terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Prós e Contras: Desistir ou Resistir?

... ou Como Resistir?
Resistir às crises, a nossa crise estrutural e a crise internacional, e/ou à "metafísica de Lisboa"? Sim, o debate Prós e Contras de hoje (26 de Janeiro de 2009) revelou a solução para as crises portuguesas: a "metafísica de Lisboa" e a colaboração consensual de todos os portugueses em torno da noção quase milenar da capital como "cidade criadora de riqueza" (sic). A ideia foi lançada pelo representante do turismo sulista, José Carlos Pinto Coelho, e, logo a seguir, reforçada pela "magia do governo" na voz do Ministro da Economia, Manuel Pinho. Pinto Coelho fez o diagnóstico da crise: "gastamos mais do que produzimos". Precisamos investir mais na qualificação do trabalho hoteleiro e na ideia de Lisboa como "cidade criadora de riqueza". A "metafísica da salvação das empresas" (Manuel Pinho) significa, nesta orientação absurda, investir mais dinheiro no mesmo erro estrutural: investir na capital que nunca conseguiu resolver a crise estrutural de Portugal. Esta foi a parte mais negra e obscura do debate, mas talvez aquela que melhor revela o erro estrutural de Portugal: o capital-ismo da capital saqueadora do dinheiro público. Manuel Pinho lançou a palavra de ordem: Este é um "tempo de união e não de politiquices partidárias". Certo, todos devemos colaborar activamente na procura de uma solução nacional. Porém, se o tempo de união significar consenso passivo em torno da velha e caduca "metafísica de Lisboa", a defesa do desenvolvimento nacional desigual e assimétrico, então a palavra de ordem converte-se, como insinuou António Nogueira Leite (economista), em obediência a um "rumo difuso" que não abre uma via de solução verdadeiramente nacional. A "metafísica de Lisboa" não é um projecto nacional: o seu optimismo e a sua magia discursiva sem eficácia causal já não enganam os portugueses. Se vivemos na "época dos medos", como afirmou Armindo Monteiro, Lisboa constitui efectivamente o maior medo dos portugueses, pela simples razão de estar irremediavelmente ligada à má governação e ao atraso estrutural de Portugal. E, somente nessa condição de aglutinadora das assimetrias e desigualdades nacionais, pode merecer alguma atenção turística internacional.
O representante de uma associação empresarial regional disse duas verdades: os indicadores macro-económicos não evoluíram nos últimos quinze anos (só?) e os portugueses deixaram de confiar na "classe política". À "falta de credibilidade da classe política", agravada pelos casos de corrupção, Manuel Carvalho Silva (CGTP-IN) acrescentou a gestão empresarial danosa e o oportunismo empresarial. E Armindo Monteiro (Presidente da ANJE) protestou, por sua vez, contra os sindicatos e os sindicalistas. O Ministro da Economia referiu-se à actual crise económica como "a maior crise que se vive numa geração". O Banco de Portugal já tinha anunciado que o "país está em recessão". O governo foi forçado a rever o orçamento e os valores previstos (défice de 3,9, PIB negativo de -0,8, e taxa de desemprego de 8,5) foram substancialmente revistos em alta pela União Europeia: a magia optimista do governo já não pode ocultar a triste realidade dos resultados obtidos. A magia dos números voltou-se contra o optimismo e o discurso da confiança cega. A situação da Islândia, da Irlanda, do Reino Unido e de Espanha não reconforta os portugueses: o desemprego é uma terrível realidade. Apesar de ter reconhecido o fracasso das previsões económicas, sobretudo em relação ao futuro, Luís Cabral (economista) procurou, via satélite (USA), minimizar a gravidade estrutural da actual crise do capitalismo, classificando-a como uma "crise conjuntural", portanto, como uma crise menos grave do que a crise de 1929, e reafirmando a sua confiança no triunfo da economia de mercado, sem se aperceber que esta só pode reemergir graças à ajuda do Estado e dos dinheiros públicos. Economistas deste «calibre» esquecem que a teoria económica, em especial a sua doutrina da concorrência perfeita, não é uma "ciência newtoniana", mas um conhecimento instrumental que procura desesperadamente adaptar a realidade ao modelo teórico, de resto um modelo claramente classista que promove os interesses da propriedade privada em detrimento dos interesses humanos e ecológicos. O mundo da ciência económica é um mundo virtual, ou melhor, artificial: o seu objectivo não é revelar a verdade da esfera económica, mas moldar o mundo inteiro à imagem de uma economia da exploração do homem pelo homem e da devastação da natureza. Todos os convidados estiveram de acordo quanto a uma medida de fundo defendida por Manuel Pinho: estabilizar o sistema financeiro. Porém, surgiram algumas resistências quanto ao método a seguir: os mais neoliberais, como Luís Cabral e, em muito menor grau, Nogueira Leite, defenderam a ideia de que os governos devem "garantir confiança na Banca com Seguro e não com nacionalizações". Os apoios às PME's, as linhas de crédito que visam salvar as empresas da falência e travar o aumento galopante do desemprego, o relançamento da economia, a política fiscal (o abaixamento da carga fiscal e o aumento da despesa pública), o apoio aos desempregados, a construção de obras públicas ou mesmo a nacionalização dos Bancos, foram outras medidas propostas para fazer face à crise. Com a diferença que estabeleceu entre o dinheiro e o crédito, Armindo Monteiro criticou a noção estabelecida de que o "Banco deve disponibilizar tudo". Reside talvez aqui uma abordagem das causas da crise: um modelo de sociedade de consumo irracional que, como observou Carvalho Silva, destruiu o "aparelho produtivo" que Pinto Coelho deseja substituir pela ideia turística de Lisboa "criadora de riqueza". Nenhuma destas medidas é radicalmente nova: todas elas e muitas outras mais ousadas foram postas em prática pelo Presidente Roosevelt.
