão está mais presente na agenda feminina do que na agenda masculina.
4.3. Ofensas Sexuais. Os homens (92%) envolvem-se muito mais em comportamentos sexuais ofensivos do que as mulheres (8%). Por isso, as leis sexuais são mais dirigidas para os comportamentos masculinos do que para os comportamentos femininos. Convém levar em conta que esta categoria é a que está mais sujeita às construções sociais dos actos sexuais inaceitáveis: a base sexista destas construções revela que a sexualidade masculina está sob forte vigilância legal.
A evidência empírica disponível parece contrariar seriamente a ideia de que os homens têm usado agressivamente o sistema legal como meio para suprimir a sexualidade feminina, embora o tenham historicamente controlado. É certo que algumas leis pontuais e específicas foram e são usadas para regular a sexualidade feminina, mas a maior parte das leis relativas ao sexo sugerem uma "clara indiferença" em relação ao comportamento sexual das mulheres: as leis são mais usadas para controlar a sexualidade masculina do que a sexualidade feminina. O conceito de que os homens usam o seu poder político-jurídico para fazer leis que restringem as mulheres, deixando os homens livres, é refutado pelos dados relativos às "prisões sexuais". Isto significa que os homens fazem leis sexuais para regular o comportamento dos outros homens e este mecanismo intramasculino pode ser integrado na teoria do controle feminino: ambos os géneros controlam o sexo através da regulação do comportamento sexual dos membros do seu próprio género. As mulheres utilizam a reputação, a bisbilhotice e outros controles para regular o comportamento de outras mulheres, e os homens recorrem às leis e a outras forças para restringir o comportamento de outros homens.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 15 de julho de 2008

Prós e Contras: A Sociedade da Nação

«Nunca escreverei uma frase convencido de que ela terá qualquer ressonância cá dentro ou no estrangeiro. Escrever em Portugal não é compartilhar dum pensamento universal, ser membro dum exército de trabalhadores de espírito. É, antes, fazer uma íntima e tragicamente inútil renda de bilros, nem sequer apreciada pelo vizinho do lado. Ser escritor em Portugal é como estar dentro dum túmulo a garatujar na tampa». (Miguel Torga, Diários, volume V)
O programa "Prós e Contras" (14 de Julho de 2008), subordinado ao tema genérico "A Sociedade da Nação", tratou da crise, das reformas, da governação e da sociedade, tendo como questão orientadora: O que somos e quem somos como nação? A vida do país foi debatida por um largo conjunto de "personalidades da sociedade portuguesa", que, com excepção dos "pensadores" da plateia, eram bastonários, com excepção do presidente da Ordem dos Arquitectos, de determinadas Ordens profissionais, em especial da Ordem dos Advogados, da Ordem dos Engenheiros, da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Arquitectos e da Ordem dos Enfermeiros.
Antes de tudo gostaria de propor um título alternativo para este último "Prós e Contras" da temporada: "A Filosofia de Portugal" seria talvez um título mais indicado para este debate, uma vez que quase todos os participantes reconheceram a necessidade de valorizar a actividade do pensamento e, portanto, da filosofia, a única matriz teórica capaz de ajudar a desenvolver a qualidade cognitiva e crítica das pessoas, levando-as a pensar, a formular problemas e a tentar encontrar novas soluções e alternativas históricas, anulando alguns dos maiores defeitos dos portugueses: a emotividade histérica, a maldade perversa, a recusa de cooperação em projectos comuns, a inveja visceral e doentia, a rejeição da liderança e da obediência, a improvisação, o voluntarismo excessivo, a ausência de empenhamento em causas comuns, o abuso de uma crítica não-fundamentada e subjectiva, a ausência de conhecimentos bem assimilados, a falta de educação, a alienação do bem comum, a incapacidade nuclear de concentração, a atracção irracional pela vida fácil e tropicalizada, a baixa auto-estima merecida, a irresponsabilidade, a escassez de racionalidade, a superficialidade, o alheamento do mundo, enfim, tudo aquilo que permite ser criativo e procurar cooperativamente novas alternativas de mudança qualitativa.
Os bastonários da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, e da Ordem dos Engenheiros, foram peremptórios a este respeito e foram quase os únicos capazes de formular um diagnóstico plausível da actual situação de Portugal. Com excepção de um governo de Mário Soares e do seu Ministro das Finanças, Hernâni Lopes, que avançaram com políticas corajosas para tirar Portugal de uma grave crise, os outros governos, sobretudos os governos do PSD liderados por Cavaco Silva, Durão Barroso e Santana Lopes, são os verdadeiros responsáveis pela actual crise, agravada por acontecimentos externos que não podemos controlar. Como Primeiro-Ministro, Cavaco Silva fez, como mostrou Marinho Pinho, as apostas erradas: uma política altamente centralizada e centralista, levando em conta apenas o desenvolvimento de Lisboa e abandonando o resto do país ao empobrecimento acelerado, o reforço do sector bancário, como se este fosse suficiente para promover o desenvolvimento económico, a criação dos canais privados de TV que ajudaram a destruir a qualidade do jornalismo e das "notícias", a criação de um excesso de universidades regionais públicas e privadas dotadas de cursos desnecessários, o reforço da "iniciativa privada" dependente do Estado e dos fundos da UE, a degradação da educação e do ensino, o desprezo irracional pela cultura ou mesmo a criação desse "monstro", o défice orçamental, como tem dito Cadilhe.
Em suma, abusaram dos dinheiros comunitários e da política do betão, ignorando que a educação e a justiça são factores fundamentais de desenvolvimento económico e de bem-estar social. A implementação destas políticas economicistas ajudaram a consolidar tudo o que há de mau e perverso na natureza dos portugueses, tornando a autonomia uma ilusão cada vez mais distante do horizonte da portugalidade reduzida ao consumismo irracional, saloio e metabolicamente reduzido. Como diz frequentemente Ângelo Correia, Cavaco Silva secou tudo: a política, a cultura, a educação, a democracia autêntica, a verdadeira iniciativa privada, a comunicação social rigorosa, o pensamento criativo, a educação, a justiça e até mesmo a economia viva, ao mesmo tempo que «fomentou» inadvertidamente a degradação moral de Portugal.
