domingo, 24 de agosto de 2008

Mircea Eliade: A Casa como Imago Mundi

«Entre os indígenas, nunca o lugar sagrado se apresenta isoladamente ao espírito. Ele faz parte de um complexo em que entram também as espécies vegetais ou animais que aí abundam em certas estações, os heróis míticos que aí viveram, vaguearam, criaram e frequentemente foram incorporados no solo, as cerimónias que aí se celebraram periodicamente e, enfim, as emoções suscitadas por este conjunto». (Lucien Lévy-Bruhl)
A filosofia do habitar confronta-se com diversos inimigos, dos quais destacaremos: o inimigo histórico, o inimigo político e o inimigo sociológico.
Inimigo Histórico. Todas as teorias da modernização afirmam que a modernidade conduziu invariavelmente à secularização: as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social.
Mircea Eliade encara a dessacralização da morada humana como parte integrante dessa gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos, efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera "máquina de habitar" inserida e alinhada entre as inúmeras máquinas fabricadas em série nas sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessário para a recuperação da força-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma bicicleta, um frigorífico ou um carro". A funcionalização da casa e do habitar operada por uma economia de mercado que visa a colonização de toda a sociedade, da natureza e da própria cultura, acabou por conduzir à perda do mundo ou, como diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma Eliade: Para os homens sem religião, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. Até mesmo os cristãos urbanos abandonaram a liturgia cósmica e, por isso, a sua experiência religiosa já não é "aberta" ao Cosmos e o Mundo já não é sentido como obra de Deus: a sua experiência religiosa empobrecida é estritamente privada e visa unicamente a sua própria salvação. Historicamente, o inimigo do habitar autêntico é o próprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por isso, a filosofia do habitar é necessariamente uma crítica da irracionalidade do capitalismo, que assume corajosamente o antropocentrismo para melhor "resguardar a quadratura" (Heidegger).
Inimigo Político. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais aparentemente estáveis, o homem secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurança. Aqueles que defendem a importância crucial da casa na vida humana são vistos como indivíduos suspeitos, burgueses ou conservadores. Os românticos reprovavam aqueles indivíduos que se encastelavam na sua casa, levando aí uma vida inactiva e cómoda. Para Schiller, o homem deve sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas quotidianas e cívicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo, segundo Schiller, após cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os aspectos polarizados da vida humana são necessários, porque a saúde interior do homem repousa no equilíbrio entre o trabalho e a luta no espaço externo que é o mundo e a tranquilidade no espaço interno da casa.
Por isso, em vez de encarar a política do sentido como uma estratégia conservadora, o pensamento de esquerda deve aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (família), a pátria e os seus valores intrínsecos: a tarefa inalienável do homem é criar este espaço de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a contra qualquer tentativa de invasão alheia, nomeadamente da intervenção do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada e íntima dos cidadãos.
Inimigo Sociológico. Este inimigo é relativamente recente, está associado à pós-modernidade e parece ser mais um fantasma sociológico do que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas pós-modernas, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposição à figura moderna do peregrino, como se estivéssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa atitude passiva de infinita mobilidade e de consumismo voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocêntrico é pensamento anónimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia do status quo, bloqueando a mudança social qualitativa. A filosofia do habitar é clara e frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociológico, mesmo daquele que se afirma herdeiro de Marx.
HOMO RELIGIOSUS. A consciência mítica foi alvo da atenção de Rudolf Otto, Ernst Cassirer, James G. Frazer, Van der Leeuw, Lucien Lévy-Bruhl, Roger Callois e Mircea Eliade. O homem primitivo ou mesmo o homem pré-moderno é um homo religiosus, e a religião é, segundo a definição feliz de Peter Berger, "o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado", ou seja, "a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada". Como expoente máximo da auto-exteriorização do homem, a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro, a totalidade do ser, como humanamente significativo. O homem religioso é "sedento do ser" e o ser é, para ele, o próprio sagrado, tudo aquilo que se manifesta e se nos mostra por oposição ao profano. Quando tentou descrever "o algo inteiramente outro" (ganz andere) e totalmente diferente do mundo da vida diário e da natureza, Rudolf Otto acentuou que o numinoso impressiona o homem como um poder (majestas) esmagador e terrível (mysterium tremendum) e estranhamente fascinante (mysterium fascinans), diante do qual o homem tem o sentimento da sua profunda nulidade. Apesar desta ambivalência do sagrado, o homem primitivo só sabe viver no sagrado e, portanto, num Cosmos que o protege do Caos, num Nomos que o salvaguarda da Anomia. Por isso, a função principal do mito é revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades humanas significativas: "o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos «começos»", ou seja, "o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, o Cosmos, quer seja apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição". O homem primitivo é obrigado a recordar a história mítica da sua tribo, a iniciar-se nos seus mistérios e a reactualizar periodicamente grande parte daquilo que se passou ab origine, de modo a manter a ordem consagrada pelos Deuses no fabuloso tempo dos "começos", quando o Cosmos emergiu do Caos que continua a enfrentar como o seu terrível arqui-adversário. Refundar ritualmente o Cosmos é reerguer constantemente o escudo protector que defende o homem e o "nosso mundo" do terror da anomia e do Caos.
Neste universo religioso, Mircea Eliade soube destacar, no seu estado puro, o comportamento religioso em relação à habitação, e esclarecer a concepção do mundo que ele implica. A experiência religiosa pressupõe uma bipartição do mundo no sagrado e no profano, mas este dualismo ontológico não é um dualismo embriológico, porque o profano pode ser transfigurado e transmutado no sagrado pela dialéctica da hierofania e o sagrado transformado no profano pelos inúmeros processos de dessacralização. Toda a vida do homem arcaico é uma repetição ininterrupta de gestos inaugurados por outros que não eram homens. Isto significa que tudo o que ele faz, incluindo a construção de edifícios, já foi feito pelos deuses, antepassados e heróis míticos in illo tempore, aquando da criação do mundo.
Ora, esta repetição ritual ou reactualização de gestos paradigmáticos feitos ab origine revela uma "ontologia original" e, neste sentido, a concepção do mundo subjacente ao comportamento religioso em relação à habitação pode ser vista como uma ontologia (religiosa) do habitar. A noção de História, com o devir e a irreversibilidade do tempo, é absolutamente alheia a esta ontologia do habitar. Como escreve Mircea Eliade: "«Situar-se» num lugar, organizá-lo, habitá-lo, são acções que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Cosmos que se está pronto a assumir «criando-o»". Mas, de acordo com a ontologia arcaica, este Cosmos é sempre a repetição e reactualização ritual do Cosmos exemplar criado e habitado pelos Deuses in illo tempore. O Cosmos fabricado pelos homens participa da santidade da obra primordial dos Deuses. O "nosso mundo" é construído mediante uma repetição ritual da Cosmogonia.
1. O Espaço Sagrado. Para o homem religioso, o espaço é heterogéneo e, por isso, apresenta roturas e fissuras que possibilitam experienciar partes e sectores de espaço qualitativamente diferentes. Esta heterogeneidade espacial permite a experiência de um espaço sagrado, "forte e significativo", distinta da experiência de outros espaços não-sagrados, absolutamente amorfos, e constitui uma experiência primordial, homologável à fundação do mundo. A rotura operada no espaço pela manifestação de qualquer hierofania permite a constituição do mundo, no sentido de descobrir o ponto fixo, o eixo central de toda a orientação futura. A manifestação da hierofania rompe a homogeneidade do espaço, ao mesmo tempo que revela uma realidade absoluta: "A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo". Para o homem religioso, nada pode começar sem esta orientação prévia que implica a aquisição de um ponto fixo, o Centro do Cosmos, no qual procura estabelecer-se. Isto significa que, "para viver no mundo, é preciso fundá-lo": a descoberta e a projecção do Centro equivale à criação do mundo.
Em contrapartida, para o homem profano, como o homem das sociedades modernas, o espaço é homogéneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as diversas partes e sectores do espaço. Apesar de ser um espaço homogéneo e carente de estrutura e, portanto, de diferenciação qualitativa, o espaço geométrico não deve ser confundido com a experiência do espaço profano que se opõe à experiência do espaço sagrado. A manifestação da hierofania revela um espaço sagrado, ao mesmo tempo que permite obter um ponto fixo e, portanto, a orientação futura na homogeneidade espacial caótica: o fundar o mundo e viver realmente no mundo. Ora, a experiência do espaço profano conserva a homogeneidade e a relatividade do espaço. Sem a obtenção de um ponto fixo, não é possível adquirir uma verdadeira orientação: o Cosmos estilhaça-se em "fragmentos de um Cosmos fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de "lugares" mais ou menos neutros onde o homem (profano) se move, forçado pelas obrigações de toda a existência integrada de uma sociedade industrial".