Roosevelt elaborou o New Deal (1933-39) para fazer face à crise económica de 1929: um conjunto de medidas que visavam socorrer a pobreza e a miséria, restabelecer o equilíbrio entre a agricultura e a indústria e exercer controle sobre as práticas bancárias mediante todos os meios ao seu alcance. Roosevelt gastou imenso dinheiro (16 mil milhões de dólares) para prestar assistência directa aos desempregados, auxiliar as empresas comerciais em falência, realizar um vasto conjunto de trabalhos públicos (estradas, estações de correio, etc.), conceder empréstimos às empresas de construção de habitação e assim criar numerosos novos empregos, conservar a natureza e proteger os recursos naturais do saque capitalista, combater o esbanjamento e o desperdício, oferecer emprego, na sua especialidade, a numerosos intelectuais que viviam na miséria, garantir os depósitos bancários, aumentar a tabela de imposto sobre o rendimento dos ricos, e chegou mesmo a fechar os bancos (férias bancárias). A agricultura, o trabalho e a segurança social foram alvo do New Deal. O Supremo Tribunal tentou bloquear muitas destas medidas e Roosevelt impôs uma idade de reforma aos juízes, de modo a libertar os USA desses idosos obstinados. Barack Obama procurou, no seu discurso presidencial de tomada de posse, retomar o exemplo das grandes presidências democráticas. De certo modo, o tempo presente é tão tempestuoso como o tempo de Roosevelt ou de Carter: o discurso de Obama não foi explícito quanto às medidas a tomar, embora tenha condenado a corrupção das "novas dinastias económicas" (Roosevelt). Roosevelt defendia uma Nova Democracia. O New Deal foi uma nova política que procurou remédio para as misérias nacionais mediante uma reestruturação da vida económica dos USA. A Nova Democracia de Roosevelt não era uma posição de Centro, mas uma posição de Esquerda: implicava uma nova organização social. Porém, nestes últimos 30 anos de predomínio neoliberal, tudo foi esquecido em nome da velha ideologia de mercado. O resultado deste longo esquecimento do papel regulador do Estado é a actual crise financeira e económica e a própria corrupção que se alastra no seio das sociedades ocidentais. O capitalismo tem uma história de crises periódicas, umas mais profundas do que outras. A abordagem das causas conduz directamente ao capitalismo financeiro global e ao seu fundamentalismo de mercado.
O mundo moderno, tal como o conhecemos nos nossos dias indigentes, é marxista às avessas. Esta tese pode ser aparentemente paradoxal, mas apreende uma insuficiência filosófica interna do marxismo. François Châtelet situou a revolução que Marx operou no pensamento ao nível da concepção do homem e das tarefas do pensamento: Marx opõe ao homem abstracto da filosofia a concepção do homem na sua realidade empírica, como ser prático e histórico. Isto significa que, para Marx, a humanidade só pode realizar a sua exigência fundamental, a da satisfação empírica universal, quando se reconhece, no seu ser-fundamental, como materialidade activa lutando contra um mundo material, cuja inteligibilidade é doravante proporcionada pelas ciências experimentais. No seu ser-fundamental, a humanidade é reduzida à sua mera existência empírica e a sua tarefa é lutar pela satisfação das suas necessidades e pela abolição definitiva da violência. Este "materialismo histórico" que dispensa a "prova filosófica" e a própria dialéctica, dissolvendo a filosofia nas ciências experimentais e impondo o pensamento económico único, foi e está realizado: a actual sociedade metabolicamente reduzida é a sua realidade efectiva. As preocupações fundamentais dos poderes públicos são o crescimento económico na sua forma absurda de desenvolvimento sustentável e a modernização constante. Na sua materialidade, a tarefa da humanidade é económica: uma luta constante contra a natureza que visa unicamente a satisfação de necessidades humanas, até mesmo das necessidades mais artificiais. A sociedade e o mundo da vida foram completamente colonizadas pela economia de mercado.
Porém, a humanidade satisfeita não implica desalienação, no sentido marxista, até porque a finitude do homem (Heidegger), a angústia face à morte, não foi alvo de uma resposta por parte do marxismo. A satisfação empírica universal como "realização/superação da filosofia" é falsa, na medida em que implica uma regressão do homem à sua condição meramente animal: o homem satisfeito é um animal económico, mas não é um homo philosophicus realizado. Toda a vitória do materialismo economicista e fatalista é sempre uma derrota do pensamento. O jovem-Hegel já sabia isso quando falou da "tragédia no ético", a sua crítica da cultura do capitalismo, já ilustrada por Ferguson, reforçada por Goethe, Fourier e Balzac e retomada por Gorki: o desenvolvimento das forças produtivas humanas aniquila o homem, dispensando o pensamento, domestica-o e rouba-lhe a sua humanidade. A valorização cultural da actividade económica rebaixa o homem à sua condição natural de animal e aniquila a cultura, a sua "segunda natureza". O capitalismo é visceralmente inimigo da cultura e da própria natureza interna e externa. As crises do capitalismo revelam o seu "conflito eterno e trágico" contra a natureza, a cultura superior e a criação cultural: o progresso técnico e económico implica regressão cognitiva e atrofia dos órgãos mentais. A economia de mercado e a sua ciência económica não são autosuficientes e suficientes, isto é, não resolvem a crise, pela simples razão de serem parte integrante do problema e não da sua solução.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 24 de janeiro de 2009

Hegel: A Lógica de Jena (1)

«No pensamento simbólico, as palavras são manipuladas como simples signos, sem que se leve em conta o seu sentido; essa manipulação é feita segundo regras prontas e acabadas: as regras da gramática geral ou de uma gramática especial. Esse uso permite que muitas pessoas discorram, formem frases correctas, sem nem sequer saberem do que falam. O pensamento simbólico é aquele dos tagarelas e de um certo número de alienados. (...) De igual modo, a lógica formal pode ser considerada como um dos sistemas de redução do conteúdo, através do qual o entendimento chega a «formas» sem conteúdo, a formas puras e rigorosas, nas quais o pensamento lida apenas consigo mesmo, isto é, com «nada» de substancial. No limite extremo, essas formas desvanecem-se, tornam-se o vazio, o nada de pensamento e de realidade, o absurdo". (Henri Lefebvre)
Henri Lefebvre foi provavelmente o filósofo que procurou elaborar, de modo rigoroso e sistemático, a lógica dialéctica como uma lógica (concreta) do conteúdo. A partir do final da Segunda Guerra Mundial, a dialéctica foi eclipsada e atacada no seu ponto fraco: a sua ligação com a lógica, donde resultou o progresso da lógica formal e da sua formalização. Émile Meyerson reduz a razão à forma da identidade ou da identificação (do oprimido com o opressor, do filho com o pai repressivo e o seu domínio da Lei, enfim da vítima com o seu carrasco), isto é, reduz a razão ao entendimento, pondo o conteúdo como algo estranho e exterior à forma e o concreto como exterior ao abstracto. A razão formal e formalizada luta para forçar abusivamente a entrada do real na forma pré-figurada e acabada: o resultado desta violência conceptual é coagular a razão em pura abstracção, em identidade e princípio de identidade. A própria ciência dita experimental é reduzida a um esforço sempre fracassado de fazer com que o móvel entre no imóvel, o diverso no idêntico, e a reflexão epistemológica sobre a ciência é vista como uma série de tentativas de formalização. O projecto positivista de uma "lógica sem metafísica" elaborado por Ernest Nagel não resiste à negatividade do conteúdo mínimo que é obrigado a reter: o conteúdo mínimo insinua-se no seio da lógica formal como negatividade, mostrando que ela não é suficiente e autosuficiente. A depuração da forma lógica em detrimento do conteúdo visa tornar o pensamento alheio ao mundo e à experiência, fomentando o conformismo e eliminando o próprio pensamento enraizado na materialidade do mundo. A lógica formal converte-se, assim, em pura ideologia: o pensamento da identidade (Adorno) que legitima o status quo.