O 25 de Abril foi traído no seu espírito democrático. A gestão meramente economicista do país revelou, com o decorrer do tempo, o seu verdadeiro rosto: uma "metodologia" usada por meia dúzia de homens destituídos de cultura para o enriquecimento privado. O bem comum foi suplantado pela perseguição de objectivos privados, isto é, a corrupção instalou-se em Portugal e nos seus poderes de Estado, assaltando as universidades, os meios de comunicação social, a justiça, as escolas, os tribunais, as ordens, as empresas, os hospitais, as autarquias, os clubes, enfim, os partidos políticos. A pobreza de espírito tomou conta de Portugal e é esta a verdadeira pobreza de Portugal: as suas pseudo-elites constituem um bando de gente destituída de cultura e de inteligência que usa e abusa do poder para alcançar privilégios pessoais. Em Portugal, todo o poder é um abuso. Os mutilados mentais e cognitivos submetem os portugueses à prática da mutilação mental: ninguém pode assombrar e ofuscar as ilusões mutiladoras de pseudograndeza das personalidades bombásticas nacionais, isto é, dos "mamões" exclusivos das lusotetas. Com esta pobreza de espírito, reduzida à oralidade, a pobreza real agrava-se e, como mostrou o bastonário da Ordem dos Engenheiros, a democracia não reduziu a pobreza e a miséria.
Falou-se muito das desigualdades sociais e das percentagens de pobres em Portugal, mas não foi dito que a verdadeira pobreza, a pobreza cognitiva e mental, está instalada nos centros de decisão nacional. Por isso, tenho dito que a sociedade pós-25 de Abril regrediu. Com isto não pretendo negar as melhorias substanciais que ocorreram graças à "revolução dos cravos". O bastonário da Ordem dos Engenheiros apontou muitas dessas melhorias, mas coube a Marinho Pinto acentuar o seu aspecto negativo: a corrupção das instituições públicas. Isto significa que estas instituições são usadas, não para promover o bem público, mas para conquistar e garantir privilégios pessoais. A democracia foi transfigurada e, em seu lugar, instalou-se uma cleptocracia simulada que os portugueses identificam com Lisboa.
A linguagem da economia pessoal silencia as vozes da mudança e manipula a opinião pública de modo a apresentar todos os pesadelos nacionais como fatalidades: as instituições públicas são antros de mediocridade e de assassinato do mérito. Falar de mérito nesta atmosfera de oportunismo soa a hipocrisia. Afinal, os que monopolizam a palavra pública são privilegiados e, portanto, são responsáveis pela regressão cultural e pelo obscurantismo nacional. Portugal assassina os seus cidadãos inteligentes e dotados de mérito. Portugal é como o Império Asteca e Lisboa, como Tenochtitlán: uma capital que submete o país ao roubo e que sacrifica nos seus altares os cidadãos competentes. Numa terra perversa e maldita como a terra lusa, a filosofia não pode germinar: os chamados filósofos portugueses são tão medíocres quanto os restantes profissionais corporativistas.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 13 de julho de 2008

Mutilações Genitais e Cultura Feminina

Dedico este post ao primeiro aniversário de "Rabiscos e Garatujas" da Denise, com votos de vida longa e feliz.
As intervenções cirúrgicas, tais como a subincisão ou a infibulação, são procedimentos praticados frequentemente nas nações islâmicas de África e do Médio Oriente que restringem e reduzem directamente a capacidade das mulheres para experienciar gratificação sexual nas relações sexuais. A infibulação é uma cirurgia genital destinada a impedir as relações sexuais. No homem, consiste numa perfuração do prepúcio, na qual se introduz um anel ou fivela com o objectivo de o fechar, como sucedia entre os antigos romanos, e na mulher esse resultado é obtido pela excisão ou mutilação do clitóris, seguida pela ressecção e costura das paredes labiais da vulva, de modo a reduzir aproximadamente a metade o diâmetro do orifício vaginal. Esta última prática é realizada geralmente antes da puberdade e é seguida pela abertura da vulva no momento do casamento, como sucede com as "mulheres cosidas" dos Somalis. A excisão consiste na ablação de certos órgãos genitais femininos externos: a labiotomia consiste na ablação mais ou menos extensa das paredes labiais da vulva, e a clitoridectomia, na ablação do clitóris. Outra prática de mutilação genital frequente em certas tribos australianas é a discissão da uretra: a perfuração ritual da uretra na base do pénis, cuja efeito é impedir a fecundação por meio do desvio do esperma, obrigando os homens a urinar como as mulheres, pela força da gravidade. Todas estas cirurgias visam suprimir certas partes dos órgãos genitais externos e, por isso, constituem mutilações genitais.
A circuncisão é uma cirurgia que consiste na ablação do prepúcio, enquanto a excisão ou subincisão implica uma mutilação do clitóris. Em ambos os casos, trata-se de um rito de iniciação (Van Gennep, Mircea Eliade), cujo objectivo essencial é a confirmação do indivíduo no seu sexo, não só biológico, mas também e sobretudo cultural, como estatuto social definido. A sua finalidade simbólica é, como mostrou Bruno Bettelheim, a supressão de toda a ambivalência (o "fantasma hermafrodita" ou a "constituição bissexual") pela eliminação do símbolo feminino no homem (prepúcio) e do símbolo masculino na mulher (clitóris): a circuncisão e a excisão são "cicatrizes" ou "feridas simbólicas" do género secretamente desejado e não meramente imposto pelos adultos às crianças. Trata-se assim de uma operação simbólica pela qual a natureza biológica é "confirmada" e submetida à ordem da cultura que é, no fundo, a lei dos adultos.
