terça-feira, 30 de setembro de 2008

Prós e Contras: Divórcio sem Culpa

Hoje (29 de Setembro de 2008) "Prós e Contras" regressou à Casa do Artista, com um novo visual, para debater a "nova lei do divórcio", que está a produzir uma "fractura ideológica", mais aparente do que real, na sociedade portuguesa. O primeiro diploma desta nova lei tinha sido alvo do veto político do Presidente da República e o presente diploma procura salvaguardar algumas das reservas apresentadas. O debate colocou frente-a-frente os que concordam e os que discordam com a nova lei do divórcio, com o objectivo de esclarecer o que muda (ou vai mudar) com a nova lei. Porém, na apresentação do tema, insinua-se ardilosa e/ou ironicamente que o que muda (ou vai mudar) é simplesmente o "fim da culpa", portanto, a possibilidade de um casal ter acesso garantido e automático a um "divórcio sem culpa". Na prática, com a eliminação da noção jurídica de culpa, um dos membros do casal pode romper a qualquer momento a relação e o compromisso assumidos livremente com o seu cônjuge quando decidiram casar-se. Daqui resulta a eliminação automática dos divórcios litigiosos: as pessoas são livres para casarem e livres para se separarem. Aparentemente, este fenómeno deveria facilitar a vida dos juízes, embora os outros assuntos fiquem pendentes e entregues à morosidade dos tribunais.
Numa conferência parlamentar, decorrida na Assembleia da República (26 de Setembro), o
Primeiro-Ministro, José Sócrates, classificou a nova lei do divórcio como uma lei "progressista", sem "experimentalismos sociais", sublinhando, como aspectos essenciais do diploma, a eliminação da "noção de culpa" como fundamento dos "divórcios litigiosos" ou "separações sem acordo", e a substituição da expressão "poder paternal" por "responsabilidades parentais", bem como o estabelecimento de "crime de desobediência" para o incumprimento de responsabilidades por parte de um dos elementos do casal. Para o Primeiro-Ministro, a nova lei do divórcio é “uma lei que se insere no conjunto de leis progressistas que o PS tem apresentado para a igualdade de género e a modernidade social". Aqui "igualdade de género" significa "igualdade" de oportunidades; caso contrário, estaríamos diante de uma noção queer de género que nega o que não pode ser negado: a diferença sexual.
Assisti a este debate sem preconceitos favoráveis em relação a nenhuma das partes, até porque não aprecio muito a expressão "divórcio sem culpa". Por isso, escutei atentamente os prós e os contras e, apesar de lamentar a falta de clarificação conceptual, cheguei ao fim a aceitar a nova lei do divórcio, com muitas e muitas reservas. Quando o Presidente da República vetou o primeiro diploma, algumas pessoas recorreram aos meios de comunicação social para dizerem que existia uma fractura ideológica entre o Presidente Cavaco Silva e a Assembleia da República no que diz respeito à concepção de família: o Presidente defendia supostamente a chamada família tradicional e os defensores do diploma uma concepção mais de acordo com o espírito dos chamados tempos modernos que, como sabemos, são dominados pela fuga às responsabilidades e aos deveres e por formas plurais de promiscuidade sexual. Se a noção de pluralismos familiares avançada por um dos presentes no palco a favor da nova lei abrange estas formas de irresponsabilidade sexual e familiar, bem como o hedonismo materialista que lhes é subjacente, então precisamos estar preocupados com a igualdade sexual, a regulação da sexualidade e o futuro da família, porque estes padrões normativos estão presentes em todos os tipos de sociedades estudados por George P. Murdock ou por Lévi-Strauss. Como "grupo social que se caracteriza pela residência em comum, pela cooperação económica e pela reprodução", a família constitui uma "instituição" universal e fundamental de todas as sociedades estudadas interculturalmente e ao longo do tempo histórico. A família não é, pois, uma mera construção social, mas uma realidade biológica primordial que se manifesta desde logo nos vínculos que se estabelecem entre a mãe e o seus filhos, de resto o vínculo primordial. Qualquer medida ou fenómeno social que procure desestabilizar a família neste sentido biológico é má e deve ser combatida, não só porque ameaça a estabilidade social, mas também porque coloca em perigo a sua função educativa, onde se incluem os cuidados parentais, e a sua função psico-afectiva, aquela que o PS identifica com o espaço dos afectos. A família é, portanto, uma realidade multidimensional e, como tal, não deve ser reduzida a uma das suas dimensões em detrimento das outras. A lei parece não pôr em questão este carácter multifacetado da família que diz proteger melhor do que as anteriores leis, nomeadamente quando realça a noção de responsabilidades parentais; o seu único fim é eliminar os divórcios litigiosos, facilitando o rompimento da unidade conjugal, o egoísmo do casal, sem deixar os outros aspectos desregulamentados.
Conforme disse o deputado do PS, a nova lei pretende iluminar e ajudar a criar uma nova mentalidade: o Direito pode e deve antecipar novas atitudes das pessoas face a determinados assuntos, contrariando algumas práticas frequentes mas pouco saudáveis. A fractura diz mais respeito ao suplemento moral das ideologias jurídicas em disputa: o conceito de família dos que são contra é patrimonial, enquanto o dos que são a favor é mais afectivo. Grosso modo, a primeira perspectiva corresponde à família tradicional, na qual o casal é apenas uma parte do sistema familiar, e a segunda, ao casal, casado ou não, dos nossos dias. Ambos esquecem que até mesmo as relações puras de Giddens, baseadas na intimidade, estão sujeitas a negociações permanentes e desgastantes entre os membros dos casais. Cabe ao Estado garantir e promover a estabilidade das relações familiares, de modo a tornar (idealmente) o divórcio uma prática cada vez mais remota. Facilitar o divórcio sem adoptar outras medidas de protecção da família é sempre uma medida imprevisível. O terrorismo íntimo, a forma mais nefasta de violência doméstica, está presente em qualquer tipo de relação: os pares de namorados novos tendem a ter relações terroristas, pela simples razão de um dos parceiros ser traidor, isto é, não manter o compromisso de fidelidade conjugal. O telemóvel e a Internet facilitam estas infidelidades on-line e/ou off-line que devoram relações a um ritmo alucinante.
Anthony Giddens dedicou alguns estudos à família na era da globalização e as transformações que descreve podem ser agrupadas sob uma única designação: homossexualização da vida familiar e social. Aquilo que Giddens descreve enfaticamente como a família tradicional é uma espécie de papão sociológico, porque, na era da globalização, ainda é esta a família que ajuda a manter a sociedade e a proteger os seus membros de um destino miserável. A noção de que o casal, casado ou não, se tornou o centro da existência da família deriva da prática gay que, sem protecção legal e num clima de perseguição social, consiste em formar "uniões" baseadas na ligação emocional e na intimidade. No universo gay, a ligação emocional começa por ser o meio de estabelecer a relação e, depois, é a principal razão para ela ser mantida. Se "acasalamento" e "desacasalamento" fornecem uma descrição mais precisa da vida pessoal do que "casamento e família", como afirma Giddens, então este padrão de ligações sucessivas, a monogamia serial, já era uma prática gay muito antes de começar a ser adoptada pelos «casais» heterossexuais: os laços de matrimónio gay sempre foram baseados no amor e na atracção sexual e não no casamento visto como um "estado da natureza", isto é, um destino. Segundo Giddens, "para nós (homens da era da globalização), a pergunta mais importante já não é: «Você é casado?». Agora, é melhor perguntar: «Tem uma relação?»". A noção de relação substitui a noção de casamento: aquilo que sempre foi uma prática gay está a converter-se numa prática de ligação heterossexual, talvez devido à libertação das mulheres que, na realidade, se tornou sinónimo de mudar facilmente de parceiro sexual, portanto, de libertinagem sexual. Porém, muitos homens gay não estão satisfeitos com o seu tipo de relação e lutam pelo reconhecimento legal dos casamentos homossexuais, alegando razões que se prendem ao aspecto económico e patrimonial da chamada família tradicional, incluindo o direito à adopção. Isto significa que a relação encarada unicamente do ponto de vista emocional, como ligação afectiva assente no amor, na intimidade e no compromisso constantemente renegociado, não satisfaz a própria afectividade. Se a lei não zelar de algum modo pela estabilidade da relação, esta tende a converter-se em ligação sexual sem compromissos: a relação dura o tempo que durar a atracção sexual. O padrão de acasalamento e desacasalamento revela assim o seu verdadeiro rosto: promiscuidade sexual que não satisfaz emocionalmente ninguém, dado ser um padrão destrutivo. As relações sexuais entregues à animalidade do homem adoptam o padrão do consumismo voraz de sexo diversificado e, num tal contexto degradante e de decadência moral, não há lugar para os filhos que, devido a razões económicas, começam a ser vistos como descartáveis, isto é, não desejáveis: as responsabilidades parentais tendem a evaporar-se. Apesar de serem fenómenos muito modernos, as relações puras, que já não são desejadas por muitos casais gay, os seus modelos originários, não são social e culturalmente desejáveis, porque, nas épocas em que a compulsão sexual se tornou um objectivo em si mesmo, a cultura degradou-se e acabou por perecer. Em vez de serem um sinal de modernidade, constituem um sinal de decadência, irresponsavelmente abraçado por uma certa esquerda sem ideias e sem projectos. Numa sociedade metabolicamente reduzida que cultiva o sexo pelo sexo, o mundo não se renova: a mortalidade dos "eternos jovens" é adiada e a natalidade torna-se um obstáculo à reprodução cíclica do desejo sexual permanente.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 27 de setembro de 2008

Stephen Toulmin: Lógica e Jurisprudência

«Para quebrar o poder dos antigos modelos e analogias (da lógica), vamos tratar de nos munir com um novo modelo. A lógica ocupa-se da solidez das alegações que fazemos, da solidez dos fundamentos que produzimos para apoiar as nossas alegações, da firmeza do suporte que lhes damos, ou, para trocar de metáfora, com o tipo de precedente (no sentido em que os advogados usam este termo) que apresentamos em defesa das nossas alegações. A analogia com o Direito, implícita neste modo de expor o problema, pode, desta vez, ser muito útil. Assim, deixemos de lado a Psicologia, a Sociologia, a tecnologia e a Matemática, ignoremos os ecos da engenharia estrutural e da collage nas palavras "fundamentos" e "suporte", e tomemos a jurisprudência como o nosso modelo. A lógica (pode-se dizer) é jurisprudência generalizada. Os argumentos podem ser comparados a processos judiciais; e as alegações que fazemos e os argumentos que usamos para "defendê-las", em contextos extra-legais, são como as alegações que as partes apresentam nos tribunais; e os casos que oferecemos para provar cada uma das alegações são jurisprudência consagrada, para a lógica, num caso, e para o Direito, no outro». (Stephen Toulmin)
Em 1800, nas suas famosas lições sobre lógica (semestre de Inverno de 1765-1766), Immanuel Kant definiu a lógica nestes termos: "A lógica é uma ciência, não segundo a matéria, mas segundo a mera forma; uma ciência a priori das leis necessárias do pensamento, não relativamente a objectos particulares, mas (relativamente) a todos os objectos em geral; portanto, uma ciência do uso correcto do entendimento e da razão em geral, não subjectivamente, quer dizer, não segundo princípios empíricos (psicológicos), sobre a maneira como pensa o entendimento, mas sim objectivamente, isto é, segundo princípios a priori de como ele deve pensar". Definida como ciência das leis gerais necessárias do entendimento e da razão em geral, a lógica é considerada como um fundamento para todas as outras ciências e como a propedêutica de todo o uso do entendimento, que não pode ser vista como um organon das ciências, porque se abstrai inteiramente de todos os objectos, e que constitui um cânon, porque trata das leis necessárias do pensamento, sem as quais não seria possível fazer um uso correcto do entendimento e da razão. Kant não aceita reduzir a lógica à mera crítica, a arte de disputar, "utilizada por certos espíritos tagarelas, com o fim de produzir artificiosamente toda a espécie de aparência", de resto um uso da lógica "indigno de um filósofo", porque, antes de poder ser crítica, a lógica é um cânon que poderá ser usado posteriormente como "princípio da avaliação de todo o uso do entendimento em geral", mas apenas no que se refere à "sua correcção" meramente formal. Ora, dado pensar que a lógica incorpora as formas de pensamento, sem as quais não podemos pensar correctamente, Kant foi levado a depositar uma grande confiança na lógica aristotélica: "A Lógica actual deriva da Analítica de Aristóteles", "o pai da Lógica", que, desde então, não sofreu "mais alterações", e, "nos nossos dias", continua Kant, "nenhum lógico grangeou fama, mas também não precisamos de invenções novas para a Lógica, porque esta contém tão somente a forma do pensamento". Os lógicos nunca perdoaram Kant por ter negado "uma história" da lógica (Robert Blanché), embora I.M. Bochenski que dedicou toda a sua vida de trabalho a escrever uma história da lógica formal tenha dado razão a Kant: o cálculo não permitiu à lógica matemática "superar todas as formas mais antigas da Lógica" e, mais adiante, Bochenski afirma mesmo que o cálculo dispensa os lógicos matemáticos de "um trabalho mental que lhes seria fundamental". Isto significa que a história da lógica não é a exposição progressiva de lógicas distintas, mas a exposição de "formas distintas de uma Lógica".