A ideologia logicista e seus derivados pseudo-filosóficos, a pura retórica da tagarelice denunciada pelo próprio Kant, imobilizaram o mundo e a praxis transformadora, confirmando o homem na sua situação infeliz. Porém, o estalar da actual crise financeira e dos seus efeitos perversos sobre as economias reais, pode ajudar a acordar o homem desse sono dogmático povoado por pesadelos de miséria eminente. A leitura de Hegel constitui, neste momento de desespero, a única luz capaz de desmistificar o pensamento único e de descobrir na sua superfície as contradições profundas que esconde. O primeiro sistema completo de Hegel, o sistema de Jena (1802-1806), é constituído por uma lógica, uma metafísica, uma filosofia da natureza e uma filosofia do espírito. Como já analisámos a primeira exposição da dialéctica de Hegel, vamos retomar apenas a lógica de Jena, onde Hegel expõe a estrutura do ser enquanto tal, isto é, as suas formas mais gerais que Aristóteles designava como categorias, tais como substância, afirmação, negação, limitação, quantidade, qualidade, unidade, pluralidade, etc. A lógica de Hegel é uma ontologia, que pressupõe a unidade do pensamento e do ser, no sentido do movimento do pensamento reproduzir e reflectir o movimento do ser, trazendo-o à luz da sua forma verdadeira. A concepção hegeliana desta unidade difere da concepção kantiana. Hegel rejeita o idealismo kantiano, porque este admitia a existência da coisa-em-si que não podia ser apreendida pela razão. Deste modo, Kant abriu um abismo entre o pensamento e o ser, entre o sujeito e o objecto, abismo sobre o qual Hegel procura lançar uma ponte: a existência de uma estrutura universal da totalidade do ser. Hegel entende o ser como um processo, pelo qual uma coisa compreende e se apropria dos diversos estados da sua existência, elevando-os à unidade mais ou menos duradoura do seu em-si e constituindo-se activamente como a "mesma" através das suas mudanças. Tudo o que é existe, em maior ou menor grau, como sujeito, isto é, movimento dialéctico do ser que unifica os mundos objectivo e subjectivo.
No sistema de Hegel, lógica e metafísica "confundem-se" por dois "motivos" básicos: primeiro, porque a identidade do pensamento e da existência significa que o movimento do pensamento reflecte o movimento do ser, dando-lhe a sua forma verdadeira, e segundo, porque o conceito verdadeiro revela-nos a essência ou a natureza de um objecto, dizendo-nos o que é em si mesmo. Isto significa que a lógica de Hegel trata das formas e dos tipos de ser enquanto compreendidos pelo pensamento: a interacção, a mutabilidade e a fluidez dos conceitos reflectem o processo concreto da realidade efectiva. Porém, quando a verdade desta realidade nos é revelada, torna-se evidente que as coisas não existem na sua própria verdade, porque as suas potencialidades e possibilidades estão limitadas pelas condições determinadas em que existem. As coisas só alcançam a sua própria verdade quando negam as suas condições determinadas. Além disso, embora sejam os "sujeitos" deste processo de realização, as coisas sofrem-no passivamente, sem terem a sua própria compreensão ou agirem com base no conhecimento: a ideia que formamos das coisas é que revela a existência de um processo intrínseco de desenvolvimento. Para Hegel, o conceito representa a forma real do objecto, revelando a verdade do seu processo que, no mundo objectivo, é cego e contingente. No mundo objectivo, orgânico e inorgânico, os entes diferem essencialmente dos seus conceitos e esta diferença só pode ser superada por um sujeito pensante: um sujeito capaz de realizar o seu conceito na sua existência.