Bruno Bettelheim encarou estes ritos e as suas práticas cirúrgicas como esforços positivos realizados pelas crianças e pela sociedade para conciliar as grandes antíteses entre a criança e o adulto, entre o homem e a mulher, enfim, entre os desejos infantis e o papel prescrito a cada sexo pela biologia e pelos costumes da sociedade. A inveja que cada ser humano tem do outro sexo leva-o a desejar adquirir órgãos semelhantes e também a ter em seu poder e sob o seu controle o aparelho genital do outro e as suas capacidades. Em vez de criar a angústia da castração, os ritos de iniciação tendem a dominá-la, através do controle dos conflitos provenientes dos desejos pulsionais polivalentes e também do conflito entre esses desejos e o papel que a sociedade atribui aos seus indivíduos. O cumprimento do desejo secreto que cada sexo manifesta pelas características do sexo oposto, derivado da diferença sexual, implica a manipulação dos nossos próprios órgãos genitais. Ao contrário de G. Róheim, Bettelheim abandona o modelo androcêntrico, o de Freud, segundo o qual a "inveja pelo pénis" manifestada pelas raparigas as leva a admitir que é desejável "ser homem", a favor de um modelo ginocêntrico: os homens invejam as mulheres, sobretudo os seus poderes de fertilidade, e desejariam "ter nascido mulheres". Se a vagina kleiniana era a cavidade que recebia o seio e, ao mesmo tempo, a cavidade habitada pelo pénis do pai, herdeiro do seio, o intenso desejo de castração dos homens anseia por uma vagina que exclui, na perspectiva implícita de Bettelheim, o falo do pai e subordina a concepção à fertilidade como condição fundamental da feminilidade. Contudo, num segundo momento, as mutilações genitais acabam por levar à decepção: os indivíduos são confirmados nos seus respectivos papéis sexuais e desse desejo secreto restam apenas as feridas simbólicas.
As organizações feministas têm protestado recentemente contra as práticas cirúrgicas da excisão (mas não da circuncisão) que fazem parte integrante, na maior parte das culturas arcaicas e civilizadas, dos ritos de iniciação que começam no berço e terminam no túmulo, sem levar em conta que os ritos de passagem são fundamentalmente renascimentos simbólicos que dão acesso a um "estatuto social superior". Germaine Greer, uma feminista, além de denunciar o etnocentrismo subjacente a estes protestos europeus, rejeita a ideia feminista predominante de que a infibulação e a subincisão são apoiadas e produzidas pelos homens. Deste modo, ajuda-nos a recolocar a questão das mutilações genitais à luz da teoria da troca social e a testar os seus dois modelos: o do controle masculino e o do controle feminino.
Quem apoia e realiza estas práticas de cirurgia genital feminina? Diversos estudos empíricos revelaram que são as mães ou as avós que decidem quando, onde e qual a rapariga que irá ser submetida à operação. O grupo das mulheres encara esta cirurgia como uma "marca de status positivo" e as raparigas que ainda não foram sujeitas a tais procedimentos cirúrgicos são escarnecidas, atormentadas e depreciadas pelas suas próprias amigas. A cirurgia genital é quase sempre realizada por uma mulher, geralmente uma parteira, e os homens são completamente excluídos. As mulheres justificam estas cirurgias genitais, alegando que promovem a saúde e que preparam as mulheres para o casamento, como se os homens preferissem casar com mulheres sexualmente mutiladas.
Contudo, diversos estudos mostraram que os homens sudaneses casados com diversas mulheres preferem as mulheres não submetidas à cirurgia genital, portanto, mulheres intactas ou, pelo menos, pouco mutiladas. O facto de preferirem as mulheres europeias mostra que os homens preferem mulheres que possam gozar, apreciar e desfrutar o prazer sexual. Isto significa que a subincisão e a infibulação não parecem favorecer o prazer sexual masculino e, embora possam ser vistas como uma maneira de assegurar a fidelidade das mulheres através da danificação da sua capacidade para desfrutar sexo extraconjugal, a preferência dos homens por mulheres sexualmente intactas não abona a favor da teoria do controle masculino abraçada pelas organizações feministas, a qual tem maior capacidade explanatória em relação às mutilações genitais masculinas. Embora sejam geralmente contrários à mutilação genital extensa e profunda das filhas, os pais tendem a não exprimir nenhuma opinião, deixando o assunto entregue às mães e às mulheres. Os procedimentos cirúrgicos são basicamente decididos e apoiados pelas mães e pelas avós e estão muito enraizados e controlados na e pela cultura feminina. A evidência empírica disponível indica que as mulheres controlam e conservam estas práticas cirúrgicas, o que abona a favor da teoria do controle feminino e contradiz a teoria do controle masculino.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 12 de julho de 2008

Supressão da Sexualidade Feminina e Prostituição

Montaigne insurgiu-se contra a violência praticada contra a castidade das mulheres e, dirigindo-se a «um sábio autor» parisiense da sua época (século XVI), escreveu: «Aborrece-me que ele não tenha sabido, para acrescentar às suas histórias, da anedota que me contaram em Toulouse, de uma mulher que passara pelas mãos de alguns soldados: "Deus seja louvado, dizia ela, que, pelo menos uma vez na vida, eu me fartei sem pecado!"».