A obra de Stephen Toulmin (1958), The Uses of Argument, é a tentativa de impugnar o programa lógico, assente na ideia aristotélica de que a lógica deve ser uma ciência formal (episteme), do qual decorrem dois efeitos "nefastos" para a própria lógica e para a Filosofia: 1) o desvio da atenção do problema da aplicação da lógica e 2) a substituição das questões relativas à aplicação da lógica por questões provavelmente insolúveis e comprovadamente inconclusivas. Esta impugnação do programa lógico decorre, conforme relata Toulmin, da evolução das posições de Wittgenstein. O seu problema principal era a explicação das relações entre a Proposição (Satz) e o Estado de Coisas (Tatsatche), entre a Linguagem e a Realidade, embora Wittgenstein tenha focado fundamentalmente questões sobre sentido e linguagem. Numa primeira fase, a função primordial da linguagem era, para Wittgenstein, "representar" (darstellen) a realidade, isto é, fornecer imagens (Bilder) de factos. Porém, sem mudar a questão central das suas pesquisas filosóficas, "Como é antes de mais possível uma linguagem com sentido?", Wittgenstein abandona mais tarde a primazia das proposições em favor dos jogos de linguagem, que, caracterizados em termos comportamentalistas, adquirem contextualmente sentido, em virtude da sua inserção em formas de vida. Quando recusou a existência de uma linguagem privada, Wittgenstein mais não fez do que rejeitar a ideia de que a produção de sentido ocorre no mundo privado da experiência individual. Em vez disso, Wittgenstein defende a ideia de que a produção de sentido ocorre no mundo comunitário e interpessoal das interacções públicas, "sendo este evidentemente o mundo em que já John Dewey, George Herbert Mead, Miguel de Unamuno e Mikhail Bakthin" situavam o sentido. A consequência mais profunda desta concepção foi precisamente a desvalorização do papel da validade formal no conhecimento humano e a restauração da retórica por Perelman e por Toulmin: as "questões sobre as circunstâncias em que os argumentos são apresentados, ou sobre a audiência a que se dirigem, numa palavra, (as) questões «retóricas», desalojaram (as) questões de validade formal enquanto preocupação primária da filosofia, mesmo da filosofia da ciência". Segundo Toulmin, a substituição das proposições por elocuções, bem patente na filosofia da linguagem de Bakthin, além de aplanar "o caminho para uma reconciliação da Lógica com a Retórica", implica duas outras transições: da teoria para a prática e da episteme para a phronesis. Qualquer uma destas transições, aliás aspectos de uma mesma deslocação cultural, "significa ir além das estritas pretensões da racionalidade formal (episteme) para chegar às mais amplas pretensões da razoabilidade humana (phronesis)", segundo a qual "as análises da estrutura das teorias científicas já não são suficientes: agora precisamos de dar atenção à história, e mesmo à etnografia da actividade científica. A própria actividade de «ser um cientista» constitui uma Lebensform (ou forma de vida); e, uma vez que as formas de vida têm as suas próprias histórias e afiliações, isto significa que a análise filosófica da argumentação em ciências naturais deve ser recontextualizada".
O desenvolvimento da lógica moderna como ciência formal (Kalinowski), na direcção de uma completa autonomia, conduziu-a para longe das questões práticas, situando-a numa tradição cientificista, primeiro cartesiana que conferiu uma importância essencial às intuições evidentes, depois leibniziana que a vincula ao estudo dos cálculos formalizados e axiomatizados: a lógica como estudo teórico "livre de preocupações práticas" e do contexto. Para alcançar este nível de formalização e garantir a sua cientificidade, os lógicos recorreram a diversos modelos ou analogias: a Psicologia foi sempre um modelo implícito para muitos lógicos, a partir do qual a tarefa da lógica é entendida como o estudo das "leis do pensamento", isto é, o estudo dos processos do pensar normal, racional e adequado, com exclusão de todos os argumentos anómalos. Outros lógicos preferiram ver a lógica como um desenvolvimento da Sociologia, definido-a como o estudo não do fenómeno da mente individual, mas dos hábitos e práticas desenvolvidas no decurso da evolução social e transmitidos de geração em geração através dos pais e dos professores (Dewey). Outra via é a que compara a lógica com a Medicina: ambas são simultaneamente ciências e artes. A lógica deixa de ser vista como a science de la pensée ou a science conjectionis e passa a ser encarada como art de penser ou ars conjectandi: o seu objectivo não é descobrir leis do pensamento, mas leis ou regras de argumento, capazes de orientar e fornecer sugestões para quem deseje argumentar sólida e correctamente. Neste caso, o modelo implícito não é o da lógica como ciência explanatória, mas o da lógica como uma Tecnologia. Finalmente, a lógica foi definida como uma ciência objectiva, cujo modelo implícito é a Matemática Pura (Carnap): a lógica estuda as provas analíticas, omitindo as provas dialécticas que apoiam ou se opõem a uma opinião. Com o trabalho teórico levado a cabo por Boole, Morgan, Jevons, Peirce, Schröder, Frege, Peano, Russell e Whitehead, a lógica identifica-se com uma álgebra generalizada, que lhe valeu a designação de lógica matemática. Apesar das vantagens e dos defeitos exibidos por cada uma destas teorias, a questão que lhes é subjacente, a de saber que tipo de ciência é a lógica, leva, segundo Toulmin, a um "impasse", porque é uma questão de teoria lógica, tal como exposta por P.F. Strawson, e não de prática lógica.