Os diversos modos de ser podem ser ordenados em função da diferença entre os modos de ser dos entes particulares e os seus conceitos. A ideia básica é a de que todos os entes particulares diferem essencialmente do que poderiam ser caso realizassem as suas potencialidades dadas no seu conceito. Mas, como não há identidade entre a sua existência e o seu conceito, as coisas finitas são negativas: elas não são o que podem e devem ser. Esta "inquietação absoluta", o esforço para (um ente) "não ser o que é" na sua existência imediata, constitui a essência de todas as formas imediatas da existência: elas são formas más, porque não permitem que as coisas sejam o que podem ser. A existência verdadeira só pode ser alcançada quando o estado imediato passa a ser compreendido como negativo. A negatividade é, segundo Hegel, "a fonte mais interna de toda a actividade, do desenvolvimento vital e espiritual", e, como estado de privação, força os entes a tornarem-se "sujeitos" e a lutar pela «adaptação» do seu estado aparente às suas potencialidades. Ser é poder ser o que se é no conceito. A força motivadora da dialéctica reside precisamente na pressão para superar a negatividade constitutiva de todas as coisas finitas: o conteúdo particular expande-se quando se transforma no seu oposto e a dialéctica começa quando o entendimento se torna incapaz de compreender adequadamente qualquer coisa por meio das formas qualitativas ou quantitativas pelas quais é dada. A capacidade de existir no seu "ser-outro" (Anderssein) e, portanto, de ser diferente de si mesmo, faz parte integrante do conteúdo particular e o conteúdo do todo é a totalidade das relações contraditórias nele engendradas. A lógica dialéctica de Hegel conduz do ser-em-si do começo ao ser-em-si e para-si do final, que também é o começo. A Ciência da Lógica resume o conteúdo dos pensamentos em três partes, a doutrina do ser, a doutrina da essência e a doutrina do conceito, que correspondem aos três termos fundamentais da dialéctica: o ser-em-si imediato, o ser-fora-de-si (a relação consigo mesmo através da relação com o outro) e o ser-para-si (que é idêntico consigo mesmo no outro). Esta ordem sistemática deriva do facto de que todos os modos de ser alcançam a sua verdade através do sujeito livre que os apreende e compreende pela relação que estabelece com a sua própria racionalidade. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Génese da Dialéctica Hegeliana

«Todas as coisas consistem no Sim e no Não". (Jakob Böhme)
A história da filosofia ocidental foi animada por uma pergunta fundamental: O que é o Ser? Hegel retoma esta pergunta, desde os seus escritos teológicos de juventude, e, tal como Parménides e Aristóteles, estabelece uma distinção entre o ser (Sein) e o ente (Seiendes), mais precisamente entre o ser determinado e o ser enquanto tal. Todos os entes que nos cercam são seres determinados e a cada um deles atribuímos o ser, o qual não é uma coisa específica no mundo, mas aquilo que é comum a todos os seres determinados particulares. O ser enquanto tal é diferente de cada um dos seres determinados, mas, como pode ser atribuível a todos os entes, pode ser considerado como o que é real no meio da diversidade dos seres determinados. Dado ser comum a todos os entes, o ser enquanto tal é o seu substrato e, sendo o mais universal, pode ser visto como a essência de todo o ente, a sua substância. Esta tradição que combina a ontologia com a teologia, a que Heidegger chamou onto-teologia, vigora na Lógica de Hegel, mas de um modo que nos reconduz a Aristóteles, ao mesmo tempo que o supera mediante a elaboração de uma ontologia da história, liberta do "dogma metafísico" e comprometida com as exigências do racionalismo moderno.
Aristóteles identificou o ser com o processo: o movimento através do qual cada ente particular se torna por si mesmo o que ele realmente é. A sua "metafísica" estabelece uma distinção entre a essência (ousia) e os seus diversos estados e modificações acidentais (symbebekos): o que é real é a essência mediante a qual compreendemos o ente concreto individual, orgânico ou inorgânico. O ente individual é o sujeito ou a substância que permanece durante todo o movimento pelo qual unifica e conserva reunidos os diversos estados e fases da sua existência. Os seus diferentes modos de ser referem-se a diferentes modos de permanecer através das mudanças. Ou, como escreve Hegel, "os diferentes modos de ser são unificações, umas mais, outras menos completas". Isto significa que ser é unificar relações antagónicas e unificar indica movimento que Aristóteles define em termos de potencialidade (dynamis) e actualidade (energeia). Os diversos tipos de movimento constituem diversos modos de realização de potencialidades inerentes à essência do ente que se move, e, destes movimentos, o mais valorizado é aquele em que todas as potencialidades, e cada uma delas, estão plenamente realizadas. O ente que se mova deste modo é puro acto (energeia) e, como tal, não tem matéria a realizar fora e diferente de si mesmo: ele é completamente ele mesmo em todos os momentos da sua existência. Isto significa que a existência de um tal ente é pensamento, na medida em que um sujeito cuja actividade própria é pensar não tem objecto diferente de si e fora de si. O pensamento apreende o objecto e conserva-o como pensado e a razão apreende a razão. O ser verdadeiro é verdadeiro movimento e o movimento é a actividade de que resulta a unidade perfeita do sujeito com o seu objecto. O ser verdadeiro é, portanto, o pensamento e a razão. Para Aristóteles, o ser verdadeiro é o pensamento divino (nous theos). Embora não seja causa ou criador do mundo, o pensamento divino é o seu primeiro motor (kinoun) mediante um complicado sistema de esferas intermediárias. A razão humana é uma pálida cópia deste pensamento divino, mas, apesar disso, a vida teórica é a forma mais elevada de actividade humana e constitui o bem superior.
Hegel re-interpreta a ontologia aristotélica, descobrindo o seu carácter radicalmente dinâmico e «adaptando-a» a um mundo transformado em palco do livre desenvolvimento do sujeito e, nesse sentido, convertido na realidade da razão. A lógica dialéctica que Hegel expõe na Ciência da Lógica destaca o princípio de que as potencialidades inerentes aos homens e às coisas podem exigir a dissolução das formas sociais dadas e a reavaliação das suas estatísticas. A dialéctica rejeita qualquer pretensão de sacralidade do que é dado e não é condescendente com aqueles que vivem sob a égide da forma do mundo em vigor e do seu pensamento quantificador. A dialéctica hegeliana opõe-se completamente ao empirismo. Locke e Hume negaram os conceitos e as ideias gerais e, deste modo, minaram a metafísica, confinando o homem aos limites do dado e da sociedade liberal estabelecida. Este cepticismo conduziu ao conformismo: o desejo humano de transcender a ordem social existente foi liquidado. O empirismo renuncia à razão e às suas garantias, a necessidade e a universalidade. A renúncia à razão é um ataque à metafísica e a destruição da metafísica é um ataque às condições da liberdade humana. O empirismo recusa o direito que assiste à razão de dirigir e orientar a experiência, confiando o nosso destino aos mecanismos cegos da economia de mercado entregue aos caprichos dos egoísmos privados. A actualidade da filosofia hegeliana reside no facto de ser uma filosofia negativa: a dialéctica convida o homem a não ficar satisfeito com os factos, ou melhor, convida-o a transcender e a transgredir os factos dados e a libertar-se da sociedade estabelecida. Ou, usando a terminologia de Ernst Bloch, somente na dialéctica do acontecer não contemplado e não fechado na história consumada é o próprio conhecimento um factor de mudança: o conhecimento dirigido não apenas ao passado susceptível de ser conhecido, mas sobretudo e fundamentalmente ao devir efectivo em formação. "S não é ainda P": a exploração capitalista, a pobreza e a miséria ainda não foram superadas, a natureza ainda não é a nossa pátria, o verdadeiro não é ainda predicado da realidade efectiva. É este nondum em processo que obriga a amadurecer a fé no sentido do verdadeiro esforço humano e do seu optimismo militante: a docta spes é conhecimento criticamente antecipador que, sendo mediado e combinado com o processo objectivo, o conduz à manifestação e à predicação do seu conteúdo-meta. Todos nós somos potencialmente agentes dialécticos do não: a nossa tarefa prática, isto é, política, é transformar e melhorar o mundo.