As teorias feministas elaboraram o conceito de "patriarcado" para definir a sociedade feita por homens e para os homens. Numa sociedade patriarcal, as prioridades dos homens são procurar controlar as mulheres e usá-las para satisfazer os propósitos masculinos. Isto significa que as instituições sociais reflectem a "vitimização" e opressão das mulheres por parte dos homens. A análise feminista compreende a perspectiva da mulher violada pelos soldados da Reforma, alegando em sua defesa o suposto facto de que, naquele tempo, as mulheres eram muito oprimidas em termos de expressão sócio-sexual e que eram obrigadas a manter-se castas até ao casamento: "fornicar" antes era "pecado", sobretudo quando um tal comportamento era desejado conscientemente por elas. Contudo, esta mulher tinha saciado os seus desejos sexuais "reprimidos" "sem pecado", dado a violação ser um acto não-consentido, portanto, forçado com recurso à força. Neste caso, os "vilãos" são os homens, esses seres que se entusiasmam com a perspectiva da violação e que gostam de controlar e dominar sexualmente as mulheres.
Recentemente, foi formulada a teoria da supressão da sexualidade feminina, segundo a qual esta supressão é um padrão de influência cultural, através do qual as raparigas e as mulheres são induzidas a evitar sentir desejo sexual e a refrear ou reduzir o seu comportamento sexual. No âmbito desta teoria destacam-se duas hipóteses: a teoria do controle masculino e a teoria do controle feminino. A primeira afirma que os homens têm sido a principal fonte de controle da sexualidade feminina, enquanto a segunda defende que as mulheres são a principal fonte da supressão da sexualidade feminina. As teorias feministas adoptam invariavelmente a hipótese do controlo masculino da sexualidade feminina.
A teoria da supressão da sexualidade feminina baseia-se na teoria da troca social, que analisa o comportamento humano em termos de custos e benefícios e encara as interacções sociais como trocas, no decurso das quais as partes oferecem umas às outras recompensas em troca de coisas desejadas. Nesta perspectiva, o sexo é visto como uma fonte que os homens desejam e que as mulheres possuem. Em troca de sexo, os homens oferecem às mulheres outros recursos desejados por elas, tais como dinheiro, compromissos, segurança, atenção ou respeito. O sexo é essencialmente um recurso feminino: os homens querem sexo das mulheres e as mulheres recebem outros bens valiosos em troca dos seus favores sexuais. Isto significa que a sexualidade masculina não pode ser trocada por outros bens. No mercado sexual, as mulheres oferecem sexo e os homens compram sexo.
Montaigne parece ter optado pela teoria do controle masculino: os homens estão interessados em suprimir a sexualidade feminina, porque temem ser traídos pelas suas mulheres ("cornudos") e cuidar de filhos que possam não ser seus ("bastardos"). Os homens suprimem a sexualidade feminina, com o objectivo de controlar as mulheres, garantir paz e ordem na sociedade e reduzir o risco de infidelidade das esposas, de modo a garantir a paternidade. Contudo, diversos estudos contemporâneos concluem que a evidência empírica favorece a teoria do controle feminino: as próprias mulheres "cooperam" e rivalizam entre si para restringir a sexualidade umas das outras, de modo a garantir que a troca de sexo por outros recursos fornecidos pelos homens possa ocorrer de um modo favorável às mulheres.
A prostituição é deveras interessante para a teoria da troca social, porque torna explícita a troca de sexo por recursos. Marx e Engels já tinham observado que a prostituição era a forma mais explícita de troca que caracteriza as relações de género em geral. Aliás, eles descreveram o casamento como «prostituição legalizada», no qual as mulheres trocam sexo pelo dinheiro dos seus maridos, embora de uma maneira mais subtil do que na prostituição propriamente dita. Ora, a prostituição como forma explícita de troca e a pornografia permitem testar empiricamente estas duas hipóteses. A prostituição e a pornografia são inegavelmente duas indústrias sexuais dominadas pelos homens, nas quais as mulheres satisfazem as necessidades dos homens. Ambas oferecem aos homens fontes alternativas de gratificação sexual, ameaçando a capacidade das mulheres de exercer controle sobre os homens e de obter recursos dos homens, mediante a regulação do acesso masculino à gratificação sexual. Dado ampliarem as oportunidades de satisfação sexual masculina, estas fontes podem reduzir o poder de regateio das mulheres e ser vistas como uma chave de competição económica barata, que poderá potencialmente dificultar o monopólio feminino de acesso ao sexo. Por isso, a teoria do controle feminino prevê que as mulheres sejam desfavoráveis em relação à prostituição e à pornografia. Diversos estudos mostraram que as mulheres, além de serem mais negativas em relação à homossexualidade do seu próprio género, se opõem consistentemente à prostituição e à pornografia, e que os movimentos sociais "puritanos" foram populares entre mulheres, embora tivessem alguns lideres masculinos (clérigos). E, por sua vez, as prostitutas foram muito críticas em relação à "revolução sexual" e ao "free sex", isto é, o sexo de baixo-custo ou custo zero, que é pouco benéfico para as mulheres, uma vez que desvaloriza o valor dos seus próprios recursos. A prostituição e a pornografia não são directamente relevantes para a teoria do controle masculino, mas são muito relevantes para a teoria do controle feminino, porque, se as mulheres fossem tolerantes nestas matérias, a teoria seria seriamente contrariada. A oposição feminina à prostituição e à pornografia é consistente com a teoria da troca social.