Toulmin foca a sua atenção fundamentalmente na avaliação prática dos argumentos e, com o objectivo de apreender se a análise formal lógica teórica tem alguma ligação com aquilo que a crítica racional visa obter, muda de modelo, adoptando o da jurisprudência: a lógica estuda a solidez dos fundamentos que produzimos para apoiar e suportar as nossas alegações. Este paralelo entre a lógica e as práticas do Direito tem duas importantes vantagens: "Uma das principais funções da jurisprudência é garantir que se conserve o que é essencial no processo legal: os procedimentos pelos quais as alegações devem ser apresentadas em juízo, discutidas e estabelecidas, e as categorias segundo as quais se devem apresentar, discutir e estabelecer as alegações". De modo análogo, a investigação de Toulmin visa caracterizar o processo racional: os procedimentos e as categorias mediante os quais podemos discutir e decidir todas as "causas". Aliás, este paralelo não é uma mera analogia, porque "os processos judiciais são apenas um tipo especial de disputa racional, no qual os procedimentos e as regras da argumentação se consolidaram em instituições". Em segundo lugar, este paralelo ajuda a manter no centro do quadro a função crítica da razão. Embora possam não ser sugestões ou generalizações, as regras da lógica "aplicam-se aos homens e aos seus argumentos, não do modo como se aplicam as leis da Psicologia ou as máximas do método, mas como padrões de realização que um homem, quando argumenta, pode alcançar mais plenamente ou menos plenamente, e pelos quais os seus argumentos podem ser julgados. Uma «boa causa», solidamente construída, uma alegação bem fundada ou firmemente apoiada, resistirá à crítica, será «causa» que corresponde ao padrão exigido, para a qual se pode esperar veredicto favorável". Isto significa que aquilo que alegamos fora dos tribunais, as nossas alegações extra-judiciais, deve ser justificado, "não perante os juízes de Sua Majestade, mas diante do Tribunal da Razão". Para Toulmin, as "leis" da lógica não são formais, no sentido de que não dependem da matéria do raciocínio, mas são padrões de realização usados para criticar aquilo que é pensado pelos homens em situações e circunstâncias particulares: a lógica é uma ciência crítica, não é uma ciência natural supostamente livre de contexto. Deste modo, quando se encara a lógica como jurisprudência generalizada, a sua "matéria" é "a prudentia, não apenas do jus, mas, em termos mais gerais, da ratio": tratar a lógica como jurisprudência generalizada e testar as nossas ideias mediante a prática real de avaliação de argumentos foi o contributo fundamental de Toulmin para o actual quadro da teoria filosófica da argumentação que, conforme mostrou Chaïm Perelman, além de ser distinta da lógica deôntica elaborada por G.H. Von Wright, retoma a vertente dialéctica da lógica aristotélica.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O Problema da Realidade

«Por estranho que pareça, (as Ideias da Razão Pura de Kant) têm um significado definido para a nossa prática (quotidiana). Podemos agir como se existisse Deus; sentir como se fossemos livres; considerar a Natureza como se ela andasse cheia de propósitos especiais; fazer planos como se devêssemos ser imortais; e verificamos então que essas palavras determinam uma genuína diferença na nossa vida moral./ O sentimento de realidade pode, de facto, ligar-se de maneira tão robusta ao nosso objecto de crença que toda a nossa vida é polarizada de fio a pavio, por assim dizer, pelo sentido que damos à existência da coisa em que acreditamos, embora dificilmente possamos dizer que essa mesma coisa, para a finalidade de uma descrição definida, esteja presente na nossa mente./ A determinabilidade absoluta da nossa mente por abstracções é um dos factos cardeais da nossa constituição humana./ Todo o conjunto dos nossos exemplos leva a uma conclusão parecida a esta: É como se houvesse na consciência humana um sentido de realidade, um sentimento de presença objectiva, uma percepção do que podemos chamar "alguma coisa ali", mais profunda e mais geral do que qualquer um dos "sentidos" especiais e particulares pelos quais a psicologia actual supõe que as realidades existentes sejam originalmente reveladas». (William James)
Em 1890, William James (1842-1910) publica o seu livro "Princípios de Psicologia", onde logo no início afirma que "a psicologia é a ciência da vida mental, tanto dos seus fenómenos como das suas condições". O termo "fenómenos" é usado para indicar que o objecto de estudo da psicologia (funcional) está presente ou se manifesta na experiência imediata, e o termo "condições" refere-se ao papel primordial desempenhado pelo corpo, em especial pelo cérebro, na vida mental. O ponto focal dos seus interesses reside fundamentalmente na consciência, cuja experiência James recusa reduzir artificialmente a supostos elementos, como faz a abordagem estrutural de Wundt: a experiência consciente não é um grupo ou uma mistura de elementos, a chamada falácia do psicólogo, mas uma unidade, um processo, isto é, uma experiência total em constante mudança. Segundo James, a consciência flui como um rio ou uma corrente e, sendo um fluxo de consciência, não pode ser subdividida em elementos temporariamente distintos ou discretos. Além do fluxo de consciência (1), James destaca outras características da consciência: a consciência é pessoal ou individual, isto é, pertence a uma única pessoa (2); é sensivelmente contínua, isto é, não há rupturas claras no fluxo de consciência, e, quando irrompem hiatos temporais tais como o sono, a identidade individual é sempre mantida, porque, ao acordar, a pessoa estabelece facilmente uma ligação com o fluxo de consciência que estava em andamento antes da interrupção (3); é selectiva, isto é, a mente filtra os muitos estímulos a que está exposta e selecciona aqueles que são relevantes para a sua experiência, prestando-lhes atenção, de modo a operar de maneira lógica e percorrer racionalmente até ao fim uma série de ideias (4); e, finalmente, ocorre tanto de uma forma transitiva (estados limítrofes de consciência) como substantiva (conteúdos claros e estáveis), isto é, as ideias «entram» na consciência como transitivas, marginais quanto à atenção e frequentemente fugidias, podendo passar à forma substantiva, adquirindo maior estabilidade (5). James destaca outros dois aspectos fundamentais da vida mental: a consciência não é distinta do corpo (6), o que lhe permitiu rejeitar todas as teorias da mente/corpo e elaborar a sua própria perspectiva (1909), e tem uma finalidade ou utilidade biológica, a de tornar o homem um animal melhor adaptado ao meio e mais apto para escolher (7). A escolha consciente é distinta do hábito, involuntário e inconsciente: a consciência envolve-se sempre que surge um novo problema ou sempre que é necessário operar um novo ajustamento.
Num dos capítulos mais importantes da obra, James coloca a questão que nos interessa: "Sob que circunstâncias consideramos as coisas como sendo reais?" A partir desta questão James desenvolve a sua teoria das diversas ordens de realidade ou subuniversos. Segundo James, toda a distinção entre o real e o irreal baseia-se em dois «factos» mentais: todos somos propensos a pensar de modo diferente sobre o mesmo objecto e, quando o fazemos, podemos escolher o modo de pensar a que queremos aderir e ignorar outros modos de pensar. Isto significa que a origem e a fonte de toda a realidade residem sempre em nós: qualquer objecto que não for refutado é, ipso facto, uma realidade que acreditamos e pressupomos «absoluta». Um objecto pensado a partir de outro não pode ser «desmentido», a menos que se inicie uma controvérsia afirmando algo inaceitável sobre o primeiro, e, neste caso, o proponente deve escolher o objecto a que vai dar o seu assentimento. Segundo James, todas as proposições, sejam atributivas ou existenciais, são objecto de crença pelo próprio facto de serem concebidas, afirmando-se que os seus termos são os mesmos dessas outras proposições. A disputa só emerge quando essas proposições entram em conflito com outras proposições nas quais também acreditamos. De modo simples, podemos afirmar que, para James, o real é aquilo em que acreditamos. Charles S. Peirce já tinha desenvolvido uma teoria idêntica: "A realidade, como qualquer outra qualidade, consiste nos efeitos sensíveis peculiares que as coisas que nela tomam parte produzem. O único efeito que as coisas reais têm é causar crença, pois todas as sensações que elas excitam emergem na consciência sob a forma de crenças". Porém, de modo diferente de James, Peirce é tentado pelo positivismo, isto é, pela ideia da superioridade do conhecimento científico: "A questão, portanto, é como distinguir a crença verdadeira (ou crença no real) da crença falsa (ou crença em ficção). (...) As ideias de verdade ou falsidade, no seu desenvolvimento pleno, pertencem exclusivamente ao método experimental de estabelecimento de opinião./ A opinião que está destinada a merecer o acordo de todos os que investigam é o que nós chamamos verdade. O objecto representado nesta opinião é o real. Eis como eu explicaria a realidade".
Ora, se a origem e a fonte de toda a realidade residem em nós, então existe um número considerável, provavelmente infinito, de diferentes ordens de realidade, às quais James chama subuniversos. Cada uma destas ordens tem o seu estilo peculiar de existência, encontra-se separada das outras e implica o seu próprio estilo cognitivo e formas peculiares de consciência. James refere algumas dessas ordens de realidade: o mundo dos sentidos ou das "coisas físicas", que são experienciadas pelo senso comum e que constitui a realidade vital predominante, na qual estamos mergulhados desde a concepção e nascimento até à morte; o mundo da ciência; o mundo das relações ideais; o mundo dos ídolos da tribo, em especial o das ideologias; os mundos sobrenaturais da mitologia e da religião; os numerosos mundos da opinião individual; e, finalmente, os numerosos mundos da pura fantasia e da loucura. Todo o objecto em que pensamos refere-se, pelo menos, a um destes mundos ou a outro mundo que podemos acrescentar à lista de subuniversos. Cada um destes mundos, enquanto desperta a nossa atenção, é real à sua própria maneira, porque, como já dizia Aristóteles, há muitas maneiras de dizer o ser, e, qualquer que seja a sua relação com a nossa mente, se não houver uma relação mais forte com a qual entre em conflito, será suficiente para tornar este objecto real. James captou o sentido da realidade, mas analisou-o em termos de uma psicologia da crença e da incredulidade. Na peugada de Husserl, para quem "todas as unidades reais são «unidades de significado»", Alfred Schutz prefere falar em âmbitos de sentido ou províncias de sentido, em vez de subuniversos, porque "o que constitui a realidade é o sentido das nossas experiências e não a estrutura ontológica dos objectos". Para Schutz, um âmbito de sentido é "um determinado conjunto das nossas experiências", que exibem um estilo cognitivo específico e que são, a este respeito, coerentes em si mesmas e compatíveis umas com as outras.
A teoria fenomenológica das realidades múltiplas de Schutz, que inspira directa ou indirectamente as actuais teorias de Perter Berger & Thomas Luckmann, de Jerome Bruner ou mesmo de Paul Watzlawick, pode ser resumida em seis teses fundamentais: 1ª) Todos os mundos da lista de James são âmbitos finitos de significado. Isto quer dizer que têm um estilo cognitivo peculiar, que as experiências, no seio de cada um desses mundos, são, no que respeita ao estilo cognitivo, coerentes em si mesmas e compatíveis umas com as outras e que cada um destes mundos pode receber um valor de realidade específico. 2ª) A coerência e a compatibilidade das experiências em relação ao seu estilo cognitivo peculiar subsiste unicamente dentro dos limites do âmbito particular de sentido ao qual pertencem. 3ª) Por isso, quando falamos de âmbitos finitos de sentido, a finitude implica que não podemos referir um desses âmbitos a outro, introduzindo uma fórmula de transformação. A transição de um para outro âmbito de sentido só pode ser efectuada através daquilo a que Kierkegaard chamou um "salto" e a que a antropologia cultural e social chama "choque cultural", que se manifesta na experiência subjectiva de uma comoção. 4ª) A comoção mais não é do que uma modificação radical na tensão da nossa consciência, fundada numa attention à la vie diferente. 5ª) A cada um dos estilos cognitivos peculiares corresponde uma tensão específica da consciência e, por conseguinte, uma epoché específica, uma forma predominante de espontaneidade, uma forma específica de experiência de si mesmo, uma forma específica de sociabilidade e uma perspectiva temporal específica. 6ª) O mundo do executar quotidiano constitui o arquétipo da nossa experiência da realidade e todos os outros âmbitos de sentido podem ser vistos como suas modificações. Isto significa que, diante do mundo comum dotado de uma forte valência ontológica, os outros mundos são "quase-realidades" ou, como diz Bruner, realidades virtuais. A dificuldade que revelam os outros mundos em obter um valor de realidade reside precisamente na linguagem, porque esta pertence, como comunicação, ao mundo do executar intersubjectivo e, por isso, resiste obstinadamente a servir de veículo de significados que transcendam as suas próprias pressuposições. Até mesmo a terminologia científica que procura superar esta dificuldade, dentro do seu limitado campo, não tem conseguido abdicar da linguagem ordinária.