Durante o período inicial de Jena (1801-1802), Hegel concentra-se nas doutrinas de Kant, Fichte e Schelling, submetendo à dialéctica o conceito de razão, de modo a dissolver todas as polaridades conceptuais geradas pelas operações do entendimento ou, como Hegel prefere chamá-lo, da reflexão isolada (isoliert Reflection). A definição do pensamento especulativo constitui a primeira exposição da dialéctica hegeliana. Na sua crítica do idealismo subjectivo de Kant e de Fichte, já iniciada nos períodos de Berna (1793-1796) e de Frankfurt (1797-1800), o jovem-Hegel acentua a função negativa da razão (Vernunft): a função de destruir o mundo estável e indiferente do senso comum e do entendimento (Verstand). Os antagonismos da reflexão isolada exprimem os antagonismos reais inerentes ao nascimento de um mundo novo: as cisões reais existentes reflectem-se na separação radical das categorias do entendimento e, por isso, constituem "a fonte da necessidade da filosofia". Cabe à razão apreender e realizar a unidade subjacente aos antagonismos existentes, isto é, reconciliar os opostos e elevá-los a uma verdadeira unidade. Para levar a cabo esta tarefa, a razão é motivada pela necessidade de "restaurar a totalidade" perdida, a Polis Grega, a ideia inicial que Hegel partilhava com o seu companheiro e amigo de juventude, Hölderlin. A oposição entre entendimento e razão toma a forma de uma oposição entre senso comum e pensamento especulativo, entre reflexão isolada e conhecimento dialéctico. A razão começa por abalar a falsa certeza proveniente das percepções e das invenções do entendimento: o senso comum satisfaz-se com a realidade dada e aceita as suas relações fixas e estáveis. Esta atitude torna o homem indiferente às potencialidades e às possibilidades reais que não são dadas com a mesma certeza e estabilidade dos objectos dos sentidos. Ao confundir a aparência acidental das coisas com a sua essência, o senso comum aceita uma identidade imediata entre a essência e a existência. Ora, esta identidade só pode ser criada pelo esforço contínuo da razão, isto é, da acção consciente do conhecimento dialéctico: o senso comum é abandonado a favor do pensamento especulativo que, ao comparar a forma aparente das coisas com as suas potencialidades ainda não realizadas, é capaz de distinguir a essência do estado acidental de existência. O pensamento especulativo é conhecimento conceptual que examina o processo mediante o qual cada forma veio a ser o que é: o mundo já não é concebido como uma totalidade de relações fixas e estáveis, mas como um devir, isto é, como um vir-a-ser que é produto e produzir.
A razão exorciza a segurança do senso comum, levando o homem a desconfiar da autoridade dos factos e dos números. Esta desconfiança nutrida pela ordem existente e pelos seus cálculos económicos constitui uma forma legítima de cepticismo que introduz na filosofia um "elemento de liberdade". A forma de realidade que é imediatamente dada não é a realidade última: a totalidade de coisas fixas e estáveis produzida pelas operações do entendimento é uma forma má de realidade e, como domínio da servidão, opõe-se ao fim inerente da razão: o reino da liberdade. Kant e Fichte julgavam que este reino podia ser alcançado pela oposição do sujeito ao mundo objectivo e pela atribuição à pessoa autónoma de toda a liberdade que faltava ao mundo exterior. O idealismo subjectivo entregava o mundo exterior ao domínio da necessidade cega e reduzia a liberdade a um mero valor interior a ser realizado unicamente dentro da alma. Ao aceitar o princípio empirista, Kant limita a razão ao domínio interior do espírito: a sua filosofia é completamente dominada pelo entendimento finito. A razão perde poder sobre as "coisas-em-si". Hegel supera o idealismo subjectivo, mostrando que o antagonismo entre o sujeito livre e o mundo objectivo, bem como outros antagonismos criados pelo entendimento, podem ser resolvidos. O absoluto mais é do que a resolução desses antagonismos, isto é, a realização da realidade final: a aniquilação absoluta do mundo do senso comum e da sua indiferença da segurança. Onde o entendimento apreende coisas separadas e opostas umas às outras, a razão revela a "identidade dos opostos": os opostos são de tal modo transformados que deixam de existir como opostos e são elevados a outra forma mais real de ser. As mudanças constituem saltos qualitativos. Em Nicolau de Cusa ou mesmo na filosofia de Schelling, a unidade dos contrários é produzida pela vitória do estático "estar-superado" sobre o movimento da própria superação, mas, em Hegel, esta unificação dos opostos é um movimento que se renova constantemente, pondo e superando os seus momentos: o processo de unificação alarga-se a cada parte e, finalmente, a toda a realidade, alcançando o seu fim quando cada parte só existe e só tem sentido em relação à totalidade. A tríade dialéctica (Triplizität) é a verdadeira forma do pensamento especulativo: tese (posição), antítese (negação) e síntese (negação da negação) constituem uma unidade dinâmica de opostos. O absoluto é precisamente esta totalidade de conceitos e conhecimentos da razão: a "organização de proposições e intuições" sob a forma de sistema. (A Lógica de Jena será apresentada noutro post.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Prós e Contras: Referendo: Democracia ou Demagogia?