A prostituição masculina pode ser usada para tentar contrariar a teoria da troca social. Contudo, convém ter em conta que a maioria das prostitutas são mulheres e a vastíssima maioria dos clientes são homens. É certo que existem prostitutos masculinos, muitos dos quais toxicodependentes e jovens que recorrem à prostituição ocasional para aumentar os seus rendimentos, mas os seus clientes são quase exclusivamente homens. Isto significa que as mulheres raramente pagam aos homens para ter sexo. Um desses raros casos é o de algumas mulheres canadianas que viajam até à República Dominicana, para ter "sexual affairs" com "beach boys" nativos. No turismo sexual que flui dos países ricos para os países pobres, os homens dos países ricos viajam frequentemente para os países pobres, tais como Cuba e países asiáticos, em busca de "sexo de baixo-custo". Com excepção de uns poucos casos, a indústria da prostituição, incluindo a prostituição homossexual, reflecte o princípio fundamental da teoria da troca social: os homens oferecem recursos financeiros às mulheres em troca de sexo. E, mesmo nos casos contrários de prostituição masculina, a sexualidade masculina vale, no mercado sexual, muitíssimo menos do que a sexualidade feminina: as mulheres que frequentam gigolos são muito menos propensas a oferecer grandes quantias de dinheiro do que os homens, em troca de favores sexuais.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Fetichismo Sexual

«Todo o amante sente-se atraído, de maneira especial, por algum aspecto individual da sua amada ou por algum dos vários objectos que entram em contacto com ela. Porém, esta tendência torna-se anormal quando é exclusiva ou generalizada, e transforma-se num desvio verdadeiro quando o próprio fetiche, mesmo na ausência da pessoa, se revela perfeitamente capaz não apenas de activar a tumescência mas de provocar a detumescência, de maneira que não há absolutamente nenhum desejo pelas relações sexuais». (Havelock Ellis)
Na sua teoria do «eu genuíno» e do «eu cosmético» ou, mais precisamente, do duplo-mundo dos homens homossexuais, E. Hooker observa que «nada é mais notório no mercado do bar gay que a ênfase na aparência: vestuário, modos, aspecto físico». M. Hoffman reconduz correctamente essas observações ao fetichismo sexual que, juntamente com a promiscuidade sexual, parece predominar no mundo gay. Deixaram por apurar as relações que existem entre estes fenómenos e o culto fálico predominante na estrutura e na prática da moderna ideologia gay. Com efeito, mais importante que um «rosto bonito» é um pénis grande, sobretudo em certos lugares públicos, como por exemplo as praias periféricas. O critério gay da aparência reduz-se, em última análise, ao tamanho do pénis do seu potencial parceiro sexual. Se este não pode ser visualizado e ponderado directamente por observação, pode, pelo menos, ser avaliado através de métodos indirectos, tais como «volume», «chumaço», «papo», «mala», tacto, tamanho das mãos, comprimento e grossura dos dedos, compleição física robusta e firme e pela altura geralmente associada à robustez física. No fundo, o culto da masculinidade mais não é que o culto fálico ou, como dizem, o "culto da verga". Se estudarmos atenta e minuciosamente a evolução da literatura pornográfica gay, bem como dos filmes pornográficos homossexuais, constatamos facilmente que, a partir sensivelmente dos anos setenta e sobretudo oitenta, os actores são geralmente "bem dotados" e a sua actividade sexual torna-se bastante agressiva: a associação do fetichismo com o sadomasoquismo e o exibicionismo é particularmente evidente.
O termo fetichismo tem sido usado em, pelo menos, três sentidos: antropológico, filosófico e psiquiátrico. Antes de analisarmos o fetichismo sexual propriamente dito, iremos explicitar o fetichismo em cada um dos sentidos referidos, com a finalidade de apreender o que têm em comum e de que modo podem contribuir para a clarificação do próprio conceito de fetichismo sexual.
SENTIDO ANTROPOLÓGICO. Os traficantes de escravos, vindos de Portugal, utilizaram, pela primeira vez, o termo feiticismo, para significar "coisa enfeitiçada" ou "coisa embruxada", aplicando-o às religiões da costa de África. Desde então, na antropologia social e cultural, o termo feiticismo acabou por se tornar sinónimo de religião primitiva. Nesta perspectiva, o homem arcaico adora certos objectos e lugares naturais (pedras, árvores, colinas, cavernas) ou confeccionados com a mesma finalidade (estacas cravadas no solo, estatuetas). Esta atitude do homem arcaico exprimia o essencial da sua vida religiosa. Nalguns casos, o termo feiticismo adquiriu um sentido pejorativo, passando a designar apenas a idolatria dos povos primitivos.
Contudo, ao contrário do que se pensava inicialmente, o objecto-feitiço não é adorado em si mesmo, já que não detém espontaneamente um poder oculto ou sobrenatural. Com efeito, este poder é quase sempre introduzido no objecto-feitiço pelo sacerdote, pelo mago ou mesmo pela própria divindade. Assim, o feitiço mais não é que um receptáculo ou um suporte de forças que lhe são «exteriores». Dado que o feitiço não é uma divindade, podemos dizer que o feiticismo não resume toda a religião primitiva. Actualmente, a palavra feiticismo pode designar três coisas:
a) o respeito testemunhado aos encantamentos, aos amuletos, aos manipansos que um crente ingénuo, seja qual for a sua religião, traz consigo;
b) determinados desvios do religioso autêntico, os quais, tal como a superstição, não poupam as religiões mais evoluídas ou acabam por tomar o seu lugar quando há degenerescência, particularmente evidente nos casos em que se manifesta um deslize do símbolo para o seu suporte material;
c) enfim, a partir do facto de feitiço derivar de facticiu, que significa criado de fio a pavio e, por extensão, fabricado e manipulado, a manipulação do sagrado. Neste sentido, toda a religião é mais ou menos feiticista, na medida em que o sacerdote se define, no sacrifício, como um manipulador de forças sobrenaturais que opera segundo os cânones litúrgicos.
Convém não confundir feiticismo e feitiçaria. O termo feitiçaria só pode ser compreendido nas suas relações com os termos religião e magia, da qual o xamanismo é um caso particular. Se, na peugada de Mircea Eliade, definirmos a religião como «a cosmificação feita de maneira sagrada» (Peter Berger), constatamos facilmente que a função primordial do cosmos sagrado, que transcende e inclui o homem na sua ordenação da realidade, é fornecer «o supremo escudo do homem contra o terror da anomia» (Peter Berger). Daqui resulta o carácter eminentemente social da religião. Ao lado da dimensão social da religião, encontram-se as manifestações arreligiosas da magia (associal) e anti-religiosas da feitiçaria (anti-social). De certo modo, a magia é uma forma religiosa, na medida em que o mago, tal como o sacerdote, se esforça por captar as forças visíveis ou invisíveis, a fim de as integrar na rede das acções humanas. No entanto, trata-se de uma manifestação religiosa associal. Com efeito, as forças invocadas ou postas em jogo pelo mago quedam-se amiúde mal definidas, quando não são ocultas. Assim, a magia mais não é que uma técnica que o homem elabora para se apropriar do sagrado e manipulá-lo no sentido que lhe interessa.