2. A Casa. Toda a construção ou edificação humana tem como modelo exemplar a Cosmogonia. A instalação num território desconhecido e a construção de uma morada exigem uma decisão vital: assumir a criação do mundo que se «deliberou» habitar, imitando a obra dos Deuses. Para o homem religioso, "a casa é sempre santificada", porque constitui uma imago mundi e o mundo é uma criação divina. A homologação da morada ao Cosmos é feita ritualmente através de dois processos: 1) pela projecção dos quatro horizontes a partir de um ponto central, no caso de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis Mundi, no caso de uma habitação familiar; e 2) pela repetição, através de um ritual de construção, do acto exemplar dos Deuses. O primeiro processo "cosmifica" um espaço pela projecção dos horizontes ou pela instalação do Axis Mundi. Toda a habitação humana comporta um "aspecto sagrado pelo facto de reflectir o mundo" e, na sua estrutura, revela-se um simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi e, como tal, situa-se simbolicamente no "Centro do Mundo".
Assim, por exemplo, como mostrou Eliade, a morada das populações primitivas árcticas apresenta um poste central que é assimilado ao Axis Mundi, isto é, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo que ligam a Terra ao Céu. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: "a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos Pilares do Mundo e são designados por este nome". Na base deste poste central, têm lugar os sacrifícios em honra do Ser Supremo celeste. Toda a morada humana repete a cosmogonia, situa-se perto do Axis Mundi e, por tudo isso, representa e reflecte o Cosmos: o seu habitante vive implantado na realidade absoluta.
A construção de uma casa é sempre a fundação de um cosmos num caos e, por isso, a casa é uma imagem do mundo na sua totalidade, uma imago mundi. A sua construção é a repetição da criação do mundo, uma realização constantemente renovada e reiterada da obra primigénia dos Deuses. A organização humana do espaço é, pois, a repetição de um acto dos tempos primitivos: "a transformação do caos em cosmos por meio do acto divino da criação". A morada humana é o microcosmos que o homem constrói imitando a criação-arquétipo dos Deuses. Para o homem arcaico, há uma homologia entre a criação do mundo e a construção da casa, porque, "organizando um espaço, se reitera a obra exemplar dos Deuses". Cosmificar é consagrar e consagrar é repetir ritualmente a cosmogonia. Mas o homem arcaico vai mais longe e "cosmisa" o próprio corpo: "«Habita-se» o corpo da mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou para si mesmo". O território habitado, o Templo, a Casa e o Corpo são Cosmos dotados de uma "abertura superior" que lhes possibilita comunicar com o outro nível transcendente, o sagrado.
3. O Templo. O Templo é o lugar santo por excelência, a casa dos Deuses. Nas grandes civilizações asiáticas e judaico-cristãs, o Templo é simultaneamente uma imago mundi e uma reprodução terrestre de um modelo transcendente. O Templo constitui uma imago mundi, porque o mundo é obra dos deuses e, como tal, é sagrado. Porém, como lugar sagrado por excelência, o Templo "re-santifica continuamente o Mundo, porque o representa e contém ao mesmo tempo". Graças ao Templo, o mundo é re-santificado na sua totalidade e, deste modo, é continuamente purificado pela "santidade dos santuários". Desta diferença ontológica entre o Cosmos e a sua imagem santificada que é o Templo resulta a concepção de que a santidade do Templo "está ao abrigo de toda a corrupção terrestre", por causa do seu plano arquitectural ser obra dos Deuses e, por consequência, se encontrar muito perto dos Deuses no Céu.
Mircea Eliade recorre a textos bíblicos para mostrar que, para o povo de Israel, os modelos do tabernáculo, de todos os utensílios sagrados e do Templo, foram criados por Jeová desde a eternidade e foi Ele que os revelou aos seus eleitos, em especial Moisés, David e Salomão, para que fossem reproduzidos sobre a terra. A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso e a cidade de Jerusalém é a reprodução aproximada do modelo transcendente: a cidade pode ser maculada pelo homem, mas o seu modelo goza de uma existência espiritual, incorruptível e celeste. A basílica cristã e, mais tarde, a catedral, retomaram e prolongaram estes simbolismos da "geometria celeste" e a Igreja foi concebida como imitação de Jerusalém celeste. A arquitectura sacra retoma e desenvolve o simbolismo cosmológico e todos os rituais relativos aos Templos, às cidades e às casas derivam, em última análise, da "experiência primária do espaço sagrado".
4. A Cidade. Tal como o Templo ou a casa, a cidade que mais não é do que uma "grande casa" resulta de um acto consciente de fundação. O exemplo mais conhecido é o da fundação de Roma, que nos foi transmitido pela narrativa de Plutarco: "Segundo inúmeras tradições, a criação do mundo começou num centro e, por esta razão, a construção da cidade deve também desenrolar-se em volta de um centro. Depois de ter aberto um fosso profundo (fossa), Rómulo encheu-o de frutos, cobriu-o de terra, erigiu por cima dele um altar (ara) e traçou com o arado o sulco dos limites de protecção (designat moenia sulco). O fosso era um mundus e, como observa Plutarco, «deu-se a este fosso, como ao próprio universo, o nome de "mundo" (mundus). Este mundus era o lugar da intersecção dos três níveis cósmicos (a Terra, o Céu e o Inferno)». É provável que o modelo primitivo de Roma tenha sido um quadrado inscrito num círculo: a difusão extremamente extensa da tradição gémea do círculo e do quadrado leva a essa suposição" (M. Eliade).
A cidade é, portanto, uma cópia do cosmos, ou melhor, uma reconstrução do mundo, projectada, por meio do ritual de construção, no centro do cosmos e, tal como o Cosmos exemplar que se origina a partir do seu Centro, a cidade estende-se a partir de um ponto central que é como que o seu "umbigo", donde se projectam os quatro horizontes nas quatro direcções cardeais. A cidade é, portanto, a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do habitat humano. Como já vimos, o "nosso mundo" é um mundo total e organizado num Cosmos, fundado pela imitação da obra exemplar dos Deuses. A cidade é precisamente o "nosso mundo" e, como tal, está sujeita a sofrer um ataque exterior que ameaça transformá-la num Caos. Os seus adversários são assimilados aos inimigos dos Deuses, os demónios, e sobretudo ao arquidemónio, o Dragão primordial vencido pelos Deuses nos começos dos tempos: "O ataque do «nosso mundo» equivale a uma desforra do Dragão mítico, que se rebela contra a obra dos Deuses, o Cosmos, e se esforça por reduzi-la ao nada. Os inimigos enfileiram entre as potências do Caos. Toda a destruição de uma cidade equivale a uma regressão ao Caos. Toda a vitória contra o atacante reitera a vitória exemplar do Deus contra o Dragão, isto é, contra o Caos" (M. Eliade).
Toda a habitação humana é consagrada pelo teofania (Robertson Smith) e, como espaço sagrado, está encerrada e protegida por um muro ou vedação. Este muro visa não só garantir a presença contínua de uma cratofania ou de uma hierofania no interior do recinto, como também preservar o próprio profano do perigo a que se exporia se ali penetrasse sem os devidos cuidados, porque o sagrado é perigoso. De modo similar, as muralhas da cidade, antes de serem defesa militar, são defesa mágica, porque garantem a manutenção, no meio de um espaço caótico, povoado de demónios e de larvas, de um espaço organizado, cosmicizado e, portanto, provido de um Centro. Segundo Eliade, o simbolismo do labirinto incluía também a ideia de defesa de um Centro: entrar num labirinto tinha o valor de uma iniciação. Em termos militares, o labirinto impedia ou, pelo menos, dificultava a penetração do inimigo no centro da cidade, cuja configuração reproduzia o próprio Cosmos, mas, em termos religiosos, a sua função era impedir o acesso da cidade aos espíritos de fora, aos demónios do deserto e à morte e, muitas vezes, a sua finalidade era defender um "centro". Neste caso, o labirinto representava o acesso iniciático à sacralidade, à imortalidade e à realidade absoluta: "O acesso ao "centro" equivale a uma consagração, a uma iniciação", cujo objectivo é produzir uma modificação radical do estatuto religioso e social da pessoa que vai ser iniciada, isto é, uma mutação ontológica da condição existencial do neófito que, deste modo, abandona uma existência profana e ilusória e adquire uma existência real, durável e eficaz.