O debate de hoje (19 de Janeiro de 2009) foi verdadeiramente confuso, disparatado e medíocre. O título inicialmente previsto, "O Povo é quem manda!", era demasiado demagógico, e, talvez por isso, tenha sido substituído por um outro mais sério: "Referendo: Democracia ou Demagogia?". A mediocridade merece ser pensada. Adiar o confronto crítico com a real essência de ser português é o mesmo que adiar o futuro do novo em Portugal: o povo português não é efectivamente um povo genial. A maior parte dos debates televisivos revela défices cognitivos preocupantes e, se pensarmos que os participantes envolvidos fazem parte de uma pseudo-vanguarda nacional, ficaremos paralisados pelo terror da ignorância e do futuro morto. É provável que este défice cognitivo profundo, frequentemente associado a formas discretas de retardamento e a arcaísmo mental, ajude a explicar outros traços nacionais já analisados, tais como a inveja, a maldade, a emotividade agressiva, a compulsividade, a imitação obsessiva e o egoísmo destituído de individualidade. Portugal é uma terrível mentira: o português tende a simular efeitos e resultados que não consegue atingir pelos métodos mais adequados, de modo a iludir-se. O conhecimento é simulado, a política é simulada, a economia é simulada, o direito é simulado, a educação e o ensino são simulados, a comunicação jornalística é simulada, a opinião pública é simulada, o sexo é simulado, o trabalho é simulado, enfim tudo é simulado. A simulação não permite criar uma cultura de mérito. Em Portugal, todos apostam na educação, mas ninguém sabe o que é a verdadeira educação. A simulação nacional procede sempre do mesmo modo: eleva o analfabetismo a analfabetismo diplomado, ou seja, os portugueses não se tornam mais cultos ou educados; em vez disso, recebem diplomas que lhes fornecem um estatuto falso. O burreco nacional não muda de natureza ou de condição: ele continua a ser igual a si mesmo, com a triste diferença de que a burocracia nacional decretou a sua abolição mágica. O burreco nacional continua a ser o mesmo burreco revestido por um falso diploma que lhe permite usar uma linguagem padronizada. E, sem pensar, o burreco diplomado ilude-se na sua falsa condição decretada por um expediente não menos burreco: o falso diploma dá-lhe a ilusão de ser alguém. A figura vicentina do ninguém foi desperdiçada: o défice cognitivo nacional aniquila a sua própria história, isto é, esquece a história. Portugal não tem memória! Portugal é pura exterioridade destituída de interioridade: o português não interioriza. O devorar nacional, tematizado por Guerra Junqueiro, é profundamente antidialéctico. O devorar português é, de facto, semelhante ao dos animais: a coisa-em-si é captada imediatamente pelas bestas como o que é, como coisa-para-nós, portanto, captada concretamente com os dentes. Este devorar nacional não cria um nexo entre o eu e a coisa, entre o interior e o exterior, de modo a fazer surgir a realidade; pelo contrário, ele consome as coisas, aniquilando-as e aniquilando-se a si mesmo como espírito em devir, capaz de rememorar as suas figuras passadas e de inventar um futuro inteiramente novo. Eis a sua doença mortal! (Em linguagem popular, o português é um come-cagão e um come-cagão é, por definição, um animal destituído de Self.)
No palco, estiveram presentes dois deputados, António José Seguro (PS) e Miguel Relvas (PSD), André Freire (sociólogo), Jorge Bacelar Gouveia (constitucionalista), Defensor de Moura e António Gonçalves (Viana do Castelo). Com excepção do debate travado entre os dois últimos participantes, a propósito do referendo de Viana do Castelo que serviu de mote ao programa Prós e Contras, nenhum dos convidados ajudou a esclarecer os temas em agenda, exibindo um desconhecimento total da realidade efectiva da vida quotidiana portuguesa. José Seguro não tomou posição em relação ao referendo de Viana do Castelo, enquanto Miguel Relvas tomou o partido contrário ao de Defensor de Moura, ao mesmo tempo que aproveitou a ocasião para atacar a regionalização, alegando a crise financeira. Estas atitudes reflectem, cada uma à sua maneira, o pensamento centralizador português responsável pelo atraso estrutural do país: indiferença pelos problemas reais de desenvolvimento que afectam as regiões que estejam fora dos interesses instalados em Lisboa. André Freire arriscou uma posição em relação ao referendo de Mirandela, apresentado por José Silvano, mas ficou engasgado com o interesse nacional, o da energia que deve ser sobreposto ao da linha do Tua. Mais outra manifestação patológica do pensamento centralizador que identifica hipocritamente o interesse nacional com os interesses corruptos de Lisboa. Porém, a sua alegação final sobre a impossibilidade de levar a cabo, na próxima legislatura, a regionalização prometida por José Sócrates, deixou José Seguro deveras incomodado: a regionalização não implica necessariamente a multiplicação administrativa. Pouco mais foi dito, a não ser a ventilação desgarrada de ideias vazias, tais como referendo local, democracia directa, sociedade civil, enfim cidadania, misturadas em muita treta pseudo-ética, desvinculadas da sua matriz teórica e cultural e fortemente desmentidas pela inércia do mundo da vida e da realidade portuguesa. Assim, por exemplo, afirmar que a cidadania pode ser ensinada na escola é simplesmente esquecer ou ignorar que a escola que temos já não ensina nada! E quem a frequenta não aprende nada! Em termos de formação cultural, Portugal regrediu desde o 25 de Abril, mesmo que tenha descoberto uma solução burocrática para converter os analfabetos em analfabetos diplomados. Uma tal proposta de ensinar nas escolas a cidadania, paradoxalmente desvinculada do Estado, como se fosse atributo da sociedade civil, não pode ser levada a sério, a não ser como sintoma de algum interesse egoísta oculto, nomeadamente o de criar uma outra oportunidade burocrática para o mero emprego, aliás um interesse contrário ao interesse nacional.