Destes mundos aquele que todos partilhamos é o mundo do senso comum ou, simplesmente, o mundo comum: o seu valor de realidade é imenso, porque é o nosso mundo da vida quotidiana, e, por isso, diante dele, os restantes mundos são meras "províncias" ou meros "anexos" insuficientes para nos orientar na vida. Ou, como diz Alfred Schutz, "o mundo do executar quotidiano é o arquétipo da nossa experiência da realidade e todos os demais âmbitos de sentido podem ser considerados como suas modificações". Até mesmo Karl Popper definiu a ciência e a filosofia como "senso comum esclarecido", retendo o "realismo" do senso comum e rejeitando a sua teoria do conhecimento, a teoria do balde mental (indutivismo), que substitui pela teoria do holofote (dedutivismo). Qualquer dos outros mundos que entre em rota de colisão com o mundo eminente corre o risco de perder credibilidade e plausibilidade. No mundo comum, onde vivemos, donde partimos e ao qual regressamos, embora num único dia a nossa consciência possa passar pelas mais diversas tensões e adoptar as mais diversas atitudes de atenção à vida (Bergson), conduzimos e assumimos a nossa vida sem questionar o seu acervo de conhecimentos e de experiências. O mundo comum é o lar, o berço e o suporte, de toda a realidade, diante da qual até mesmo a "loucura", o mundo da cavalaria, de Dom Quixote ruiu, como mero devaneio retrógrado e saudosista. Alfred Schutz e Hannah Arendt dedicaram muita atenção ao mundo comum, o mundo da vida quotidiana que o homem adulto em estado de vigília que actua nele e sobre ele, entre os seus semelhantes, experimenta, dentro da atitude natural, como uma realidade, e vale a pena retomar as suas perspectivas. Mundo da vida quotidiana significa, segundo Schutz, "o mundo intersubjectivo que existia muito antes do nosso nascimento, experimentado e interpretado por Outros, os nossos predecessores, como um mundo organizado". Este mundo é dado à nossa experiência e está aberto à nossa interpretação, que se baseia num "acervo de experiências" anteriores, nas nossas próprias experiências e nas experiências que nos foram transmitidas pelos nossos pais e mestres, as quais funcionam como um "esquema de referência" sob a forma de "conhecimento à mão". Para a atitude natural, o mundo comum é um mundo de objectos circunscritos, com qualidades definidas, entre os quais nos movemos, que nos resistem e sobre os quais podemos agir. Não é um "mundo privado", como o do devaneio de Bachelard, mas um "mundo intersubjectivo", comum a todos nós mortais, no qual temos um interesse, não teórico, mas profundamente prático: "O mundo da vida quotidiana é, como diz Schutz, o cenário e também o objecto das nossas acções e interacções". Isto significa que o mundo é algo que devemos modificar e mudar através das nossas acções e que também modifica as nossas acções. Além disso, neste mundo do executar quotidiano, existem outros semelhantes com os quais interagimos socialmente: actuamos sobre coisas e sobre os nossos semelhantes, em especial os contemporâneos, de tal modo que eles nos induzem a agir e nós os induzimos a reagir. Estas interacções sociais supõem a comunicação, a qual se funda em actos executados de modo a comunicar com os outros.
Em suma, as características básicas que constituem o estilo cognitivo específico do mundo comum são as seguintes: 1) uma tensão específica da consciência, mais precisamente a atitude alerta que se origina numa plena atenção prestada à vida: a vida quotidiana é experimentada num estado de total vigília; 2) uma epoché específica, a epoché da atitude natural, que consiste em suspender a dúvida na existência do mundo externo e dos seus objectos: a vida quotidiana aparece já objectivada antes da nossa entrada em cena e, por isso, é considerada como normal e evidente; 3) uma forma predominante de espontaneidade, a execução, dotada de sentido, baseada num projecto e caracterizada pela intenção de produzir o estado de coisas projectado mediante movimentos corporais que se inserem no mundo externo: a realidade da vida quotidiana está organizada em torno do "aqui" do meu corpo e do "agora" do meu presente; 4) uma forma específica de experimentar o próprio si mesmo: o si mesmo executante como si mesmo total; 5) uma forma especifica de sociabilidade: a realidade da vida quotidiana constitui um mundo intersubjectivo comum da comunicação e da acção social, no qual participamos com outros homens; e 6) uma perspectiva temporal específica: o tempo padronizado que se origina numa intersecção entre a durée e o tempo cósmico como estrutura temporal universal do mundo intersubjectivo. As nossas experiências do mundo comum partilham este estilo cognitivo e, por isso, podemos encará-lo como real. Na nossa atitude natural, somos induzidos a dar valor de realidade ao mundo comum: as nossas experiências práticas provam a sua unidade e congruência, a sua validade, e a sua realidade parece ser irrefutável, embora este mundo seja histórico e, como tal, capaz de assimilar outros conhecimentos forjados noutros âmbitos de sentido, como mostraram Gramsci e Bakhtin. A realidade do mundo comum é, portanto, para nós, perfeitamente natural.
A atitude natural é a atitude da consciência do senso comum, porque se refere a um mundo que é comum a todos os homens, e o conhecimento do senso comum é o conhecimento que cada um de nós partilha com os outros nas interacções sociais e nas rotinas normais e evidentes da vida quotidiana. Estamos completamente mergulhados desde o nascimento até à morte neste mundo comum e no seu conhecimento de senso comum: os restantes mundos são uma espécie de enclaves, isto é, regiões que pertencem a outros âmbitos de sentido encerradas no âmbito maior do mundo comum. A partir de uma leitura de Kant, Hannah Arendt lembra que o senso comum é mais do que o sentido comum a todos os homens: é "o sentido que nos integra numa comunidade juntamente com os outros, nos torna membros dela e nos habilita a comunicarmos coisas que nos são dadas pelos nossos cinco sentidos privados". Isto significa que "a comunidade entre os homens produz um sentido comum", o senso comum, o qual, como "mãe do juízo", nos permite superar o capricho pessoal em direcção a uma "mentalidade alargada": a validade dos juízos é intersubjectiva. Para Hannah Arendt, "o único atributo do mundo que nos permite avaliar a sua realidade é o facto de ser comum a todos nós; e, se o senso comum tem posição tão alta na hierarquia das qualidade políticas, é por ser o único factor que ajusta à realidade global os nossos cinco sentidos estritamente individuais e os dados rigorosamente particulares que eles registam". Alguns dos outros subuniversos estão a produzir ou, pelo menos, a contribuir para a alienação ou alheamento do mundo, dificultando a promoção da cidadania mundial almejada por Kant e, promovendo em seu lugar, uma dispersão de opiniões dogmáticas que perderam o vínculo com o mundo comum. A perda do mundo comum poderá significar a morte da própria humanidade.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Oswald Spengler: Sinais de Decadência

«Onde quer que, de qualquer forma, a vontade de poder se encontre em declínio, há sempre também uma regressão fisiológica, uma décadence./ Entendo a corrupção (...) no sentido da décadence; a minha afirmação é que todos os valores em que agora a humanidade condensa os seus desejos supremos são valeurs de décadence./ O «progresso» é simplesmente uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa./ A décadence, para o tipo de homem que no Judaísmo e no Cristianismo aspira ao poder, é uma linhagem sacerdotal, unicamente um meio: este tipo de homem tem um interesse vital, a saber, tornar a Humanidade doente e perverter os conceitos de «bem» e «mal», de «verdadeiro» e «falso», num sentido perigoso para a vida e infamante para o mundo./ A nossa suavização dos costumes (...) é uma consequência da decadência; a dureza e a ferocidade dos costumes pode, pelo contrário, ser uma consequência da superabundância de vida./ Todo o Ocidente deixou de ter aqueles instintos de que nascem as instituições, de que brota o futuro: talvez nada repugne mais ao seu «espírito moderno». Vive-se para hoje, vive-se muito depressa, vive-se muito irresponsavelmente: eis o que chamam «liberdade»./ Chega tão longe a décadence do instinto de valor dos nossos políticos, dos nossos partidos políticos, que preferem instintivamente o que dissolve, o que acelera o fim.../ As nossas instituições já não servem: a este respeito existe acordo. Isso, porém, não depende delas, mas de nós./ A modernidade (é) a autocontradição fisiológica." (Friedrich Nietzsche)
A biologia usa o termo homologia de órgãos para designar a sua equivalência morfológica, em oposição à analogia que se refere à equivalência das suas funções. Oswald Spengler recorreu ao conceito de homologia para comparar as culturas: todas as culturas manifestam "formações homólogas de feições mais ou menos características e de importância diferente, mas que sempre aparecem nas mesmas fases da sua evolução, de maneira que cabe afirmar que elas correspondem umas às outras". Este "tacto fisiognomónico" permite-lhe não só reconstruir os nexos morfológicos, como também predeterminar o curso das necessidades morfológicas. A grande característica morfológica reside no facto de que "cada cultura percorre fases de envelhecimento iguais às da vida do indivíduo. Todas as culturas têm a sua infância, a sua adolescência, a sua virilidade e a sua velhice". E é neste momento que Spengler introduz a distinção entre cultura e civilização: "cada cultura tem a sua própria civilização". Spengler encara e concebe a civilização como a consequência orgânico-lógica, isto é, como o remate e o término, da cultura: "A civilização é o destino inevitável de cada cultura. Com (a civilização), alcançamos o cume onde se tornam solúveis os derradeiros, os mais difíceis problemas da morfologia histórica. Civilizações são estados extremos, mais artificiosos, que uma espécie superior de homens é capaz de atingir. São um término. Seguem ao processo criador como o produto criado, à vida como a morte, à evolução como a rigidez, ao campo e à infância das almas como a decrepitude espiritual e a metrópole petrificada e petrificante. Representam um fim irrevogável, ao qual sempre se chega com absoluta necessidade". Tudo o que nasce morre após um período de florescimento e de decadência, e, nalguns casos como sucedeu com a alma mágica, a cultura árabe, pode morrer à nascença sem chegar a florir. Isto significa que, ao contrário do que se pensa frequentemente, em especial Robert Nisbet, a abordagem cíclica e pluralista das culturas feita por Spengler não nega completamente o progresso: cada cultura evolui até atingir o seu ponto de esgotamento e finalmente perecer. O que Spengler parece não aceitar é a ideia defendida por Toynbee, segundo a qual cada nova civilização possui vantagens sobre as anteriores: a morfologia da História Universal de cunho spengleriano rejeita essa «progressão histórico-civilizacional» e parece ser muito pessimista quanto à possibilidade do Ocidente se libertar da idolatria da tecnologia para entrar numa nova fase de desenvolvimento espiritual.