5. Conclusões Provisórias. Mircea Eliade mostrou que o sagrado e o profano são duas modalidades de experiência e de ser no mundo, isto é, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história, que devem ser estudadas pela antropologia filosófica. A dessacralização do mundo operada pela modernização não aboliu certos traços da conduta do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivências" ou de "comportamentos cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este propósito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado como o nosso, o «sagrado» se encontra presente e activo principalmente nos universos imaginários". Ora, como mostrou Bachelard, as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total e, ao contrário do que pensa Eliade, estas experiências não são nocturnas mas diurnas ou, como diz Bloch, são sonhos de um mundo melhor. Se o objectivo é constituir uma autêntica antropologia filosófica, devemos ver nessas "sobrevivências" o "traço fundamental do habitar": "Ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra" (Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse traço fundamental da condição humana que Eliade reconduz à nostalgia do Paraíso são os seguintes:
1) A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mítico, a casa era regida de maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do cosmos, mas, após a sua dessacralização, a estrutura do seu espaço é "subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona como ponto fixo de referência e de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter percorrido os lugares do mundo exterior.
2) A casa continua a conservar o seu aspecto particular que só pode ser captado através da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carácter de sortilégio da violação do domicílio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade que possibilitam ao hóspede desfrutar a protecção da casa e atribuem ao dono a tarefa de zelar para que ninguém lhe cause qualquer tipo de dano. A casa é potencialmente um espaço inviolável e, por isso, de acesso limitado aos estranhos e aos inimigos.
3) A casa continua a ser uma esfera inviolável de paz, tranquilidade, intimidade e repouso, marcadamente separada do mundo exterior. Já não se trata de defender a casa da penetração de demónios hostis que ameaçam o homem fora da sua casa e cuja infiltração deve ser evitada por meios mágicos, mas o carácter ameaçador deste mundo alheio não desapareceu completamente, sendo protagonizado por novas forças sociais, políticas, económicas e ideológicas que se introduzem no interior do espaço da casa, sem serem desejáveis ou mesmo aceites.
4) A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo em miniatura que está em correspondência com o mundo exterior. Se a casa é o nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, então ainda é um cosmos e, sendo assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criança vê a sua casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo pátrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no mundo exterior. Graças ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em sua casa.
Coube a Minkowski analisar o carácter da morada que é a intimidade, mas, para desfrutar essa intimidade da casa, é preciso partilhá-la com a comunidade da família. Deste modo, a casa e a família encontram-se inseparavelmente ligadas para criar a sensação humana de amparo. O lar é um espaço aberto a um círculo reduzido de amigos e de pessoas íntimas. Segundo Minkowski, a essência da casa não pode ser captada a partir do indivíduo isolado, o celibatário ou o viúvo, mas apenas a partir da comunidade familiar e dos amigos próximos e íntimos: a casa é fundada não por um mas por dois indivíduos. Sem se aperceber dessa conexão essencial, Minkowski retoma uma noção antiga de lar. Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas. Era obrigação do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande desgraça seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram cobertos de cinza os carvões, para se evitar que se consumissem inteiramente durante a noite; pela manhã, o primeiro cuidado era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns ramos secos. O fogo só deixará de brilhar sobre o altar quando toda a família estivesse extinta; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos". O capitalismo ameaça destruir este fogo do lar e, com ele, a própria humanidade do homem, que mantém prisioneiro da condição metabolicamente reduzida numa terra devastada. "Eu habito, tu habitas, nós habitamos" a "nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a "nossa pátria": é assim que o revolucionário conjuga o verbo "habitar". O devaneio do sonhador solitário, até mesmo quando revisita a casa paterna ou a casa natal, por vezes numa atitude de nostalgia, mas frequentemente numa atitude de esperança militante, sonha diurnamente a casa onírica: a pátria da identidade da humanidade naturalizada e da natureza humanizada.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Jacques Derrida: Espectros de Marx

«Um espectro ameaça a Europa: o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa se uniram numa Santa-Aliança para esconjurar este espectro». (Marx/Engels, Manifesto do Partido Comunista)
A filosofia contemporânea ilustra o fenómeno da inflação da linguagem e esta obsessão verbal centra-se, na filosofia de Jacques Derrida, na escrita, cujo tema funciona como antídoto contra o idealismo, a metafísica e a ontologia. O alvo da crítica de Derrida é o logocentrismo que caracteriza a história ocidental enquanto gravita em torno da noção de logos (razão e linguagem), destacando o pólo da razão, entendida como pensamento, sentido puro, ideal ou espírito, em detrimento do pólo verbal (material, sensível) do logos. Este esquecimento da materialidade da escritura, constitutivo do pensamento ocidental, deve-se à experiência da voz, do enunciado oral que expressa o que se "quer dizer", isto é, a referência. A proximidade do significante do sujeito falante cria a ilusão de que a consciência pensante e as significações que "quer dizer" (intenções) existem, como se a consciência pensante estivesse imediatamente presente a si mesma e ao referente puro para o qual aponta. Deste fonocentrismo resultam o idealismo, a metafísica e a ontologia, para os quais o significante é de tal modo transparente que deixa o conceito apresentar-se a si mesmo, como o que é, sem remeter a nenhuma exterioridade, excepto à sua própria presença. Este "engodo estrutural" está inscrito na prática da própria linguagem humana, que dá origem a um mundo e a uma forma de vida, nos quais a multiplicidade, as diferenças e as contradições parecem ser superáveis.
A consequência do fonocentrismo é a desvalorização geral da linguagem, em particular da escritura, que é concebida como o instrumento marginal e imperfeito para conservar o sentido enunciado. A materialidade da escrita mancha o sentido puro que recolhe com os resíduos impuros do mundo sensível. Uma ordem hierárquica atravessa toda a história ocidental: 1) o real (o Significado e o Referido), 2) a expressão oral (contingente, imperfeita, mas quase invisível), e 3) a escritura (cópia material dura e acessória do oral). Neste movimento que vai do real à escritura, passando pela expressão oral, afastamo-nos sempre da "própria coisa" (o So/Ro ou Significado/Referido), que se mantém pura na "origem", isto é, presente sem distância na consciência com "vontade de dizer". A escritura é uma espécie de refugo do pensamento ocidental.
O logocentrismo é a "matriz do idealismo" e do espiritualismo em todas as suas versões, que Derrida pretende desmontar com a desconstrução: o conjunto das técnicas e das estratégias usadas para desestabilizar, fissurar, rasurar e deslocar os textos explicita ou invisivelmente idealistas, mostrando que a materialidade (escritura) e o "sem-sentido" (indizível) afectam todos os textos idealistas ou mesmo materialistas. Tanto a fenomenologia de Husserl como o estruturalismo estão contaminados pelo fonologismo. Afirmar que "tudo é linguagem", como fazem os estruturalistas da Escola de Saussure, é retomar a concepção central da filosofia grega: a supremacia do discurso (logos), assimilado à palavra viva ou à voz e considerado como doador originário do sentido, a qual repousa, por sua vez, sobre a metafísica do Ser concebido com o "ente supremo", ou seja, sobre uma onto-teo-logia, para a qual o próprio significante se apoia sobre um significado transcendental que funciona como garantia suprema de toda a doação de sentido. Pretender determinar uma forma de pensamento "puro", tomado como a origem e a essência de todo o discurso cientificamente rigoroso, como faz Husserl, é esquecer que esse pensamento só pode ser apreendido através da mediação linguística dos signos que o exprimem, em especial dos signos escritos que o anotam. Contaminada pela presença secreta dessa escrita, a origem atingida por Husserl não é "pura": toda a origem é "impura", ou melhor, não há origem. A presença ausente da escrita corrompe desde o início a própria origem.
Colocando "em perspectiva" diversos textos pertencentes a épocas diferentes da metafísica da presença ocidental, Derrida mostra que, no momento em que tentam demonstrar a supremacia do logos reduzido a palavra viva, acabam por minar e implodir essa supremacia, na medida em que pressupõem a existência de uma arqui-escrita anterior ao logos para explicar a "articulação" que o define. Com a introdução deste "suplemento", a "aparição" da origem é infinitamente "diferida" e o sentido está condenado à "disseminação". Contudo, Derrida evitou explicitar a teoria desta arqui-escrita, isto é, do "grammé", do vestígio, da inscrição e da rasura, talvez por suspeitar que a própria noção de teoria é solidária da metafísica, e, em vez da sistematização da metodologia da gramatologia, dedicou-se ao exercício da subversão textual devastadora que assimila ao movimento da "différance", substantivo construído a partir do particípio presente do verbo "différer" (diferir), popularizada sob o termo desconstrução e divulgada nos meios literários por Paul de Man. A desconstrução aplica-se a textos, em especial a textos filosóficos, e, como prática de escrita, opera sempre nas suas margens, de modo a fazer aparecer os termos não-ditos nesses textos aparentemente homogéneos e atravessados por uma intenção de sentido unívoco. Operando uma inversão nos pares conceptuais hierarquizados, seguida de uma neutralização do conceito valorizado, a desconstrução revela a parte do significante (Se) em todo o significado (So), bem como a inércia da matéria na subtileza do espírito e as ambiguidades e aporias do uso que se pretende lógico. A desconstrução é uma espécie de leitura sem a priori que procura escapar ao discurso metafísico, às suas oposições binárias e à ideia de hierarquia dos conceitos.