A demagogia prevaleceu sobre a democracia, a eterna derrotada em Portugal: a "sociedade civil" (sic) revelou em directo toda a conflitualidade de interesses egoístas e atomísticos que a caracteriza, bem como a sua capacidade perversa para subverter o espírito do referendo, de resto reduzido a mero referendo local. Hegel já sabia que a sociedade civil não consegue resolver os seus antagonismos internos: o Estado deve intervir de modo a defender o interesse comum e a própria liberdade dos seus cidadãos. No caso português, dado a capital ter sido incapaz de criar um país desenvolvido, equilibrado e justo, o Estado deve ser descentralizado: uma regionalização radical bem pensada pode fomentar antagonismos férteis capazes de nos orientar para um futuro liberto da miséria e da exploração imposta por uma capital exploradora e sedenta de sangue. Porém, escutando o chamado povo que tem a sua própria vida e a sua maneira peculiar de sentir, pensar e agir, estou cada vez mais convencido de que, do fundo da sua alma de animal ferido, deseja e anseia por uma federação de Estados autónomos. Aqui no Porto esse povo é completamente alheio e avesso às pseudo-elites de Lisboa e às suas trapalhadas medíocres e conversas da treta: os canais de televisão podem estar ligados, mas ninguém escuta o que neles é dito, a menos que haja um desafio de futebol regionalmente relevante. O mesmo acontece noutros distritos de Portugal, muitos dos quais desejam justamente uma televisão regional. O que se passa em Lisboa não interessa ao país: o português sabe que os seus dirigentes são tão vulgares quanto ele e, por isso, tende a ser avesso à sua governação. O poder central corrupto está longe de ter silenciado o local e é provável que os poderes locais comecem a travar lutas cada vez mais ferozes contra o poder central. Portugal não é um país tão unido quanto se pensa: as novas tecnologias da comunicação começam a ser usadas para reforçar os poderes locais e regionais. O país está cansado da capital: Lisboa é uma mentira histórica.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Crise Financeira e Teoria do Conhecimento (1)

George Soros elaborou uma nova teoria para explicar a actual crise financeira: a teoria da reflexividade que opõe ao paradigma económico predominante. O fundamentalismo de mercado não só não pode explicar o que está a acontecer, como também é o seu principal responsável: a sua "convicção de que os mercados tendem a equilibrar-se é directamente responsável pela actual desordem; encorajou os reguladores a abandonar a sua responsabilidade, e a confiar no mecanismo de mercado para corrigir os seus próprios excessos". Todos os conceitos nucleares desta nova teoria, tais como falibilidade radical, reflexividade, princípio da incerteza humana ou indeterminação, são conceitos claramente epistemológicos, e, como tais, constituem mais uma crítica da economia levada a cabo de um ponto de vista epistemológico do que a formulação de um paradigma económico alternativo, embora essa não seja a intenção explícita de Soros que a define como uma "teoria da história".
Aquilo que é almejado por Soros não coincide com aquilo que apresenta: a crítica do modelo do equilíbrio não constitui, em si mesma, uma nova teoria económica capaz de "competir" com o paradigma predominante. É esta diferença entre o que é prometido e o que é oferecido que explica as dificuldades teóricas sentidas por Soros quando procurou, ao longo dos anos, expor, de forma elaborada, rigorosa e unificada, a sua teoria da reflexividade. A dificuldade maior revela-se quando, após reconhecer ter sido discípulo de Karl Popper, procura corrigi-lo, radicalizando-o, de um modo que mostra efectivamente "falta de conhecimentos filosóficos", explicitando a oposição entre liberalismo e comunismo em termos de inversão: o liberalismo defende o inverso do comunismo, ou seja, o liberalismo defende que os regulamentos devem ser abolidos devido à sua falibilidade, enquanto o comunismo defende, inversamente, que os mercados devem ser abolidos devido à sua falibilidade. Se Karl Popper e Friedrich Hayek "demonstraram os perigos da ideologia comunista", George Soros pretende progredir na "nossa percepção da realidade" ao reconhecer o carácter ideológico do fundamentalismo de mercado, como se tivesse descoberto uma terceira alternativa que, na verdade, não descobriu, dado ela já existir. Segundo Soros, "ambas as ideologias se disfarçam com uma aparência científica para se tornarem aceitáveis, mas as teorias que invocam não enfrentam, corajosamente, o teste da realidade. Usam o método científico para manipular a realidade, não para a compreender". Soros identifica erradamente marxismo e comunismo, esquecendo que Marx já tinha procurado explicar as crises periódicas do capitalismo, a partir da razão teórica (cognitiva) e não da razão prática (manipuladora). A pesada dívida em relação à filosofia da ciência de Popper impediu Soros de compreender o apuro interno da sua teoria, mesmo após ter abandonado a doutrina da unidade do método, rompendo com o naturalismo, que Popper opõe ao historicismo oracular de Hegel e Marx, ao mesmo tempo que o incapacitou de compreender correctamente a filosofia e de situar-se justamente no seu campo de luta teórica. A terceira alternativa, sobretudo quando identificada com o papel regulador do Estado, abolido pela liberalização e pela globalização dos mercados financeiros, sempre existiu, tanto na teoria como na prática: Soros não a viu, porque interiorizou os capitais tóxicos inerentes à filosofia de Popper, entre os quais a ideia de sociedade aberta despida das suas determinações histórico-concretas, precisamente aquelas que Marx apreendeu na passagem do feudalismo para o capitalismo. Soros tenta desesperamente superar Popper com a ajuda do próprio Popper e, como não o consegue, condena-se a criar um anexo, mera hipótese ad hoc, ao paradigma económico predominante, o padrão dos ciclos económicos de expansão-retracção, incapaz de orientar a política: tal como os mercados financeiros, as entidades reguladoras são processos reflexivos que contêm um elemento de incerteza e de indeterminação. A sua revisão da forma como os economistas interpretam o mundo não atinge verdadeiramente a essência do capitalismo. A sua economia converte-se em história post festum: "A hipótese da superbolha poderia ser usada para criar uma história financeira abrangente, do período do pós-Segunda Guerra culminando na crise actual". Porém, como consegue, apesar disso, fazer uma crítica pertinente e justa ao estatuto epistemológico da economia, acentuando a especificidade peculiar das ciências sociais e humanas, vale a pena submeter a sua teoria da reflexividade a uma crítica imanente, de modo a reavaliar a sua hipótese da superbolha.