Ora, nesta perspectiva, a decadência do Ocidente significa necessariamente o problema da civilização, na medida em que é a única civilização no nosso planeta a ter atingido a sua plenitude. A transição da cultura para a civilização realizou-se, segundo Spengler, durante o século XIX. Esta mesma transição operou-se na Antiguidade no decorrer do século IV a. C. e pode ser vista de relâmpago na diferença entre os gregos e os romanos: "Os gregos tinham alma; os romanos, intelecto: eis a diferença!" O destino espiritual e material de todas as épocas em declínio é geralmente entregue nas mãos de homens de mentalidade robusta, como os romanos, absolutamente avessos à metafísica. O resultado é inexoravelmente este: "A civilização pura, como processo histórico, consiste na demolição gradual de formas mortas, que já se tornaram inorgânicas". A teoria da decadência de Spengler é deveras complexa e apoia-se sobre uma base comparativa de «factos» históricos muito rica: sua erudição histórica é simplesmente impressionante. Para facilitar a exposição, tentaremos captar a constelação orgânica da decadência civilizacional, sem entrar nos seus pormenores: as decisões espirituais já não são tomadas no "mundo inteiro", mas concentram-se em três ou quatro grandes metrópoles que absorvem o sumo da história, rebaixando o resto do mundo à categoria de "província": "A Metrópole significa o cosmopolitismo em lugar da "terra natal", termo profundo, que recebe o seu sentido pleno, quando o bárbaro se transforma em homem culto, e que o perde novamente no mesmo instante em que o homem civilizado começa a professar o ubi bene ibi patria".
A Metrópole não só concentra toda a vida espiritual em detrimento de todas as outras regiões, como também substitui o povo pelas massas, avessas a quaisquer tradições, hostis à cultura e profundamente naturalistas, sobretudo ao nível dos temas sociais e sexuais: A Civilização aniquila o conceito de povo e promove, sobretudo com o advento dos mass media, o "quarto Estado", a massa, "avessa por princípio à Cultura e às suas formas naturalmente evoluídas. A massa é o absolutamente informe. Persegue com o seu ódio qualquer espécie de forma, quaisquer diferenças hierárquicas, a propriedade organizada, o saber disciplinado. É o novo nomadismo das metrópoles" que flutua e vagueia, sem distinção e sem rumo, totalmente desprendido das suas origens, desdenhoso no que se refere ao passado e desprovido de futuro: "A massa é o fim, é o nada radical". As massas manipuladas pelo sistema económico capitalista subverteram completamente os princípios culturais e políticos e deixam-se submeter facilmente pelos poderes superiores à tirania do "grande silêncio": "Hoje vivemos entregues, sem resistência, à acção dessa artilharia espiritual, de maneira que poucos são os que podem manter a distância interior suficiente para perceberem com toda a clareza a monstruosidade inerente a esse espectáculo (montado pelos mass media). (...) Também (neste domínio da comunicação) triunfa o dinheiro, pondo ao seu serviço os espíritos livres. Não há sátira mais cruel contra a liberdade de pensamento. Outrora não era lícito pensar livremente; agora temos tal direito, porém somos incapazes de exercê-lo. (...) Os leitores só chegam a saber o que devem saber, e uma vontade superior cria para eles a imagem do mundo".
A própria política civilizada é jornalismo ou propaganda, colocado ao serviço da abstracção que representa o poder da civilização: o Dinheiro. O dinheiro anulou a democracia e arruína as instituições políticas e culturais: "No mundo das verdades, a prova decide tudo. No mundo das realidades, por sua vez, quem decide é o êxito. Pelo dinheiro, a Democracia anula-se a si própria, depois do dinheiro ter anulado o espírito. O cesarismo cresce no solo da Democracia, mas as suas raízes penetram profundamente nas camadas ínfimas do sangue e da tradição. Por mais energeticamente que os poderosos do futuro, já que a grande forma política da cultura se desfez irremediavelmente, dominarem a terra como se esta fosse a sua propriedade particular, esse poderio informe, ilimitado, terá todavia uma missão a cumprir: a missão de cuidar sem descanso deste mundo. Tal cuidado é o contrário de todos os interesses na época da hegemonia do dinheiro e requer um senso de honra elevadíssimo, bem como a plena consciência do dever. Justamente por isso, porém, produz-se agora a luta final entre a Democracia e o Cesarismo, entre os poderes dominantes de um plutocracia ditatorial e a vontade organizadora, puramente política, dos Césares". Para Spengler, o Imperialismo é o símbolo típico do final, porque produz petrificações extensivas que, no nosso tempo, escapam ao controle do próprio Ocidente: "O Imperialismo é civilização pura. (...) O homem culto dirige as suas energias para dentro: o civilizado, para fora". O seu lema foi formulado por Cecil Rhodes: "A expansão é tudo". A ditadura do dinheiro reduz toda a vida a possibilidades extensivas. No nosso tempo, essa expansão é denominada Globalização, a nova forma de imperialismo que ameaça verdadeiramente o Ocidente, porque reduz a expansão à deslocalização. Os núcleos triunfantes da actual globalização cristalizam-se na aliança negra entre a "democracia" (globalização da cleptocracia ou plutocracia), o dinheiro (globalização dos capitais) e a "imprensa" (globalização da comunicação).
A perspectiva de Spengler opõe-se completamente à modernidade que, tal como Nietzsche, encara como decadência, e é movida por uma nostalgia dos tempos medievais ou rurais que o leva a condenar em bloco a sagrada trilogia astral da modernidade: Kant, Hegel e Marx. Spengler teve o mérito inegável de mostrar que a realização de todos os grandes princípios promovidos pelo esclarecimento se converteu no seu contrário: a barbárie ou, como prefere dizer, a decadência. Ora, um tal diagnóstico e um tal prognóstico assemelha-se muito aquele que foi feito mais tarde por dois herdeiros de Marx, Horkheimer e Adorno, bem como por Benjamin: "o progresso converte-se em regressão". Quer sejam de Direita ou de Esquerda, os grandes filósofos chegaram finalmente a um consenso; contudo, divergem quanto ao tratamento. Aceitar a decadência com as armas nas mãos pode ter o seu lado heróico, mas significa desistir de lutar contra as trevas que ameaçam o poder ocidental: o fatalismo é sempre amigo do processo em curso, de resto entregue às arbitrariedades do capitalismo destrutivo. A outra atitude protagonizada por Ernst Bloch consiste no optimismo militante. A revisão dialéctica do conceito de progresso deve procurar reconciliar os mestres numa síntese que exige necessariamente o uso sábio da violência restauradora na esfera interna, e da inteligência maquiavélica nas relações internacionais. O progresso torna-se sinónimo de triunfo do mal radical sempre que os homens deixam de ter esperança e de lutar pelo salto qualitativo radical: a restituição (interna) do mundo é a salvação do Ocidente. É provável que a nova grande política exija o recurso a uma teoria do mal radical (antropologia dialéctica), a qual, além de não ser incompatível com a utopia concreta de Bloch, implica uma reforma radical do Estado e do Direito. Abdicar da acção restauradora e da violência externa é deixar o mundo entregue ao mal. Em suma, uma teoria positiva do progresso e da racionalidade só é possível em solo ocidental.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 20 de setembro de 2008

Oswald Spengler: A Profecia da Decadência do Ocidente

«Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma forma surgir no seio do informe; quando algo limitado, transitório, se originar no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente restrita, ao qual se apega, qual planta. Uma cultura morre, quando essa alma tiver realizado a soma das suas possibilidades, sob a forma de povos, línguas, dogmas, artes, Estados, ciências, e, em seguida, retorna a espiritualidade primordial. (...) Alcançando o destino, realizada a ideia, a totalidade das múltiplas possibilidades intrínsecas, com a sua projecção para fora, fossiliza-se repentinamente a cultura. Definha-se. O seu sangue coagula. O seu vigor diminui. Ela transforma-se em civilização." (Oswald Spengler)
Fechado no seu espírito reduzido, dominado por um pobre positivismo factual, Alexandre Herculano condenou a filosofia da história, expressão forjada por Voltaire (1765), alegando que se trata de uma generalização do erróneo ou do incerto a partir de factos diversos ou mesmos contrários: "A poesia onde não cabe, a poesia na ciência é absurda". Com esta recusa da filosofia da história, Herculano correu o risco de chegar ao fim da sua vida sem ter compreendido absolutamente nada do nosso "destino terrestre": omne agens agit propter finem (os actos humanos têm um fim, podendo o fim ser visto ou como efeito realizado, finis in re, ou como finalidade e intenção, finis in intentione). Karl Löwith viu o progresso como resultado de uma secularização da esperança bíblica na futura transfiguração do cosmos e da humanidade, aquando da consumação dos séculos: "A filosofia da história inicia-se com a fé hebraica e cristã numa realização e termina com a secularização do seu esquema escatológico". A ideia de progresso "é tão cristã por derivação como é anticristã por implicação e manifestamente alheia ao pensamento dos antigos". Porém, como mostrou Robert Nisbet, a ideia de progresso é mais do que um idolum saeculi, no sentido de substituir a fé na Providência pelo progresso encarado como a "mão invisível" (Adam Smith) ou a "astúcia da razão" (Hegel) que orienta o desenvolvimento da humanidade, porque foi usada para dirigir e impulsionar toda a civilização ocidental desde as suas origens mais remotas, em especial no mundo antigo, até aos nossos dias. "A ideia de progresso humano é, como diz Bury, uma teoria que contém uma síntese do passado e uma profecia do futuro", fundada numa interpretação da história que visualiza o homem a caminhar lentamente, pedetentim progredientes, numa direcção definida e desejável, de resto uma concepção inseparável da noção de que o tempo flui de modo linear, como uma flecha em direcção sempre ascendente, desde um passado primitivo ou bárbaro remoto até à realização de uma sociedade perfeita e feliz no futuro. Se saber é pecar ou, pelo menos, lançar as sementes do pecado, como já ensinava a narração javista da Criação ou o mito da Caixa de Pandora, então a história do ocidente pode ser vista como o desejo irreprimível consumado de conhecer o conteúdo da caixa que, por ordem divina, não deveria ter sido aberta. O resultado da violação da proibição divina foi, como mostrou Robert Nisbet, a libertação de diversos males que têm afligido a humanidade, a nossa teodiceia, mas também a fomentação da criatividade nos mais diversos domínios da cultura e da sociedade humanas e a estimulação da esperança e da confiança da humanidade e dos indivíduos na possibilidade de mudar e melhorar o mundo.