A desconstrução não visa somente destruir a metafísica da presença, mas também é alimentada por uma ambição revolucionária: a desconstrução gera necessariamente efeitos políticos que Derrida abordou na sua obra "Espectros de Marx", onde denuncia o mito do "fim da história" difundido por Francis Fukuyama na peugada de Kojève, lembrando que a democracia liberal, além de não estar realmente estabelecida na maior parte dos países do mundo, é incapaz (sozinha) de resolver os graves problemas causados pelo agravamento constante das injustiças sociais e da miséria. Por isso, após a queda do Muro de Berlim e em face da globalização e da intolerância ocidental, torna-se necessário regressar a Marx, aos seus textos e, sobretudo, ao "espírito do marxismo". Ou, como diz Derrida, Marx está "entre nós". É certo que Derrida realiza uma crítica da herança de Marx a partir da perspectiva filosófica da desconstrução, mas faz uma espécie de confissão: um certo espírito do marxismo nunca foi alheio à sua filosofia. Com efeito, Derrida afirma que, se existe um espírito do marxismo a que não renuncia e a que nunca renunciou, mesmo durante o terrível período do predomínio totalitário da dogmática comunista soviética, esse espírito não é somente "a ideia crítica ou a atitude questionadora", sem a qual não é possível a própria desconstrução, mas também e fundamentalmente "certa afirmação emancipadora e messiânica, certa experiência da promessa que pode ser liberta de toda a dogmática e, inclusivamente, de toda a determinação metafísico-religiosa, do messianismo".
Esta promessa deve prometer ser cumprida, isto é, "produzir acontecimentos, novas formas de acção, de prática, de organização", enfim, uma Nova Internacional, na conjuntura social e política desfavorável e intolerante do mundo contemporâneo, dominado por um novo dogmatismo e por uma nova intolerância que se apoderou da actual "Europa da Santa Aliança" (UE): o dogmatismo capitalista que insiste na morte de Marx e do marxismo. Insurgindo-se contra os discípulos franceses de Althusser, em especial Balibar, que dissociam o marxismo de toda a teleologia ou de toda a escatologia messiânica e, sobretudo, contra as interpretações antimarxistas, Derrida conjura todos os espectros, os diversos "espíritos marxianos" e antimarxianos, em "nome de novas Luzes para o século vindouro", sem "renunciar a um ideal de democracia e de emancipação", que procura pensar e colocar em marcha de uma maneira efectiva que evita a repetição da experiência soviética, bem como o oportunismo da experiência social-democrata europeia. O resultado é a extraordinária elaboração, linguística e conceptualmente rigorosa, da espectrologia de Marx: "A desconstrução só tem sentido e interesse, pelo menos para mim, confessa Derrida, como uma radicalização, isto é, também na tradição de um certo marxismo, com um certo espírito do marxismo". O marxismo de inspiração messiânica de Walter Benjamin, mas também o de Ernst Bloch, obriga-nos a pensar, neste mundo global, tomado pela virtualização do espaço e do tempo, "outro espaço para a democracia" por vir e, por conseguinte, para a justiça. De certo modo, ao reconhecer a sua dívida para com o marxismo e ao reatar a sua obra com a tradição marxista de cariz messiânico, Derrida procura, no jogo de espelhos perigoso em que se move a sua prática filosófica, escapar à "armadilha" que ameaça a própria desconstrução ou a crítica radical da razão. Afinal, "quer queiram ou não, saibam ou não, todos os homens, em toda a terra, são hoje, em certa medida, herdeiros de Marx e do marxismo" (Derrida). E o tempo presente assiste e pertence à (re)aparição de Marx: o desejo de justiça e a promessa devem ser cumpridos, isto é, o mundo deve ser transformado, tendo em vista a realização dos sonhos de um mundo melhor.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Melanie Klein: Inveja e Gratidão

«O ciúme teme perder o que possui; a inveja sofre ao ver o outro possuir o que quer para si. O invejoso não suporta a visão da fruição. Sente-se à vontade apenas com o infortúnio dos outros. Assim, todos os esforços para satisfazer um invejoso são infrutíferos. O ciúme é uma paixão nobre ou ignóbil, em função do objecto. No primeiro caso, é emulação aguçada pelo medo. No segundo caso, é voracidade estimulada pelo medo. A inveja é sempre uma paixão vil, arrastando consigo as piores paixões». (Crabb)
Os portugueses conhecem bem esta paixão vil que é a inveja e que, na linguagem popular, é denominada "mal de inveja". Teixeira de Pascoaes viu nela um dos maiores defeitos da "alma pátria": "Somos fantasmas querendo iludir a sua oca e triste condição. Por isso, o valor alheio nos tortura, revelando, com mais clareza, a nossa própria nulidade". Porém, na sua ingenuidade, não soube elaborar uma psicopatologia portuguesa e, deste modo, descobrir o mal radical que habita plenamente a alma portuguesa. A inveja é destrutiva e, se ela é "um esqueleto de hiena visionando um cemitério", como diz Pascoaes, então Portugal é esse mesmo cemitério, do qual a esperança foi sempre-já expulsa. A História de Portugal está ferida de morte desde o seu começo: o matricídio cometido por Afonso Henriques foi introjectado e, posteriormente, projectado por todos os portugueses nutridos no e pelo mau seio e, desse modo, incapazes de retomar o bom seio, o da gratidão. Pascoaes não compreendeu que a inveja é, como diz Klein, "o sentimento raivoso de que outra pessoa possui e desfruta algo desejável, sendo o impulso invejoso o de tirar este algo ou de estragá-lo". A inveja pressupõe a relação do indivíduo com uma só pessoa e esta relação origina-se na relação primordial e arcaica com a mãe. Embora esteja fundado na inveja, o ciúme envolve uma relação com duas pessoas, no mínimo, e diz respeito "ao amor que o indivíduo sente como lhe sendo devido e que lhe foi roubado, ou está em perigo de sê-lo, pelo seu rival".
Melanie Klein (1882-1960) concedeu à inveja uma posição de importância central, tanto na compreensão da psicopatologia como no processo de tratamento, na sua concepção do conflito que está na origem do desenvolvimento. Aparentemente distante de Freud, mas talvez mais próxima de Rank ou de Ferenczi, Klein interessa-se pelos momentos pré-edipianos deste desenvolvimento e coloca em jogo a complexidade das relações que se estabelecem entre a mãe e a criança antes da intervenção do pai que provocará a violência do complexo de Édipo. Deste modo, Klein é levada a mostrar que a figura da mãe é ambivalente. A mãe pode tanto recompensar como frustrar a criança e, por isso, aparece sucessivamente como "bom" e "mau" objecto: quer dizer que o mesmo objecto é, para a criança, bom e mau, que amá-lo é também querer destruí-lo e que a figura da mãe reúne e evoca todos os sentimentos da criança, até mesmo os mais contraditórios. A presença da contradição no sujeito tende a apagar-se em proveito do nascimento de um conflito no interior dos laços privilegiados que ligam a mãe e o filho. A mãe é, portanto, o próprio modelo de toda a ambivalência.