Ao contrário do sacerdote ou mesmo do mago, o feiticeiro situa-se manifestamente fora da sociedade e frequentemente a sua acção visa a desintegração do grupo. Deste modo, o ser ou o indivíduo reputado feiticeiro — seja ele homem dotado de poderes extraordinários ou uma entidade particular revestindo forma humana — coloca-se sistematicamente à margem do grupo e, em vez de contribuir com a sua acção para a coesão social, contribui para a sua desintegração. Assim, a desordem do mago consiste somente em tirar partido — para ele e para a sua clientela — das forças que capta, enquanto a desordem do feiticeiro destrói o próprio equilíbrio destas forças, uma vez que a relação que mantém com o pseudo-sagrado é essencialmente geradora de anomia, isto é, dispensadora de força impura. Como escreve Ortigues: «A magia pressupõe geralmente um intermediário material, um instrumento, expedientes, enquanto a feitiçaria não utiliza intermediário algum, a não ser, por vezes, o alimento; ela é um poder interior, psíquico, veiculado por uma substância intra-orgânica que não raro se julga poder descobrir no ventre fazendo a autópsia do feiticeiro falecido. É teoricamente possível surpreender um mago a operar, ao passo que só um vidente ou um oráculo é capaz de referenciar formalmente a feitiçaria. Enfim, a feitiçaria é sempre má, ela não tem senão um fito: a morte; ao invés, a magia, a do curandeiro, do caçador de feiticeiros, pode ser um meio de lutar contra os feiticeiros; alguém que deseje proteger-se destes pode munir-se de um “bom medicamento” (a good medicine), de um talismã». Podemos, pois, definir a feitiçaria como uma forma de agressividade que opera, à distância e sem intermediários, malefícios frequentemente terríveis, para fins inconfessáveis (vingança, pacto com os diabos). É, por isso, que o feiticeiro é uma figura muito perigosa e que a sociedade empreende o que está ao seu alcance a fim de neutralizar os seus malefícios. A função de coesão social da religião não chega a realizar a comunhão social e, além de não dominar a pluralidade, ela própria suscita muitas vezes conflitos.
SENTIDO FILOSÓFICO. Na obra O Capital, Karl Marx fala de feiticismo da mercadoria. Como vimos, no seu sentido antropológico, a palavra feitiço designa um objecto artificial ou natural provido de encanto e mistério e, por vezes, de poderes sobrenaturais e mágicos. O conceito marxista de feitiço retoma o seu sentido religioso, associando o feiticismo com a reificação. Desta associação resulta que o feitiço surge sempre como produto de uma objectivação, de uma projecção na exterioridade ou de um processo de coisificação. Nesta perspectiva, a sociedade capitalista é uma sociedade feiticista e reificada, na medida em que nela todas as relações humanas aparecem como relações entre coisas: o humano desaparece no objecto produzido pela sua actividade. O conceito de feiticismo da mercadoria designa precisamente o facto do produto do trabalho humano tomar a forma de uma mercadoria, quando na verdade é a expressão de uma actividade humana, e a mercadoria surgir dotada de existência independente. Nesta situação de alienação total, as mercadorias trocadas determinam as relações sociais entre os homens e o valor de troca da mercadoria determina o estatuto social dos indivíduos. O dinheiro passa a ser o substituto de todas as mercadorias e, como tal, é o feitiço absoluto e universal. Embora sejam os homens que fazem a história, a sociedade capitalista explica tudo pelas leis naturais da economia e pelas relações entre as coisas. Nesta mistificação ideológica, a aparência dissimula a realidade humana e social.
A mercadoria e o capital parecem ser dotados do poder mágico de produzir valor. A circulação das mercadorias parece fazer-se através de «um verdadeiro Éden dos direitos naturais do homem e do cidadão», onde reinam a Liberdade, a Igualdade e a Propriedade, quando na verdade aquilo de que se trata é da compra e da venda da força de trabalho. O salário parece justo, na medida em que é uma quantidade de dinheiro que substitui uma quantidade de trabalho correspondente, mas na verdade trata-se de uma força de trabalho que só é paga em parte. Como escreve Marx: «Aquilo que, no mercado, corresponde directamente ao capitalista não é o trabalho, mas sim o trabalhador. O que este vende é ele próprio, a sua força de trabalho… O trabalho é a substância e a medida inerente dos valores, mas não tem ele próprio qualquer valor». Segundo Henri Lefebvre, na sociedade capitalista, «as formas da sua actividade, do seu poder criador, libertam-se dele e o homem começa a crer na sua existência independente. Desde as abstracções ideológicas e o dinheiro até ao Estado político, tais feitiços parecem vivos e reais e são-no em certo sentido, pois dominam o homem». A moeda, a mais-valia, a força social do trabalho e tantos outros feitiços são exemplos deste feiticismo mistificador que transforma as relações sociais «em qualidades das próprias coisas… e as relações de produção numa coisa, o dinheiro».
De resto, o feiticismo da mercadoria engana os próprios capitalistas, levando-os a tomar o acessório pelo essencial. Com efeito, a acumulação do capital torna-se um fim em si mesma, em detrimento da fruição dos bens de consumo. O dinheiro-feitiço subjuga todos os indivíduos com o seu encanto. Herbert Marcuse vê nesta forma de vida, fechada e sem liberdade, veiculada pelo sistema capitalista, «a reificação total do feiticismo total da mercadoria». Georg Lukács considera que a teoria marxista da economia política deve descobrir, sob a aparência das relações objectivas naturais, a realidade das relações sociais humanas. A contestação política é fundamentalmente a luta contra a reificação.