Hoje em dia o progresso é uma ideia desacreditada, devido em grande parte à crítica demolidora que lhe foi dirigida por Tocqueville, Burckhardt, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Max Weber, Georges Sorel, Henry & Brooks Adams, John Bury, W.R. Inge, Austin Freeman, Oswald Spengler, Frederick Teggart, e Aldous Huxley. A negação total da ideia de progresso, segundo a qual o progresso integral da humanidade nas suas relações com a evolução global do cosmos resulta de uma necessidade intrínseca do próprio processo histórico que caminha em direcção a um fim imanente da história, implica necessariamente a rejeição das suas cinco premissas primordiais: 1) a fé no valor do passado, 2) a convicção de que a civilização ocidental é nobre e superior às outras, 3) a aceitação do crescimento económico e dos avanços tecnológicos, 4) a fé na razão e no conhecimento científico e filosófico que nasce da confiança na racionalidade, e 5) a fé na importância intrínseca ou no valor inefável da vida no cosmos. Isto significa que, num mundo que deixou de confiar no progresso e de ter esperança, as pessoas tendem a renegar o passado e a tradição (1), a deslocar ou relativizar o Ocidente (2), a atacar ou recusar o crescimento económico (3), a recusar ou a degradar o conhecimento e a sabedoria (4), e a entregar-se ao sudário do tédio e do aborrecimento. Perante a renegação da tradição, a perda de terreno do Ocidente em relação a culturas que nos são profundamente estranhas, o deslocamento do centro civilizacional, a degradação do saber e o sudário do tédio, qualquer homem ocidental que ainda não desistiu da sua cultura é forçado a rever positivamente o conceito filosófico de progresso, de modo a contribuir para a transformação do mundo que, neste contexto de eclipse civilizacional e de catástrofe, exige a tarefa de revitalização do orgulho ocidental. Pelo menos, é assim que encaro a minha tarefa: zelar pela continuidade da civilização ocidental, sempre pronto a pegar nas armas e recorrer à violência restauradora. Por isso, para cumprir esta tarefa, torna-se necessário rememorar todos os mestres e erguer as suas vozes contra a corrupção e a degenerescência instaladas nas esferas do poder ocidental. O objectivo é impedir o cumprimento da profecia de Spengler, a decadência do Ocidente "nos séculos (ou décadas) iniciais" do nosso milénio, retomando o seu apelo aos "Anos de Decisão" que estranhamente são os anos que vivemos: anos de crise histórica derradeira.
Em 1918, Oswald Spengler publicou a sua obra A Decadência do Ocidente (Der Untergang des Abendlandes), onde elabora uma teoria cíclica das culturas e das civilizações, através de uma crítica radical da ideia de progresso. Embora uma parte significativa dos intelectuais ocidentais estivesse na altura voltada para a suposta visão progressista de Kant, Hegel e Marx, a sagrada trilogia astral da Filosofia, a obra de Spengler teve um grande impacto nos meios intelectuais ou mesmo políticos. Contra todos aqueles que se entregavam ao curso imanente do processo histórico, como se este por si só conduzisse ao reino da felicidade futura, Spengler procura mostrar "o sentido de todas as decadências na História, da conclusão íntima e externa, do acabamento que inevitavelmente aguarda qualquer cultura viva". A sua filosofia da história revela o sentido, não o sentido da realização de um futuro risonho, mas o sentido da decadência e da finitude radical das culturas, que, tal como os organismos vivos, nascem, crescem e morrem. Onde os outros descobriam sinais de progresso, Spengler revela sinais de decadência: a consumação do destino das culturas vivas. Os prognósticos da decadência histórica da civilização ocidental feitos por Spengler são hoje demasiado evidentes, tais como a degradação cultural e cognitiva, a emergência das massas, a ruptura das instituições políticas, a degradação dos partidos políticos, a conversão da política em jornalismo e publicidade, a aparição de despotismos militares, a identificação entre a democracia e a plutocracia, a ditadura do dinheiro e a corrupção, enfim um período de declínio em que "o intelecto pensa (e) o dinheiro dirige", mas, antes de os analisar, convém explicitar as linhas gerais da filosofia da história de Spengler, que, fundada numa sólida filosofia da vida, sangue, raça e terra pátria, pretende realizar a "tarefa de predizer a História", algo a que Karl Popper na sua extrema ignorância, eivada do ódio típico de um professor primário invejoso, chamou historicismo, quando na verdade o conceito de "ciência" que opera nesta filosofia é o de Goethe: "Não procuramos nada atrás dos fenómenos! Eles mesmos são a teoria".
Spengler leva a cabo, "pela primeira vez", a "tarefa de predizer a História", isto é, de "visionar o destino de uma cultura, por sinal da única no nosso planeta a ter alcançado a sua plenitude, a saber, a cultura da Europa ocidental e das Américas", com o objectivo de "predefinir o curso que a sua evolução tomará nas fases futuras". No entanto, esta tarefa converte-se numa nova filosofia: a "filosofia do futuro", que procura, num "solo metafisicamente exausto", apreender "as possibilidades que ainda restam ao espírito ocidental-europeu nas suas próximas fases". Encarada como filosofia do futuro, a tarefa filosófica de Spengler "assume então a forma da ideia de uma morfologia da História Universal, do Cosmos como História, em oposição à morfologia da Natureza, a qual foi até hoje, com raras excepções, o tema exclusivo da Filosofia": "Todas as maneiras de concebermos o mundo podem, em última análise, ser qualificadas de morfologia. A morfologia do mecânico e do extenso (espaço), a ciência que descobre e ordena as leis naturais e os nexos causais, chama-se sistemática. A morfologia do orgânico, da história e da vida (tempo), de tudo quanto estiver dotado de direcção e de destino, chama-se fisiognomonia." O objectivo da fisiognomonia histórica é compreender "todas as figuras e todos os movimentos do mundo, coordenando-os, não num panorama das coisas conhecidas, mas num quadro da vida, não do que se produziu, mas do próprio processo de produzir-se". Neste momento, após ter negado o sentido histórico aos gregos e aos indianos, abusivamente em relação aos primeiros que iniciam a civilização ocidental, Spengler introduz uma diferença entre o sistema ptolemaico da História e o sistema copernicano da História, com o objectivo de pôr termo à visão eurocentrista, onde as outras culturas giram em torno de nós, homens dotados de sentido histórico, e da nossa cultura faustiana perspectivada como o centro de todas as ocorrências universais, colocando a Antiguidade Clássica e a cultura ocidental ao lado da Índia, da Babilónia, da China, do Egipto, das culturas Árabe e Mexicana, "sem ocuparem em absoluto nenhuma posição privilegiada". A negação da "Humanidade" como origem, sujeito e fim da História, reduzida a um "conceito zoológico" ou a mera "palavra vazia", conduz Spengler ao relativismo histórico, o momento irracional da sua filosofia da história, denunciado por Lukács, criando um apuro desnecessário na sua concepção da história que sempre que fala revela a superioridade da cultura ocidental. Isto significa que a concepção da história de Spengler parasita a ideia de progresso que pretende exorcizar: abdica da ideia de Humanidade, mas, para fazer "desaparecer esse (conceito) fantasma" do círculo de problemas relacionados às formas históricas, precisa conservar a ideia de História Universal. Portanto, "em lugar da monótona imagem de uma História Universal rectilínea", Spengler depara-se com "o espectáculo de múltiplas culturas poderosas, a brotarem com cósmico vigor do seio de uma região maternal, à qual todas elas permanecem rigorosamente ligadas durante todo o curso da sua existência".
Para Spengler, cada cultura imprime à sua matéria, o espírito humano, a sua forma peculiar, e as suas próprias possibilidades de expressão manifestam-se, amadurecem, definham e nunca mais ressuscitam. As culturas são seres vivos de ordem superior e criam-se numa sublime ausência de propósitos: "As culturas são organismos". Natureza e História constituem dois tipos extremos de concepção do cosmos: "A lei e a forma são os dois elementos básicos de toda a construção do Universo. A História é a forma natural, primitiva, do mundo, ao passo que a Natureza, no sentido de um mecanismo universal aperfeiçoado, é uma forma posterior, artificial, que somente o homem das culturas amadurecidas pôde realizar". A História Universal situa-se para além do terreno da causa e do efeito, da lei e da medida, e, como devir irreversível no cumprimento do seu destino, mais não é do que "a imagem de uma eterna formação e transformação, de um maravilhoso desenvolvimento e ocaso de formas orgânicas". O método naturalista usado por Goethe é o único método histórico: a sua "natureza viva" corresponde àquilo que Spengler chama História Universal. A concepção copernicana da História opõe, ao mundo como mecanismo elaborado pela ciência mecanicista e matemática, o conceito de mundo como organismo. Na primeira imagem a-histórica do mundo, a de Newton, predominam as ideias correlatas de natureza morta e de lei, enquanto na segunda imagem do mundo, sobressaem as ideias de natureza viva e de forma. O naturalismo de Goethe procurava apresentar a configuração em devir, a forma plasmada na matéria orgânica que, vivendo, evolui. Spengler retoma esta imagem da natureza viva e aplica-a ao mundo das formas históricas: o seu objectivo é explanar a linguagem das formas da história humana, a sua estrutura periódica e a sua lógica orgânica, a partir da base da multiplicidade de pormenores perceptíveis. Assim, termos tais como juventude, crescimento, florescência ou declínio, usados até então para exprimir estimações subjectivas e interesses particulares, passam a ser utilizados como "designações objectivas de estados orgânicos". Colocando as diversas culturas ao lado umas das outras, Spengler procura "o que há de típico nos (seus) instáveis destinos (ou) o que existe de necessário na incoercível abundância de acontecimentos casuais". Fazendo definhar as formas das culturas, Spengler descobre a "protoforma" ou arquiforma da cultura que constitui o protofenómeno de toda a História Universal: o quadro natural que obtém da História Universal como manifestação do devir em toda a sua pureza, mediante este "método de sentir e não de analisar", só é válido para os homens ocidentais. (CONTINUA com o título "Oswald Spengler: Sinais de Decadência")
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Walter Benjamin: História e Redenção (2)

«Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação». (Theodor W. Adorno)
«O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer». (Walter Benjamin)
«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrolam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». (Max Horkheimer)
Apesar de ser hoje em dia uma ideia desacreditada, devido em grande parte à crítica demolidora que lhe foi dirigida por Tocqueville, Burckhardt, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Max Weber, Ernest Renan, Max Nordan, Georges Sorel, Henry & Brooks Adams, John Bury, W.R. Inge, Austin Freeman, Oswald Spengler, Frederick Teggart, T.S. Eliot, James Joyce, Ezra Pound, Yeats e Aldous Huxley, o progresso é uma ideia enraizada na tradição ocidental que implica o avanço de toda a humanidade num processo gradual, por etapas, que se iniciou num passado primitivo remoto e que se dirige inexoravelmente para um futuro distante e glorioso, de acordo com o plano inicial traçado pela Providência ou pela necessidade histórica. Esta ideia é inseparável de outra ideia: a de um tempo vazio e homogéneo que flui de modo linear, automático, contínuo e infinito. Presente implicitamente no teorema do estoicismo médio sobre o Estado Universal, a ideia de progresso atinge o seu esplendor protótipo na obra de Santo Agostinho, onde a história se converte imediatamente em história da salvação, e consuma-se no conceito kantiano de uma História Universal ou cosmopolita.