As origens da inveja derivam da agressão constitucional e a inveja precoce representa uma forma particularmente maligna e desastrosa de agressão inata. Todas as outras formas de ódio da criança são dirigidas para maus objectos que são sentidos como perseguidores e maus. Por isso, a criança odeia-os e fantasia com a sua tortura e destruição. A inveja é, pelo contrário, ódio dirigido contra bons objectos. A criança sente a bondade e os cuidados que a mãe lhe oferece, mas sente-os como insuficientes e ressente-se com o controle omnipotente da mãe, capaz de a alimentar, de a libertar dos impulsos destrutivos e da ansiedade persecutória e de a proteger de toda a dor e males provenientes de fontes internas e externas. Ora, o primeiro objecto a ser invejado é o "seio nutridor": o bebé sente que o seio possui tudo o que deseja e que é dotado de um fluxo ilimitado de leite e de amor que guarda para a sua própria gratificação. Porém, o seio materno fornece o leite em quantidade limitada e depois pára. Na fantasia da criança, no seu mundo interior povoado de fantasmas, o seio é sentido como guardando avaramente o leite para os seus próprios objectivos. O ressentimento e o ódio associam-se a esta fantasia do seio inexaurível e o resultado é uma relação perturbada com a mãe. A inveja primária do seio materno desencadeia ataques sádicos ao seio materno, determinados pelos impulsos destrutivos, que visam estragar o objecto: o seio é odiado e invejado pelo facto do bebé sentir que é um seio mesquinho e malévolo. Nas suas formas subsequentes, a inveja deixa de estar focalizada no seio e é deslocada para a mãe que recebe o pénis do pai, que possui bebés dentro dela, que dá à luz esses bebés e que é capaz de amamentá-los, e, nos estágios iniciais do complexo de Édipo (quarto e sexto mês de vida), para o pai, visto como um intruso hostil e acusado de ter raptado o seio nutritivo e a própria mãe, dando início ao desenvolvimento do ciúme.
Klein distingue a inveja da voracidade, na qual o bebé quer ter todos os conteúdos do bom seio somente para si, sem se importar com as consequências para o seio, que imagina sugar até o secar. Para o bebé voraz, a destruição não é o motivo mas a consequência da ganância. Na inveja, a criança quer destruir o seio e estragá-lo, não porque seja mau, mas porque é bom. Como a riqueza do seio está fora do seu controle, a criança não pode tolerar a sua bondade e, por isso, deseja estragá-lo. O dano causado por esta inveja resulta da corrosão da primeira cisão entre seio bom e seio mau: as cisões e dispersões de objectos em bons e maus, internos e externos, precipitam e correspondem a cisões dentro do próprio self. No ódio não-invejoso, a destruição é dirigida contra os objectos maus: os objectos bons são protegidos pela cisão e, por conseguinte, o bebé pode sentir-se, pelo menos uma vez ou outra, protegido e seguro. Porém, em virtude da inveja, a criança destrói os bons objectos, a cisão é desfeita e ocorre um aumento da ansiedade persecutória e do terror. A inveja destrói a possibilidade de esperança. Se o objectivo da voracidade é a introjecção destrutiva, isto é, escavar completamente, sugar até deixar seco e devorar o seio, a inveja "procura não apenas despojar dessa maneira, mas também depositar maldade, primordialmente excrementos maus e partes más do self, dentro da mãe, acima de tudo dentro do seu seio, a fim de estragá-la e destruí-la". Isto significa que a inveja visa "destruir a criatividade da mãe". Este processo que deriva de impulsos sádico-uretrais e sádico-anais constitui um aspecto destrutivo da identificação projectiva, conceito usado por Klein para descrever as extensões de cisão nas quais partes ou segmentos reais do ego são separadas do resto do self e projectadas nos objectos. Klein traça a linha divisória entre inveja e voracidade, dizendo que "a voracidade está ligada principalmente à introjecção e a inveja à projecção". A pessoa invejosa é insaciável, destrutiva, ladra, maldosa e fraca.
A inveja intensa do seio nutridor interfere com a capacidade de satisfação e, por conseguinte, solapa o desenvolvimento da gratidão: a voracidade, a inveja e a ansiedade persecutória estão interligadas e intensificam-se reciprocamente. A inveja estraga o objecto bom originário e alimenta os ataques sádicos ao seio, que, em face disso, perde o seu valor e torna-se mau por ter sido mordido e envenenado pela urina e pelas fezes. Com a capacidade de fruição arruinada, a inveja torna-se persistente e a gratidão não se desenvolve para mitigar os impulsos destrutivos. Devido à inveja persistente, a criança torna-se incapaz de construir seguramente um objecto bom interno. Pelo contrário, a criança com uma forte capacidade de amor tem "uma relação profundamente enraizada com um objecto bom e pode suportar, sem ficar profundamente danificada, estados temporários de inveja, ódio e ressentimento que surgem mesmo em crianças que são amadas e recebem bons cuidados maternos". Mas, como estes estados negativos são transitórios, a criança pode recuperar facilmente o objecto bom, sem prejudicar o estabelecimento das bases da estabilidade emocional e cognitiva e de um self forte. Esta relação positiva com o seio materno constitui, no decurso do desenvolvimento, a base sólida para a dedicação e a vinculação a pessoas, valores e causas, que absorvem, em certa medida, uma parte do amor que era inicialmente sentido pelo objecto originário.
O sentimento de gratidão deriva da capacidade de amar e, conforme observa Klein, é fundamental para "a construção da relação com o objecto bom" e para avaliar e apreciar o que há de bom nos outros e em si mesmo. A pessoa invejosa não pode realizar esta tarefa de reparar o objecto bom, por ser demasiado influenciável e, portanto, incapaz de confiar no seu próprio julgamento. De modo diferente de Freud, Klein considera que a ansiedade primordial derivada do trauma do nascimento (Rank) constitui a ameaça de aniquilamento pela pulsão de morte interna: o ego que "existe desde o início da vida pós-natal", e cuja primeira e principal função "é lidar com a ansiedade", está ao serviço da pulsão de vida e, nesta luta primordial entre as pulsões de vida e de morte, compete-lhe deflectir essa ameaça para fora, de modo a preservar a sua identidade e a sentir que possui uma "bondade" própria. Enquanto a capacidade de amar promove as tendências integradoras e o sucesso da cisão primordial entre o seio bom e o seio mau, protegendo o self das identificações indiscriminadas com uma variedade de objectos e dando-lhe uma sensação de que possui bondade própria, a inveja excessiva interfere na cisão fundamental e no sucesso da estruturação de um objecto bom, donde resultam o enfraquecimento do self e a perturbação das relações de objecto. Assim, as crianças com capacidade de amar forte sentem menos necessidade de idealizar do que as crianças dominadas por impulsos destrutivos e pela ansiedade persecutória: "a idealização é, portanto, um corolário da ansiedade persecutória e o seio ideal é a contrapartida do seio devorador". Com a danificação da capacidade de selecção e de discriminação, o self fraco do indivíduo invejoso é levado a trocar constantemente de objecto amado, porque nenhum objecto pode preencher integralmente as expectativas: o objecto idealizado anterior é sempre sentido como um perseguidor e nele é projectada a atitude invejosa e crítica do sujeito. "Tudo isto leva, como diz Klein, à instabilidade dos relacionamentos".
Além disso, a inveja excessiva interfere na gratificação oral adequada, estimulando a intensificação dos desejos e tendências genitais. Este início prematuro da genitalidade é frequentemente "causa da masturbação compulsiva e da promiscuidade sexual" e, em virtude da inveja excessiva do seio nutritivo e do sentimento de ter estragado a sua bondade através de ataques sádicos invejosos, pode estar ligado à ocorrência precoce da culpa. Segundo Klein, a atitude invejosa e destrutiva em relação ao seio nutritivo está na base da crítica destrutiva, descrita como "mordaz" e "perniciosa", dirigida contra a criatividade, cuja contrapartida benéfica e saudável é a crítica construtiva que visa ajudar a outra pessoa a aperfeiçoar o seu trabalho. Enfim, para não prolongar muito mais este post, diremos que a inveja está ao serviço da pulsão da morte e, nessa missão, constitui uma força destrutiva da vida e da criatividade: proíbe o sonhar acordado e paralisa o movimento de ir para a frente, como se verifica facilmente ao longo da História de Portugal, cujo objecto idealizado é a ideologia sebastianista que culmina no antiprojecto do Quinto Império de Fernando Pessoa e que se manifesta regressivamente no reino da imitação invejosa e maldosa: o luso-reino "simiesco" (Pascoaes) em que o espírito de iniciativa e as forças criadoras cedem o seu lugar ao espírito imitativo e ao pensamento de rebanho, porque, "sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco" (Pascoaes), ou melhor, o homem metabolicamente reduzido. As forças criativas nacionais estão condenadas à morte em vida ou ao êxodo, porque a inveja portuguesa corrompe Portugal e fecha sistematicamente as portas ao advento de um futuro inteiramente novo.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Merleau-Ponty e o Habitar

«O Capital é uma "Fenomenologia do Espírito" concreta, isto é, trata indissoluvelmente do funcionamento da economia e da realização do homem". (Merleau-Ponty)
O conceito de habitar gira em torno de duas significações básicas: a de posse da casa e a de estado do próprio homem que se manifesta no habitar. No primeiro sentido, o habitar é compreendido como o habitar numa casa, e no segundo sentido, como a situação autêntica do próprio homem no espaço. A tematização do habitar possibilita descobrir que é no habitar que se concretiza verdadeiramente a relação do homem com o espaço e que esta espacialidade da vida humana permite, como viu Heidegger, apreender a essência do homem. Segundo Heidegger, ser homem consiste em habitar e o traço fundamental do habitar reside no resguardo de cada coisa na sua essência: "Resguardar a quadratura, salvar a terra, acolher o céu, aguardar os divinos, acompanhar os mortais, esse resguardo de quatro faces é a essência simples do habitar" (Heidegger).