SENTIDO PSIQUIÁTRICO. Numerosos psiquiatras do século XIX, entre os quais Krafft-Ebing, tinham referenciado o feiticismo, ou melhor, o fetichismo como desvio ou perversão sexual, chamando fetichista ao indivíduo que não consegue obter satisfação sexual a não ser na presença de qualquer coisa muito particular, tal como uma parte do corpo (pés, cabelos), uma peça de vestuário (botas) ou qualquer outro objecto, que constitui o seu fetiche. Este último é sempre específico para cada fetichista.
Coube a Freud explicar o fetichismo num artigo datado de 1927. Para Freud, o feitiço é um substituto do falo da mulher, em que a criança e, mais precisamente, o rapaz primeiramente acreditou. Como diz Freud, «a nenhum ser masculino é provavelmente poupado sentir o terror da castração quando vê o órgão genital feminino». O feitiço, substituto do falo que falta à mulher, manifesta uma denegação da castração: «É o sinal de um triunfo sobre a ameaça de castração e uma protecção contra essa ameaça». É preciso, aliás, acrescentar que o fetichismo se caracteriza por um processo de clivagem entre a relação com a realidade (saber que a mulher não tem pénis) e a função do feitiço (manter a convicção de que ela tem um).
Em suma, a palavra feiticismo é usada em três acepções fundamentais: antropológica, filosófica e psiquiátrica. Na sua acepção antropológica, o feiticismo designa «uma conduta mágica na qual os objectos funcionam como seres dotados de poderes sobrenaturais» (Favrod). Com a expressão feiticismo da mercadoria, Marx designava a mistificação ideológica, segundo a qual o produto do trabalho humano toma a forma de uma mercadoria dotada de uma existência independente que domina as relações sociais humanas. A psiquiatria fala de fetichismo em conexão com um tipo específico de perversão sexual, na qual o indivíduo é sexualmente excitado por uma parte do corpo do seu parceiro ou por um objecto não humano que tenha alguma ligação com a sexualidade. As noções marxista e psiquiátrica de feiticismo relevam da problemática antropológica. De facto, as duas acepções partilham alguns aspectos comuns. Por um lado, os feitiços surgem sempre como objectos dotados de poderes mágicos que dominam a vida dos indivíduos. Por outro lado, emerge a ideia de estreitamento da esfera de acção: estreitamento de um encontro existencial rico e completo para uma área de experiência estreita e segmentada. Tal estreitamento da experiência visa capacitar o indivíduo-feiticista a obter um certo controle e um sentido de poder na interacção que estabelece com os outros. Na sociedade capitalista, os homens deixam-se levar pela pletora de objectos materiais, sacrificando assim uma existência rica, não alienada, para executar um trabalho alienado, a fim de serem capazes de adquirir as mercadorias que produzem. A felicidade deve ser atingida através da aquisição de automóveis, roupas, residências, televisores e outros objectos de consumo. Deste modo, a aquisição de bens de consumo converte-se no objectivo fundamental da vida do homem alienado. O domínio do Ter alarga-se a expensas do Ser: o indivíduo «é» aquilo que tem e não o que é em si mesmo. No fetichismo sexual, o indivíduo-feiticista, devido a determinadas perturbações psicológicas, é incapaz de se relacionar com o seu parceiro sexual como um ser humano total e completo, relacionando-se somente com uma parte do seu corpo ou com um objecto que lhe pertença.
Ora, uma das características mais estável da comunidade homossexual, tanto em Portugal como no resto do mundo, é o fetichismo sexual. Com efeito, os lugares públicos frequentados pelos homens homossexuais criam e incentivam o fetichismo sexual mais desumano. Os encontros sexuais que aí se desenrolam são muito breves, medidos em termos de minutos, e ocorrem geralmente nas circunstâncias mais degradantes. Os homossexuais que frequentam esses lugares aprendem rapidamente a não esperar mais do que uma brevíssima experiência sexual reduzida unicamente à busca do sexo pelo prazer do sexo. Hoffman tem toda a razão quando afirma que a fragmentação do sexo em relação aos demais aspectos humanos nunca poderá conduzir à felicidade pessoal ou mesmo a uma adaptação psicossocial satisfatória.
Por conseguinte, podemos afirmar que o traço mais característico da vida dos homens homossexuais típicos reside no facto de devotarem um período de tempo muito longo ao aspecto sexual. Este traço diferencia os homossexuais típicos dos demais homens. Afirmar isso não é o mesmo que dizer que os homossexuais têm um maior grau de sexualidade, medida em orgasmos, que os homens heterossexuais. De resto, Kinsey et al. demonstraram que os homossexuais têm menos orgasmos, sob o ponto de vista temporal, que os homens heterossexuais. A explicação deste facto parece ser relativamente simples. Hoffman considera-o como corolário da promiscuidade sexual que caracteriza o estilo de vida dos homossexuais típicos. Com efeito, se as relações homossexuais são breves, ocasionais e transitórias, é natural que o homossexual tenha de procurar constantemente novos parceiros sexuais, para concretizar o acto sexual. Um indivíduo que tenha um companheiro estável tem mais oportunidades de ter mais relações sexuais que um indivíduo que, sempre que se sentir compelido à actividade sexual, tenha de ir à procura, em determinados lugares públicos, de novos parceiros sexuais. Contudo, estudos recentes mostraram que os homens homossexuais são efectivamente mais promíscuos do que os homens heterossexuais e, nesse aspecto, exibem um traço hipermasculino.