Progresso, tempo homogéneo e vazio e História Universal são conceitos que se articulam numa mesma concepção da história: a marcha triunfal dos vencedores e dos opressores. Ciente disso, Benjamin é peremptório: "A ideia de um progresso da espécie humana através da história é inseparável da sua marcha através de um tempo homogéneo e vazio. A crítica à ideia de uma tal marcha é o fundamento necessário da que é dirigida contra a ideia do progresso em geral" (Tese XIII). Num só e mesmo movimento, Benjamin elabora uma nova concepção do tempo e da história, na perspectiva dos vencidos, que opõe à ideologia do progresso que glorifica a história dos vencedores.
A Nova Concepção de Tempo. Desde muito cedo, Benjamin procurou superar a concepção homogénea, vazia, puramente quantitativa do tempo. Assim, nos seus estudos sobre o drama barroco (Trauerspiel) e sobre a tragédia, opõe o tempo da história ao tempo mecânico e vazio dos relógios que se manifesta na regularidade das transformações espaciais, e, no seu texto sobre o romantismo alemão, opõe a concepção qualitativa do tempo, o infinito temporal qualitativo (qualitative zeitliche Unendlichkeit) do messianismo romântico, para o qual a vida da humanidade é um processo de realização (Erfüllung), à concepção vazia e infinita do tempo, o infinito temporal vazio (leeren Unendlichkeit der Zeit), das ideologias do progresso (Ideologie des Fortschritts). Já Georg Lukács tinha recusado a quantificação abstracta do tempo, com o recurso a citações d'O Capital onde Marx denunciava o trabalho maquinal do operário reduzido a "carcaça do tempo": "O tempo perde assim o seu carácter qualitativo, mutável, fluído: fixa-se num continuum exactamente delimitado, quantitativamente mensurável, cheio de «coisas» quantitativamente mensuráveis (os «trabalhos realizados» pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objectivados, separados com precisão do conjunto da personalidade humana), num espaço". Na Tese XV, Benjamin opõe o tempo dos calendários, "monumentos de uma consciência da história cujo menor traço parece ter desaparecido na Europa desde há cem anos", ao tempo dos relógios: "Fazer coincidir o reconhecimento de uma qualidade com a medição de uma quantidade foi obra dos calendários, que, com os dias feriados, como que deixam livres os espaços da rememoração". E, ainda a propósito de Baudelaire, Benjamin tira uma ilação: "Os sinos, que outrora acompanhavam os dias festivos, foram, como os homens, expulsos do calendário. Parecem-se com as pobres almas que andam de um lado para o outro, mas não têm história".
Benjamin elabora, portanto, uma concepção qualitativa do tempo, fundada sobre a descontinuidade do tempo histórico, que lhe permite levar a cabo a crítica do progresso e da sua concepção meramente quantitativa do devir da história como um continuum de aperfeiçoamento constante e de modernização benéfica, cujo motor reside no progresso científico e técnico. Benjamin rompe com esta filosofia do progresso e defende uma concepção qualitativa do tempo histórico. Em vez de destacar o futuro, Benjamin procura actualizar o passado, inspirando-se directamente na concepção messiânica judaica da temporalidade: "É sabido que era proibido aos Judeus predizer o futuro. Pelo contrário, a Tora e a oração ensinam-se na comemoração. Para eles a comemoração desencantava o futuro ao qual sucumbiam os que procuram instrução junto dos adivinhos. Mas nem por isso o futuro se tornava um tempo homogéneo e vazio para os judeus. Porque nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia passar o Messias" (Tese XVIII, B). Uns versos de T.S. Eliot ajudam a compreender a necessidade de rever o conceito filosófico de progresso: "Parece, à medida que envelhecemos,/ Que o passado tem outro padrão e deixa de ser uma simples/ sequência -/ Ou sequer um desenvolvimento: este último em parte uma/ falácia/ encorajada por superficiais noções de evolução, / Que se torna, no espírito popular, uma forma de repúdio do/ passado". No nosso tempo, as pessoas repudiam ou renegam o passado, que, como sabemos, constitui o alicerce sagrado sobre o qual cresce a civilização ocidental com autenticidade, criatividade e liberdade. Sem um passado representado pelos ritos, tradições e memória, não pode haver raízes, e sem raízes os mortais estão condenados a permanecer isolados no tempo, como almas que já não têm história. Para as classes oprimidas, o tempo não é homogéneo como o dos relógios, mas qualitativamente diferenciado e descontínuo, e também não é vazio, mas preenchido com o tempo actual ou o agora (Jetztzeit), que faz explodir e interromper a continuidade da história, introduzindo "estilhaços messiânicos" (Tese XVIII, A). Só esta concepção do tempo permite rasgar o campo da história às classes oprimidas e abri-lo activa e politicamente à novidade utópica irredutível à sequência ou desenvolvimento mecânico, repetitivo e quantitativo.
A Nova Concepção de História. A Tese VII ajuda a compreender a concepção de história proposta por Benjamin. "Reviver uma dada época", esquecendo "tudo aquilo que se passou em seguida", tal como recomendavam Fustel de Coulanges ou Ranke ao historiador, constitui o método historiográfico derrotado pelo materialismo histórico: o método da intropatia. O investigador historicista entra em intropatia com o vencedor: "Ora todo aquele que domina é sempre herdeiro dos vencedores. A intropatia com o vencedor beneficia sempre, por consequência, aqueles que dominam. (...) Todos aqueles que até agora conseguiram a vitória participaram desse cortejo triunfal em que os senhores de hoje marcham sobre os corpos dos vencidos de hoje. A este cortejo triunfal pertencem também os despojos como sempre foi uso". A esta perspectiva da "história dos vencedores", comprometida com a ideologia do progresso, Benjamin opõe a perspectiva de uma "história dos vencidos", inspirada na gravura do anjo de Paul Klee (Tese IX). O materialismo histórico tem como missão "fazer explodir a continuidade da história", cujo tempo flui sempre igual a si mesmo, nivelando tudo: "A grande Revolução introduziu um novo calendário. (...) Na tarde do primeiro dia de combate (da revolução de Julho), verificou-se que em vários locais de Paris, independentemente e no mesmo momento, se tinha disparado contra os relógios" (Tese XV). A paragem ou interrupção do tempo rompe a continuidade da história, ao mesmo tempo que permite emergir uma outra história, a do "salto dialéctico, a revolução tal qual a concebeu Marx" (Tese XIV). Isto significa que a interrupção funciona em Benjamin a dois níveis: ao nível teórico, a tarefa do historiador marxista é produzir rupturas eficazes na continuidade da história, e, ao nível prático, cabe às classes oprimidas levar a cabo a revolução. Não distinguir entre estes dois níveis conduz à apatia e ao conformismo: a rememoração é insuficiente para realizar a grande interrupção histórica, a "obra da libertação" (Tese XII).
Para Benjamin, compete à "revolução do proletariado" ou das classes vencidas da História operar a interrupção messiânica do curso do mundo. Alimentada e estimulada pelas forças da rememoração, esta revolução será capaz de restaurar a experiência perdida, abolir o inferno e a fantasmagoria da mercadoria, quebrar e rasgar o círculo maléfico do sempre-igual e libertar a humanidade da angústia mítica e os indivíduos da condição de autómatos. Isto significa que, na perspectiva de Benjamin, a revolução não é uma continuação do progresso ou mesmo um aprofundamento da revolução francesa, mas a interrupção destruidora e redentora da história dos vencedores: a actualização da Erfahrung histórica perdida. Na sua obra O Livro das Passagens, Benjamin afirma que "a concepção autêntica do tempo histórico repousa completamente sobre a imagem da redenção (Erlösung)" e, na Tese II, é dito que "a imagem de felicidade é inseparável da de redenção". Isto significa que a revolução é simultaneamente utopia do futuro e redenção messiânica. Embora voltada para a recuperação e salvação do passado, a busca pela experiência perdida orienta-se na direcção do futuro messiânico: "O Messias não vem apenas como redentor; ele vem como vencedor do anticristo" (Tese III).
Para Benjamin, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes contribui para que esse movimento cronológico prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a História dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a "eterna repetição do mesmo" (Auguste Blanqui) e que consagra o "sempre igual" constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da História, que deve operar uma "actualização" do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la (Tese VII). Declínio (Verfall) e Salvação (Erlösung) constituem efectivamente conceitos nucleares da filosofia messiânica da História de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição, e compete à filosofia marxista operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Origínes), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos, a restituição integral da História (Ernst Bloch), aquilo a que a mística judaica chama "Tikkoun".