Coube a Maurice Merleau-Ponty utilizar frequentemente o conceito de habitar na direcção mais vasta do segundo sentido e a torná-lo o conceito-chave para explicitar a relação do homem com o mundo e com a vida, embora não tenha reflectido explicitamente sobre a essência do habitar, tal como fez Heidegger. Merleau-Ponty utiliza o termo habitar num sentido tão geral que chega a dizer que os homens habitam o ser. "Habitar o ser" designa a nova relação com o ser, que se opõe à objectividade científica que, em vez de habitar íntima e tranquilamente as coisas, procura manipulá-las. Na sua poética do devaneio, Bachelard apreende esta nova relação com as coisas, a partir da dualidade profunda da psique humana que Jung colocou sob o duplo signo de um animus e de uma anima: «Amar as coisas em função do seu uso é próprio do masculino. São pedaços das nossas acções, das nossas acções vivas. Mas amá-las intimamente, por elas mesmas, com as lentidões do feminino, eis o que nos conduz ao labirinto da Natureza íntima das coisas». Com esta extensão conceptual do conceito de habitar, abrem-se as portas à elaboração de uma nova filosofia da natureza, que tanto preocupou Merleau-Ponty nos seus Cursos.
O conceito de habitar é usado por Merleau-Ponty em cinco acepções fundamentais, cujos sentidos se sobrepõem de modo a proporcionar as linhas gerais de uma nova filosofia do habitar, a qual visa esclarecer a relação do homem com a casa e a pátria, a relação da alma com o corpo, a relação do sentido com a palavra, a relação do homem com o mundo e a relação do homem com o espaço e o tempo, ou, num sentido mais abrangente, a relação do homem com o ser. Eis as acepções:
1. A Casa. O significado fundamental é o de habitar uma casa. Nesta acepção, o habitar opõe-se a uma estada casual, meramente passageira ou temporária, num determinado ponto arbitrário do espaço. Habitar significa ser de um determinado ponto, estar enraizado nele, estar em casa. Também significa ter um âmbito fechado, acolhedor, um espaço próprio em casa, no qual o homem se retira e se abriga do mundo exterior ameaçador e hostil. As outras acepções derivam desta primeira significação e o seu conteúdo evoca o modo como o homem habita a sua casa. Como escreve Portmann: "O lar converte-se assim num lugar onde, graças à segurança e à tranquilidade, os estados anímicos essenciais de todo o animal superior encontram uma satisfação máxima; é, pois, um lugar que possibilita amparo".
2. Alma e Corpo. Merleau-Ponty utiliza o termo habitar para designar a relação da alma com o corpo: "A alma habita o corpo". Esta expressão refere-se à relação estreita que é a encarnação da alma numa contextura espacial. Esta relação da alma com o corpo é qualificada de habitar, mas este habitar é deveras singular, porque a alma não pode abandonar esta morada ou habitação que é o corpo, tal como o homem pode abandonar a sua casa. O homem não pode desalojar a sua alma. Isto parece indicar que a relação do homem com a sua casa pode ser compreendida através da intensidade da sua relação com o seu corpo: o habitar numa casa é uma espécie de encarnação ou, como diria Bachelard, a casa é uma concha.
Esta concepção da encarnação distancia-se claramente da resposta dualista dada pelo orfismo ao problema da morte: Soma-sema, isto é, "o corpo é a sepultura da alma" e a morte corporal é a ressureição da alma. Esta visão órfica culminou na concepção cristã e gnóstica de uma interioridade no ser humano totalmente alheia ao mundo. A vida mora como um estranho no corpo. O corpo é, por natureza, um cadáver, que somente vive graças à alma, durante o breve período do ciclo vital em que a alma está presente. Na morte real, o corpo é abandonado pelo estranho hóspede que é a alma, e cada uma destas entidades distintas alcança a sua verdade original: o corpo torna-se cadáver e, ao abandoná-lo, a alma regressa à sua região originária.
Do ponto de vista do ter, podemos afirmar que o homem "tem" o seu corpo. Mas, como mostrou G. Marcel, o homem não "tem" o seu corpo, tal como possui os seus outros bens, e, por isso, não pode dispor do mesmo modo do seu corpo. Trata-se de uma "vinculação misteriosa e íntima entre eu e o meu corpo". Como não podemos distanciar-nos do nosso corpo, o problema da apropriação não se coloca: o corpo vivo encontra-se sempre-já apropriado e incluído na pessoa. A consciência ingénua afirma que o homem é o seu corpo e, deste modo, opera uma identificação parcial do homem com o seu corpo, sem fazer a distinção entre o corpo e a sua alma. G. Marcel diz apenas que o homem está encarnado no seu corpo. Num sentido meramente antropológico e não teológico, a encarnação designa esta unidade misteriosa que é o homem, ao mesmo tempo que possibilita pensar a sua relação com o espaço, mediante a qual o homem está implantado no espaço pelo seu corpo.
3. Palavra e Significado. Merleau-Ponty afirma frequentemente que o sentido ou a significação habitam numa palavra: "O vínculo entre uma palavra e o seu sentido vivo não é um laço externo, no sentido de associação; o sentido habita a palavra e a língua não é um fenómeno concomitante externo de processos espirituais". Do mesmo modo, mediante a compreensão intuitiva, podemos habitar o corpo de outra pessoa, porque, na expressão percebida, está contido o sentido de modo imediato. A qualificação da união da palavra e do significado com o termo habitar evidencia que este termo se refere à unidade indissolúvel análoga à que existe entre a morada e o habitante.
4. O Mundo. Merleau-Ponty utiliza a palavra habitar no sentido de que "os homens habitam o mundo". Isto significa que os homens não existem de modo arbitrário no mundo, mas que estão ligados ao mundo através de um vínculo de confiança tal como o que une a alma ao corpo e o que religa o conteúdo expresso com a sua expressão. Cada homem habita o mundo de modo distinto e o pintor pode dar visibilidade a esse mundo: o olho habita o ser como o homem habita a sua casa. Habitar significa aqui uma modalidade de um estar-ligado confiante e compreensivo. Este estar-ligado aplica-se tanto ao mundo total como a cada um dos seus objectos. A expressão "o homem habita as coisas" significa que o homem está intimamente ligado às coisas e que as coisas não são meros objectos exteriores, mas estão incluídas na sua vida como portadoras de um ser mais profundo: "coisificar é aproximar mundo" (Heidegger). Acolhimento é o termo usado por Bachelard para designar esta ligação íntima das coisas. Para o homem que sonha o mundo, o mundo já não está diante do eu e o eu já não se opõe ao mundo: "tudo é acolhimento".
O termo habitar é utilizado para designar a unidade indissolúvel com que algo anímico está encarnado "em" algo corpóreo e, deste modo, pode ser utilizado para designar genericamente a relação do homem com o espaço, porque, para Merleau-Ponty, "o homem habita o espaço". É evidente que o homem habita todas as regiões do mundo através do seu corpo, encarado como mero instrumento com ajuda do qual o homem se relaciona com o mundo. Porém, esta modalidade instrumental do habitar não ajuda a esclarecer a essência do habitar. Para Merleau-Ponty, o corpo é compreendido na sua qualidade espacial como a forma primitiva de todas as demais experiências do espaço: "O corpo é o espaço pátrio da alma e a matriz de todo o outro espaço existente". Isto significa que o corpo não é um mero instrumento mediante o qual se experiencia o espaço, mas é, ele próprio, um espaço experimentado e vivido, e, além disso, o espaço mais primigénio, cujo arquétipo permite compreender todos os outros espaços. O homem está imerso num espaço maior envolvente, não na qualidade de sujeito inextenso, mas mediante o próprio corpo como forma espacial.