Apesar de associar o fetichismo sexual dos homossexuais típicos com o seu comportamento sexualmente promíscuo, Hoffman sente-se embaraçado quando tenta explicar a relação causal existente entre a promiscuidade sexual e a constante preocupação sexual dos homossexuais típicos. Estamos diante de um paradoxo semelhante ao da galinha e do ovo. Será que a preocupação sexual resulta da promiscuidade sexual ou será que esta última deriva da constante preocupação em encontrar novos parceiros sexuais? Seja como for, a verdade é que, de um ponto de vista puramente descritivo, a promiscuidade sexual e o fetichismo sexual constituem dois traços distintos — mas interdependentes — do estilo de vida típico dos homossexuais. Hoffman refere-se a eles para distinguir a comunidade homossexual como um todo da vida dos heterossexuais. Embora haja muitos heterossexuais obcecados com o sexo-fetiche e muitos deles sejam também sexualmente promíscuos, o fetichismo sexual e a promiscuidade sexual não dominam obsessivamente a vida dos heterossexuais, como sucede com os homossexuais. Além disso, segundo Hoffman, não caracterizam o estilo de vida das lésbicas. Estas afirmações de Hoffman devem ser reavaliadas. Actualmente, verifica-se que os heterossexuais masculinos e femininos são tão promíscuos e fetichistas quanto os homossexuais masculinos e femininos. A homossexualização da vida sexual é um dado adquirido: a única diferença que poderá subsistir entre os diversos estilos de vida é mais uma diferença de grau que de qualidade. Nas sociedades modernas, a degradação sexual é um fenómeno universal.
Estas considerações sobre o fetichismo sexual levam-nos a distinguir duas grandes manifestações de fetichismo sexual na sua acepção psiquiátrica: o fetichismo sexual e o fetichismo erótico, expressão concebida por Binet em 1888. Com a expressão fetichismo erótico, frequentemente empregue por psiquiatras, sexólogos e psicólogos, designamos uma perturbação mental, na qual o indivíduo-fetichista substitui o parceiro sexual humano na sua totalidade por objectos ou partes do corpo. No fetichismo sexual propriamente dito, o indivíduo-fetichista relaciona-se com o seu parceiro sexual somente como objecto-sexual-feitiço, ou seja, somente como vagina no caso dos homens heterossexuais e das lésbicas ou somente como pénis no caso das mulheres heterossexuais e dos homossexuais masculinos. Foi Vladimir Soloviev que forjou o termo fetichismo sexual na concepção que queremos atribuir-lhe, já que disse que, se um homem se relaciona com uma mulher somente como objecto sexual, ou seja, como vagina, existe aí uma forma de fetichismo sexual que, com a excepção de Hoffman, tem sido negligenciada pela maior parte dos psiquiatras modernos. Além disso, os fetichistas sexuais apresentam uma constante compulsão sexual, girando toda a sua vida em torno da actividade sexual. O conceito de fetichismo sexual deve ser diferenciado em si mesmo, de modo a permitir a apreensão conceptual das suas diversas manifestações. Em vez de falarmos de um único tipo de fetichismo sexual, consagrado nos manuais de psiquiatria, devemos falar doravante de diversos fetichismos sexuais claramente distintos e diferenciados entre si, todos eles articulados com a economia-fetiche capitalista. Porém, Lombroso forjou, em 1897, o conceito de "antifetichismo", para designar casos de forte aversão a determinados aspectos ou objectos que poderiam ser eventuais fetiches eróticos: o antifetiche está ligado à repugnância pelos fenómenos sexuais, revelada antes ou depois da puberdade. Hirschfeld atribuiu importância a essa antipatia "sexual" e L. Binswanger preferiu usar a expressão fetiche negativo.
O fetichismo homossexual constitui o traço mais evidente do seu estilo de vida típico. Na maior parte dos lugares públicos frequentados por homossexuais, ocorrem diversas interacções sexuais, das quais o contacto sexual sem obrigação nem compromisso é, conforme acentua E. Hooker, a sua característica mais normal e estável. Chamaremos vagabundagem sexual às diversas formas de promiscuidade sexual que caracterizam as interacções homossexuais, e homossexuais vagabundos, aos seus participantes. Existem muitas formas de vagabundagem sexual e, por conseguinte, vários tipos de homossexuais vagabundos, mas, apesar dessa diversidade, todas essas formas de vagabundagem gay apresentam um traço comum: a ausência de interacções sociais, de comunicação e de envolvimento psico-afectivo nas relações breves e casuais que os homens homossexuais estabelecem entre si. O falo é o seu grande fetiche e todos os outros fetiches (apatá/sapato, armpits/axilas, barbie/homem musculado, bear/homem peludo, burly/homem gordo, carupé/peruca, cheese/dinheiro, cock ring/anel, coins/dinheiro, dildo/vibrador, fist fuck, fisting, fio terra, glory hole, gogo boy, hirsute, hood/capuz, judy/polícia, leather/couro, locked/homem musculado, locks/cabelos penteados, muscle Mary/homem musculado, muscle worship, nena/fezes, picumã/cabelo e peruca, scat/fezes, shaving/rapar os pêlos, spanking/fato de banho, suzie/homem musculado, tickling/cócegas, toys/brinquedos sexuais, urso, cut/pénis circuncisado, uncut, voyeur, watersports, etc.) reconduzem ao fetichismo fálico. O próprio sémen é digerido devido às suas supostas propriedades nutritivas e antidepressivas reais ou imaginárias: o homo sexualis é, pois, homo consumens. Daí que os homens homossexuais tenham de si mesmos uma autodefinição reificada: "Ser gay é gostar do mesmo instrumento". A partir deste imaginário coisificado, torna-se possível mostrar como o fetichismo imposto pela economia-fetiche capitalista tomou conta de todas as outras actividades e práticas sexuais: o homem metabolicamente reduzido é uma mera "coisa", um fetiche. O homem antidialéctico foi, como viu Binswanger, "aspirado pelo mundo" das mercadorias e dos bens de consumo, e a racionalidade económica capitalista tornou-se absolutamente mórbida.
J Francisco Saraiva de Sousa