Ora, o messianismo que orienta a filosofia da história de Benjamin, o seu elemento teológico, não representa uma espécie de compensação ou de atitude passiva e resignada que aguarda a vinda do Messias, mas visa primordialmente intensificar a luta política emancipadora. Sem o elemento teológico, o materialismo histórico não pode conduzir a revolução/redenção (Tese I), isto é, forçar a chegada do "Reino da Liberdade" (Marx). Hegel e Marx estavam cientes da necessidade de submeter a visão dialéctica do progresso a uma revisão crítica: a noção social-democrata de que o progresso envolvia a própria humanidade e não apenas as suas habilidades e competências cognitivas mostrou ser falsa, a partir do momento em que a cronologia linear da história produziu o fascismo e o totalitarismo e aprisionou os homens nos campos de concentração. Em última análise, liberto desse momento falso, o progresso está presente na noção benjaminiana de que a felicidade das gerações vindouras implica inevitavelmente a ideia de redenção. Ou dito de modo enfático: o progresso é redenção, conceito perfeitamente vislumbrado por Guerra Junqueiro, ou, pelo menos, o progresso pode ser associado à luta constante que visa paralisar e bloquear o triunfo do mal radical. (FIM)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Academia das Ciências: Pensar o País

«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom (sic), e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta»: eis Portugal! (Guerra Junqueiro)
Em vésperas do arranque do Prós e Contras, considerado pelos próprios como "o maior debate da televisão portuguesa", Fátima Campos Ferreira abriu um fórum especial em directo da Academia das Ciências. A agenda centrou-se sobre a economia, a segurança, a educação, a ciência e a investigação e a questão geopolítica. Porém, como sucede nestes programas de televisão, o debate acabou por não seguir a agenda, deixando a tarefa proposta de "pensar o país" congelada para futura oportunidade. Um comportamento tipicamente português: Portugal é eternamente adiado e, de facto, enquanto forem as mesmas pessoas a saltar da Universidade para a política e da política para a Universidade, a Economia ou o escritório de advocacia, a questão será sempre adiada, porque a auto-crítica não faz parte dos "hábitos mentais" de tais arqui-figuras nacionais. Os autodenominados membros das autodenominadas elites nacionais são peritos em enterrar a sua própria responsabilidade no limbo do esquecimento. Por isso, conservo o pré-comentário que tinha feito à agenda deste programa, acrescentando algumas ideias avançadas no debate.
Economia: "Quanto vale a nossa economia?" (Hummm... Quase nada!) Falou-se de uma mudança de paradigmas: da noção do "castelo" para a noção de "rede", portanto, da crise do Estado-Nação e do desfasamento entre os ritmos acelerados da mudança económica global e a lentidão da adaptação do Estado a essa mudança. Vem aí a "sociedade do conhecimento"! Certo, este tipo de sociedade está em marcha, mas não é uma alternativa ao modelo económico capitalista: a sociedade do conhecimento é completamente capitalista e, se a política continuar escrava dos "cálculos económicos" e do seu "fatalismo ideológico", o próprio conhecimento genuíno está em perigo de extinção. Ninguém sabe bem o que significa a sociedade do conhecimento e, no entanto, este conceito-fetiche é constantemente usado para encobrir uma terrível verdade: a ausência de pensamento essencial.
Quanto à crise económica e financeira que ameaça o mundo global, em especial os países ocidentais, apenas foi dito que os seus efeitos e fim são imprevisíveis, o que prova o carácter limitativo dos cálculos económicos e a fragilidade dos "estudos técnicos" em que parece assentar a decisão política. A crise da política, visível no pensamento único, reflecte ausência de pensamento genuíno: as classes dirigentes estão corrompidas e a democracia foi desvirtuada, convertendo-se em cleptocracia. As contradições existem e agravam-se, mas os instalados estão preocupados em conservar o seu próprio poder e as suas ilusões metabolicamente reduzidas.
Educação. "Para que serve a educação?" (Tal como está e com os professores que temos, não serve mesmo para NADA!) O ex-ministro da educação do governo de António Guterres, Júlio Pedrosa, disse coisas pertinentes, mas sem avançar com ideias capazes de as resolver: os desfasamentos, as assimetrias, as desigualdades, as fatalidades, a pluralidade de educações (a da escola, a da sociedade, a da família), enfim coisas que todos já conhecemos. Relativizar a educação pode produzir retóricas interessantes, mas esquece a ideia fundamental de que as instituições educativas devem estar ao serviço da formação cultural e da cidadania inteligente: esta é a missão primordial da escola. É difícil imaginar uma mudança qualitativa do sistema de ensino e de educação com os actuais professores deformados pela Universidade e pelas burocracias de todo o tipo que emanam do Ministério da Educação. Ter diploma não significa nada de especial: qualquer atrasado mental obtém facilmente um diploma! E estes diplomados engrossam cada vez mais as fileiras dos analfabetos diplomados! É isto a sociedade do conhecimento? Este é um problema muito grave porque ameaça o futuro de Portugal que parece estar condenado a ser mais negro do que já é.
Segurança. "Qual a credibilidade da segurança?" (Não é o que está pior no país!) Loureiro dos Santos desdramatizou a questão da segurança e disse que a criminalidade violenta observada ultimamente pode ser facilmente resolvida a curto prazo.
Investigação e Ciência. "Que valor damos à investigação e à ciência?" (Nenhum, porque nada disso existe realmente: tudo é ficção! Apenas existe um "emprego" ou a possibilidade de ocupar o tempo sem fazer nada seguindo um roteiro e preferencialmente um roteiro do prazer!) Esta questão centrou-se em torno da Universidade, como seria de esperar. Fátima Campos disse inadvertidamente uma terrível mentira: "milhares de estudantes portugueses estudam e investigam". Poucos terão sido os estudantes universitários que assistiram em directo a este debate, porque para eles a sociedade do conhecimento significa preferencialmente ligar o computador e ligarem-se a outros computadores em determinados oásis eróticos virtuais, nos quais com uma mão na "pila" e outra no "rato" fazem sexo virtual ou procuram marcar encontros sexuais. A rede é um imenso lugar de novas oportunidades e experiências sexuais: a sociedade do conhecimento revela aqui a sua face sexual. O abuso de drogas e de outros vícios alastra-se entre os estudantes e determinados tipos de violências íntimas são cada vez mais frequentes entre os estudantes que raramente frequentam as faculdades, preferindo ocupar-se de aspectos da vida fácil e irresponsável, em especial as praxes académicas. O horror pelo conhecimento e pelo esforço está instalado: o sistema pactua com a mentira.
Gomes Canotilho, penso que com a aprovação de Conceição Pequito, foi peremptório quando afirmou, contra o coro que ia do "palco" aos representantes da Fundação Calouste Gulbenkian na "plateia", que infelizmente não há verdadeira investigação científica em Portugal, o que prova que a sociedade do conhecimento é uma farsa até mesmo ao nível das universidades: nem os professores ensinam nem os estudantes querem aprender. Para mudar esta situação de degradação do ensino universitário, instalada desde o 25 de Abril, é preciso ser realista e dizer que este ensino é, em última análise, responsável pela crise da educação em Portugal: os professores dos outros níveis de ensino foram formados por estas universidades. A crise do ensino superior alargou-se das licenciaturas para as pós-graduações, incluindo os mestrados e fatalmente os doutoramentos. Estas provas são públicas e podem ser consultadas: o disparate é colossal! A noção de saberes ou de conhecimento sistémico apresentada por José-Barata Moura parece ser e é efectivamente uma ideia sem futuro, além de ser muito positivista e prisioneira de uma lógica burocrática que bloqueia a prática pedagógica e a investigação de qualidade. Afinal, o espírito da verdadeira investigação esteve ausente neste debate académico. Mas ele já esteve presente nas universidades? José-Barata Moura disse que só está presente em "conversas particulares": as aulas abdicaram do pensamento e, em seu lugar, usam e abusam das novas tecnologias para encobrir a ignorância activa e a falta de memória. Curiosamente, foi repetida até à náusea uma ideia-slogan doentia: ninguém recebe o poder; o poder conquista-se. Sim, é verdade, desde que se tenha em conta que em Portugal o poder não é conquistado por mérito mas por cunha. Isto significa que não há poder e muito menos autoridade: os que se auto-intitulam "homens de conhecimento" enterram-se sempre que recorrem a esse argumento miserável. A situação miserável do país fala mais alto do que as suas vozes finitas e confronta-os com a sua própria mediocridade e culpa. Os estudantes portugueses não querem abandonar o país e, quando o fazem, desejam regressar, porque, em Portugal, emprego e trabalho são categorias que se excluem mutuamente: ter emprego significa ter a vida garantida sem trabalho e ter trabalho pode significar não ter emprego e muito menos segurança. Portugal é o oásis invejoso da ociosidade.
Xadrez Global. "Até que ponto compreendemos o actual xadrez político-económico, europeu e global?" (Hummm... Mas o homem metabolicamente reduzido ainda pensa? Pura ilusão!)" A noção de Ocidente avançada por Loureiro dos Santos não é de todo rigorosa e, enquanto se brincar com a semântica geopolítica, o Ocidente continua a afundar-se num oceano de negócios que inviabiliza o futuro. Um aspecto que me preocupou como português foi o "elogio" ao mundo árabe, indiano ou mesmo chinês, bem como a expectativa depositada nos paises de expressão oficial portuguesa, incluindo o Brasil: conversas e negócios de gabinete não resolvem os problemas nacionais, a menos que estes "instalados" andem a vender Portugal.
Os ilustres convidados de Fátima Campos Ferreira que procuraram "Pensar o País", em directo da Academia das Ciências, são arqui-figuras já nossas conhecidas: Adriano Moreira, José Barata-Moura, Júlio Pedrosa, Manuel Porto, Gomes Canotilho, Loureiro dos Santos, Dias Farinha, Diogo Lucena, Conceição Pequito, entre outros. Muitos dos presentes que não tiveram direito à palavra poderiam ter enriquecido este debate, mas, regra geral, em Portugal, quem tem boas ideias é sempre silenciado. Os grupos instalados sufocam todas as vozes que possam ameaçar os seus pequenos monopólios feudais, tratando-os como "iluminados". Ser iluminado é ser criminoso: os instalados liderados por Adriano Moreira não desejam mudar nada que possa retirar-lhes protagonismo. Eles dizem que "tudo corre bem", mas é mentira: a situação miserável do país fala contra estas vozes finitas que pretendem silenciar a revolta interior dos portugueses.
Conforme esperava, o programa não foi muito esclarecedor, apesar da participação brilhante de alguns dos seus participantes situados na ala esquerda em relação à moderadora. Ainda não foi desta vez que ocorreu o milagre desejado. E fiquei com a ideia de que a própria Academia das Ciências não funciona bem. O pensamento nunca habitou as velhas luso-instituições que se preservam ao abrigo de um sistema corrupto de conservação de cargos, ou seja, o pensamento é anti-sistémico e absolutamente anti-burocrático.
J Francisco Saraiva de Sousa