5. Espaço e Tempo. Merleau-Ponty utiliza o termo habitar para designar a relação do homem com o espaço e o tempo: "O corpo habita o espaço e o tempo". Nesta frase, o termo habitar é utilizado juntamente com o conceito de être engagé, com o objectivo de rejeitar a ideia de um sujeito carente de mundo. A noção de espaço nocturno por oposição ao espaço diurno ajuda a esclarecer a relação do homem com o espaço: "Quando o mundo dos objectos claros e articulados se encontra abolido, o nosso ser perceptivo, amputado do seu mundo, desenha uma espacialidade sem coisas. É isso que acontece à noite. Ela não é um objecto diante de mim, ela envolve-me, penetra por todos os meus sentidos, sufoca as minhas recordações, quase apaga a minha identidade pessoal. Já não estou mais entrincheirado no meu posto perceptivo para dali ver desfilarem, à distância, os perfis dos objectos. A noite é sem perfis, toca-me ela mesma, e a sua unidade é a unidade mística do "mana". Até mesmo gritos ou uma luz distante só a povoam vagamente. Ela é animada na sua totalidade. É pura profundidade sem planos, sem superfícies, sem distâncias" (Merleau-Ponty). Tal como Minkowski, Merleau-Ponty recorre ao conceito de mana para caracterizar a participação mística na noite, que quase anula a nossa identidade pessoal, pelo facto de abolir a cisão existente entre sujeito e objecto. Na noite, o homem funde-se com o espaço que o envolve e o eu mistura-se com a obscuridade. Por isso, Bachelard disse que as noites não têm história nem futuro: «O sonho da noite não nos pertence. Não é um bem nosso. É, em relação a nós, um raptor, o mais desconcertante dos raptores: rapta o nosso ser". Na metafísica da noite e nos sonhos nocturnos, o sujeito perde o seu ser. Ao contrário dos sonhos diurnos, os sonhos nocturnos "são sonhos sem sujeito": "ao passo que o sonhador do sonho nocturno é uma sombra que perdeu o próprio eu, o sonhador do devaneio, se for um pouco filósofo, pode, no centro do seu eu sonhador, formular um cogito. Noutras palavras, o devaneio é uma actividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador do devaneio está presente no seu devaneio".
Para Merleau-Ponty, o homem ou o eu habitam no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo, assim como o sentido habita na palavra e no signo e o anímico expresso, na expressão. Todos estes usos do termo habitar apontam para a singular intimidade da relação mediante a qual algo anímico ou espiritual está inserido e amalgamado com algo espacial, e esta relação está indirectamente ligada a expressões como estar encarnado, être engagé e outras similares. A espacialidade originária de que fala Merleau-Ponty não é uma estrutura espacial a priori, mas a forma da espacialidade que corresponde a um estado originário do sujeito humano, a partir da qual se desenvolvem as restantes modificações da espacialidade. Se a encarnação é, como diz G. Marcel, "a situação de um ser que aparece unido a um corpo", então Merleau-Ponty pode afirmar que o homem "habita no seu corpo". Esta é uma definição antropológica geral do homem que possibilita pensar as suas relações com o espaço.
No pensamento não-tematizado do habitar de Merleau-Ponty, a relação do homem com o espaço ou a sua atitude face ao espaço manifestou-se de diversas formas. Estas não se excluem mutuamente e, dado tenderem a sobrepor-se, podem ser encaradas como modificações da espacialidade humana. De modo esquemático, podemos apresentá-las deste modo:
1. Em primeiro lugar, temos a confiança ingénua no espaço, o estado infantil de segurança, que na vida ulterior pode prolongar-se num estado de amparo natural ou irreflexivo na casa e na pátria. O homem está aqui amalgamado com o seu espaço e encarna-o de modo imediato. A topofilia de Bachelard analisou as imagens do espaço feliz, sem levar em consideração os espaços de hostilidade e de luta. Porém, este privilegiar dos espaços felizes em detrimento dos espaços de ódio é justificado pelo facto do espaço feliz ser o espaço originário, no sentido da casa ser o primeiro mundo da existência humana. Só posteriormente, quando o homem é lançado para fora da casa natal, é que se forma a experiência do espaço hostil.
2. Em segundo lugar, temos o espaço do apátrida ou a carência de habitação. O espaço revela-se aqui no seu carácter estranho e tenebroso, onde o homem se encontra perdido. Os sem-abrigo são seres sem lar, isto é, seres expulsos do lar e lançados nos espaços perigosos das ruas das grandes metrópoles. Estes espaços hostis e os espaços felizes são modificações antitéticas da espacialidade. Os sem-abrigo que vagueiam pelas nossas cidades foram destituídos do estatuto de humanidade e, por isso, já não são "homens", os quais, na linguagem capitalista, significam "contribuintes". Isto significa que o homem só pode ser verdadeiramente homem quando tem um lar, uma casa. O fugitivo leva, qual vagabundo, uma vida errante e intranquila, condenada ao desenraizamento ou, como Bachelard prefere dizer, à fragmentação: o fugitivo ou, como lhe chama Bachelard, a "alma apátrida" dispersa-se e perde-se no anonimato, na desordem, nos vícios e nas compulsões da grande cidade. A sua vida torna-se fragmentada, "fragmentadora fora de nós e em nós". A casa possibilita ao homem um enraizamento mais profundo na vida e constitui um elemento de estabilidade: "Multiplica os seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso". A casa é capaz de recolher o disperso e conduzir o homem ao acolhimento.
3. Em terceiro lugar, deste estado de carência de habitação ou de sem-abrigo deriva a tarefa de refazer o amparo ou o abrigo mediante a construção de uma casa. Deste modo, surge um espaço interior, protector, separado do mundo externo. O espaço ameaçador não desaparece, embora seja deslocado do centro para a periferia. Segundo Bloch, o edifício é o espaço feito para o homem, absolutamente aberto ao futuro do homem novo. A utopia do espaço arquitectónico é, na sua própria qualidade, uma "utopia da terra": os corpos e as casas estão integrados na totalidade terrestre e infiltram-se com a sua própria utopia na utopia geográfica: "O Eldorado-Éden engloba, com diz Bloch, todas as outras utopias do fundamento de um mundo melhor".
4. Contudo, dado a casa criada pelo homem poder ser atacada e o espaço ameaçador continuar a insinuar-se sigilosamente dentro da casa, a última tarefa consiste em superar a radicação tenaz num recinto fixo e recuperar um último amparo num espaço que já não é o espaço próprio fundado pelo homem (a casa), mas sim o vasto espaço em geral. Deste modo, supera-se um amparo aparente, que se aferra tenazmente à sua aparência, artificialmente criado e sempre falaz, para lograr um amparo distinto, aberto, no qual a espacialidade ingénua pode ser reconstruída num plano superior. Este amparo aberto e superior é certamente a natureza ou a Terra: o resguardo da quadratura (Heidegger).
Estas quatro formas modificadoras da espacialidade da vida humana sobrepõem-se num sistema de estratos ou níveis ricamente estruturado. Porém, a relação do homem com o espaço exige do homem um esforço para existir. A verdadeira forma da vida humana no espaço é o habitar, mas o homem só pode captar e realizar o habitar através de um esforço total do seu ser, ou, como diz Heidegger, "os homens devem aprender a habitar". A tarefa do autêntico habitar estrutura-se numa tripla direcção: O primeiro imperativo é agir contra a condição do apátrida, própria do fugitivo e do aventureiro, que vagueiam sem descanso no espaço. Este imperativo impõe a necessidade de instalar-se num lugar determinado, criar raízes nesse lugar e construir um espaço próprio de abrigo. Os outros dois imperativos baseiam-se no perigo de errar, dentro deste espaço próprio, no autêntico modo de habitar. O segundo imperativo é dirigido contra o perigo de isolar-se dentro do espaço interior. Por isso, exige a inclusão plena na vida do espaço externo ameaçador e perigoso. Só nesta tensão entre os espaços felizes e os espaços de ódio (Bachelard) é que a vida humana pode alcançar a sua plenitude. Mas, para que isso ocorra, é necessário superar a crença ingénua na solidez da própria casa e abrir as portas da casa ao grande espaço, de modo a que este perca o seu carácter perigoso e se torne, também ele, um espaço acolhedor. O terceiro imperativo consiste em confiar nesse grande todo que é o espaço e em partilhá-lo com todos os seus vizinhos.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Condição Humana e Psiquiatria Interpessoal

Harry Stack Sullivan definiu a psiquiatria de modo a distanciar-se do modelo pulsional de Freud e, ao mesmo tempo, a avançar com um modelo relacional: "O campo da psiquiatria é o campo das relações interpessoais; uma personalidade nunca pode ser isolada do complexo das relações interpessoais nas quais a pessoa vive e tem o seu ser". Com esta definição de psiquiatria, Sullivan abraça a concepção da condição humana defendida por Rousseau, Hegel e Marx, segundo a qual a natureza humana só pode ser realizada no relacionamento, na interacção e na participação com os outros. Em oposição à concepção individualista de Freud e de Hobbes, Sullivan procura a realização humana no estabelecimento e na manutenção de relações com os outros: o homem individual é inconcebível, porque não há natureza humana fora da sociedade, como o demonstra facilmente a fenomenologia da experiência infantil. Sem a mãe ou outro substituto maternal para lhe satisfazer as necessidades, o bebé é inconcebível. A própria natureza prematura (Portmann) e incompleta (Bolk) do ser humano leva-o a estabelecer relações com os outros e é somente no campo destas interacções que o homem se torna humano.
As pessoas são motivadas por necessidades e Sullivan distingue duas categorias amplas de necessidades: as necessidades de satisfação e as necessidades de segurança. Ambas as categorias são relacionais: operam no campo interpessoal e estão intrinsecamente ligadas às relações entre o self e os outros. As necessidades de satisfação incluem as necessidades ligadas à regulação química da interacção entre o organismo e o ambiente, as necessidades de contacto emocional com os outros e as necessidades ligadas ao exercício livre de capacidades e funções, tais como o jogo e a auto-expressão. Como ser prematuro e não-completo, o bebé não pode satisfazer as suas próprias necessidades e, por isso, precisa de outras pessoas para cuidar das suas necessidades. O teorema da ternura é a expressão usada por Sullivan para explicar a maneira pela qual a expressão das necessidades do bebé induz à integração de uma interacção com a mãe que lhe presta assistência e cuidados maternais: o bebé expressa a sua necessidade, a qual desperta na mãe uma necessidade complementar que a impele a cuidar do seu filho. As necessidades de satisfação funcionam como tendências integradoras que sofrem diversas transformações durante o curso do desenvolvimento. O fracasso na satisfação destas necessidades interpessoais pode resultar na solidão, a mais dolorosa das experiências humanas.
Contudo, o fluir da vida e a integração bem-sucedida das situações é constantemente ameaçada pela ansiedade que, no bebé, é idêntica ao medo. A ansiedade não tem nada a ver com o bebé em si: este limita-se a captá-la nas pessoas que o rodeiam. Sullivan usa a expressão ligação empática para designar este processo de transmissão da ansiedade. Quando capta a ansiedade na sua mãe, o bebé fica muito aflito e muito ansioso, criando mais ansiedade na sua figura maternal que, por sua vez, cria mais ansiedade na criança. A primeira discriminação aprendida pelo bebé é entre estados não-ansiosos e estados ansiosos. Para Sullivan, a presença ou a ausência de ansiedade maternal é o factor que determina a presença ou a ausência de ansiedade no bebé e, no caso de estar presente na relação mãe/bebé, o seu poder pode acompanhar toda a vida deste novo ser vivo. Esta primeira discriminação é denominada boa mãe e má mãe, respectivamente: ambas são personificações compostas, a primeira por experiências tenras e não-ansiosas com todos os outros significativos (Mead) que interagem com a criança, e a segunda por experiências ansiosas com esses outros significativos. O começo da autoconsciência coincide com a precipitação desta primeira discriminação entre tensões e euforia (boa mãe) e períodos recorrentes aterrorizantes de ansiedade (má mãe), que são «percebidos» inicialmente como dois estados de ser difusos e indiferenciados, nos quais as imagens do self e as imagens dos outros estão unidas. Isto significa que o bebé não tem qualquer existência psicológica antes do seu «enquadramento» nas interacções com aquelas pessoas que cuidam das suas necessidades. A criança descobre-se a si mesma, bem como o objecto, através de um processo de desenvolvimento complexo, gradual e dependente do amadurecimento das suas capacidades cognitivas, no decorrer do qual se forma o self considerado como uma organização complexa da experiência derivada das interacções da criança com os outros significativos: "O sistema do self (...) é uma organização da experiência para evitar estados crescentes de ansiedade" (Sullivan).
Com a primeira experiência de ansiedade, a necessidade de segurança torna-se a preocupação predominante das capacidades em desenvolvimento do bebé e continua a ser assim durante toda a sua vida. Para controlar a ansiedade da mãe e, portanto, a sua própria ansiedade, a criança começa a desenvolver um conjunto complexo de processos que exigem a configuração constritiva das suas experiências e o bloqueio do acesso à consciência de certas dimensões nocivas destas experiências. O amadurecimento das capacidades cognitivas permite à criança começar a antecipar e a ligar o seu comportamento ao estado afectivo da mãe e, com base na primeira organização da experiência fundada na distinção entre má mãe e boa mãe, a criança aprende a organizar a sua experiência em função da área do comportamento que conta com a aprovação da mãe e da área do comportamento que torna a mãe mais ansiosa. Sullivan usa a expressão good-me para designar a área da experiência que evoca mais ternura e menos ansiedade na mãe, tornando a criança também menos ansiosa, e a expressão bad-me, para referir a área da experiência que provoca mais ansiedade na mãe, tornando a criança também mais ansiosa. Not-me é a expressão usada para designar as áreas da personalidade que evocam intensa ansiedade na mãe e, através da ligação empática, criam intensa ansiedade no bebé. As experiências good-me são acompanhadas por um senso de segurança e de relaxamento, as experiências bad-me evocam ansiedade crescente e as experiências not-me envolvem intensa ansiedade. O sistema do self utiliza esta organização rudimentar da experiência para controlar a ansiedade, tentando limitar a consciência ao conteúdo da experiência good-me, e, à medida que a criança amadurece, começa a utilizar um jogo complexo de processos, as chamadas operações de segurança, entre as quais se destacam a evocação de outros fictícios e as interacções paratáxicas, cujo funcionamento consiste em distrair a atenção do ponto de ansiedade, levando-a para outro conteúdo mental mais fora de perigo e mais seguro, de modo a dar um senso ilusório de poder.
Na teoria interpessoal de Sullivan, a vida é vivida na dialéctica entre a necessidade de satisfação e a necessidade de segurança. As experiências que requerem necessidades de satisfação são essencialmente "sem self" e, por isso, não exigem nenhuma autoreflexão, auto-engrandecimento ou auto-organização específica. A vida fundada na satisfação de necessidades flui tout court. Porém, a ansiedade interrompe constantemente este fluxo da vida e, devido ao nosso terror fóbico da ansiedade, um legado da primeira infância, a ansiedade desperta a necessidade de segurança. A busca de segurança é levada a cabo e mediada pelas operações do self, o qual dirige a atenção para longe da ansiedade que emerge no fluxo da vida ao criar um senso ilusório de poder e de controle sobre a vida. Todas as operações de segurança começam com o senso do self e o poder do self transmite um senso de falso domínio: as mais diversas formas de operações do self reflectem a qualidade narcisista e fantástica que possibilita ao self reduzir a ansiedade. Cada um de nós é possuído por um self que se estima e se aprecia e que se abriga do questionamento e da crítica e se expande por aprovação, sem levar em conta os nossos desempenhos objectivamente observáveis. O objectivo central da busca de segurança é apoiar e proteger este "self apreciado". Segurança significa, em última análise, ausência de ansiedade.
Isto significa que existe uma tensão contínua entre a busca de satisfações e a busca de segurança: a primeira conduz a integrações simples e construtivas com os outros e ao exercício gratificante das funções, enquanto a segunda leva à desintegração, a integrações não-construtivas com os outros e à fantasia e à ilusão autoconcentradas. Todas as situações interpessoais tendem a gerar conflito entre a pulsão para reafirmar a importância do self e a pulsão que procura satisfação através da cooperação. A busca de segurança tende a expulsar a busca de satisfação. Esta última é relativamente marginal: a nossa atenção é dominada predominantemente pelo prestígio, pelo status e pela importância que as outras pessoas pensam que merecemos. A busca de segurança constitui o princípio motivacional privilegiado da maioria das pessoas. A saúde mental pode ser medida em termos de equilíbrio entre a busca de satisfação e a busca de segurança. A ansiedade sobre a ansiedade está no centro da psicopatologia e constitui o princípio organizacional básico do self, o qual opera somente na necessidade de segurança, com base no princípio de que a ansiedade tem de ser reduzida ou evitada a todo o custo e que o poder, o status e o prestígio são, aos nossos olhos e aos olhos dos outros, o caminho mais amplo e seguro para a segurança. Na teoria de Sullivan, o self desempenha uma função negativa e de preservação: protege o resto da personalidade da ameaça de ansiedade e preserva o senso de segurança no qual as satisfações e os prazeres podem ser desfrutados. Está organizado em torno das configurações relacionais: forma, configura e distorce as suas próprias experiências, comportamentos e auto-percepções para manter e conservar a melhor relação possível com os outros significativos.
J Francisco Saraiva de Sousa