Com este primeiro post, inicio uma série de posts sobre "Crise Financeira e Teoria do Conhecimento", procurando articulá-la com temas anteriores, em particular o pensamento de Hegel. Esta articulação é pertinente, porque Hegel superou a teoria do conhecimento de Kant e os seus dualismos intrínsecos. A dialéctica histórica (reflexiva) veio ocupar, no seio da filosofia, o lugar que o idealismo alemão atribuía à teoria do conhecimento. Liberta da ideologia comunista, a herança Hegel/Marx permite encarar de outro modo a relação entre modelo (pensamento) e realidade, uma relação duplamente reflexiva, com a qual se confronta a ciência económica. A economia carece de uma filosofia crítica completa e esta não pode ser procurada no lugar errado, como fez Popper. A sua filosofia, o racionalismo crítico, enganou-se completamente no que se refere à dialéctica. Na medida em que procurou legitimar a grande narrativa do mercado, através da re-elaboração do conceito de sociedade aberta, a filosofia de Popper (epistemologia + filosofia social e política) ruiu com esta crise financeira. Ou, d
ito de um modo mais radical, a crise financeira pode ser vista como "resultado" de uma determinada narrativa do mundo, o fundamentalismo de mercado, legitimada pela filosofia anglo-saxónica e pela filosofia pós-moderna. (A administração Bush foi claramente uma administração pós-moderna, o que mostra que o discurso pós-moderno é profundamente perigoso e reaccionário.) A crise financeira coloca na ordem do dia o confronto entre filosofia continental e filosofia anglo-saxónica. Enquanto apologética do mercado, a filosofia anglo-saxónica foi refutada pela própria crise que ajudou a criar e a noção de sociedade aberta de Popper deve ser substancialmente reavaliada. (Esta luta intrafilosófica implica um esclarecimento da teoria de Darwin, a qual foi mal entendida por Marx e Engels.) O liberalismo económico é péssima filosofia e Popper prestou um mau serviço à humanidade, distorcendo a dialéctica, embora retendo-a na sua teoria do conhecimento a-histórica. Ora, a lógica dialéctica é lógica histórica: a dialéctica não é, portanto, uma mera teoria do conhecimento. Nesta redução a-histórica da tríade dialéctica à teoria do conhecimento, o liberalismo e o comunismo coincidem na defesa de um sistema de dominação estabelecido. Ambos são meras versões do Iluminismo ou, como diz Soros, da falácia iluminista. Esta é, portanto, a hora da Filosofia Continental, muito mais prudente que a filosofia anglo-saxónica. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Prós e Contras: O Sucesso de Cristiano Ronaldo

O debate centrou-se hoje (12 de Janeiro de 2009) em torno do sucesso de Cristiano Ronaldo, mas, como estive a ver "O Dia Seguinte", um programa sobre futebol da SICNotícias, não tive oportunidade de assistir à primeira parte do programa "Prós e Contras". Apreciei mais a intervenção do próprio homenageado do que o conteúdo do próprio debate, e, quanto a este, segui apenas uma linha condutora: o Ronaldo não tanto como "marca de Portugal", mas sobretudo como exemplo a seguir por outros portugueses noutras áreas da vida nacional, tais como a ciência, a arte, a literatura, a poesia ou qualquer outra actividade menos cultural. Porém, esta linha de debate acabou por ser atravessada, isto é, interrompida pela discussão do carácter nacional e do destino de Portugal. O Ronaldo é um exemplo não só de autodeterminação, de coragem e de abertura à aprendizagem contínua e esforçada, como também daquilo a que chamarei "inteligência desportiva", uma capacidade de resolução de problemas muito determinada pelas suas aptidões inatas.
Alguém no programa referiu a inveja que os portugueses nutrem uns pelos outros, a qual não incentiva uma cultura do mérito e da competência. No fundo, o próprio Cristiano Ronaldo reconheceu que, para triunfar e receber este "troféu", precisou sair de Portugal, o que significa que só é possível alcançar o "reconhecimento" (Hegel) para além das fronteiras nacionais. Dentro do território português não há uma cultura do mérito, nem sequer portugueses capazes de reconhecer as qualidades daqueles que poderiam impor um novo rumo a Portugal: os portugueses com mérito não triunfam em Portugal; pelo contrário, são silenciados maldosamente pela cultura da mediocridade predominante, uma cultura de suborno, capricho e corrupção que se alimenta à custa da morte em vida dos poucos portugueses verdadeiramente inteligentes. A figura do Velho do Restelo surgiu imediatamente na sua materialidade perversa e viscosa: ela é uma figura da inveja tipicamente lusitana, uma figura da maldade e da corrupção. Quem a referiu incorporou-a, materializou-a, deu-lhe corpo e alma: a desejada substituição dos actuais dirigentes dos Clubes de Futebol como condição da mudança (Qual? A vitória do Benfica na secretaria e nos media!) que deve ser operada no futebol nacional revelou que o mal presente deve-se mais à comunicação social e à mediocridade dos jornalistas desportivos do que aos próprios dirigentes desportivos. Em linguagem directa, a substituição da actual geração de dirigentes desejada por alguns jornalistas e comentadores desportivos incide apenas sobre o dirigente do FCPorto, Jorge Nuno Pinto da Costa. Chegou a ser dito que o Benfica era o único clube nacional capaz de competir com as grandes marcas futebolísticas europeias! Sim, o Benfica detentor de tantas ilusões e de tantas mentiras! Sim, o Benfica que joga na secretaria e não no campo, a menos que tenha pressionado psicologicamente o árbitro da partida, como sucedeu na sua pseudo-vitória recente sobre o Braga! Sim, o Benfica que foi humilhado recentemente na Taça UEFA! Sim, o Benfica que inventou um passado de glória proveniente de tempos obscuros, os da ditadura fascista que condenou Portugal ao atraso estrutural! O jornalismo desportivo português cria uma teia de mentiras e de interesses perversos que mergulhou nos últimos anos o futebol nacional num espectáculo de calúnia, de perseguição da qualidade desportiva e de vingança: estes jornalistas desportivos, salvo as excelentes excepções, carecem de inteligência e, mesmo que tentassem seguir o exemplo de Ronaldo, não seriam alvo de nenhum reconhecimento internacional: eles são a vergonha do futebol nacional. O seu avô elogiou a "humildade" (termo terrível para referir um vencedor!) de Ronaldo, afirmando que ele respeitava a "tradição", a tradição da submissão a pessoas sem qualidades, isto é, que Ronaldo era uma espécie de "escravo que reconhecia os seus senhores portugueses", aqueles que compõem a luso-máfia da corrupção da verdade desportiva e da mentira difundida pelos media e urdida em gabinetes sujos de excrementos, precisamente a personificação dos "abutres", o título de um dos livros que lhe enviou. Na sua participação telefónica, Ronaldo mostrou que, além da sua brilhante inteligência desportiva, é dotado de inteligência social, afirmando que já tinha lido metade do outro livro que expunha a sabedoria de um japonês: Ronaldo sabe o que deve dizer para iludir os abutres nacionais, de modo a evitar conflitos desnecessários e a seduzir os portugueses. E, o que foi mais maravilhoso, sem reconhecer espontaneamente o seu contributo, até mesmo o da Academia do Sporting, para o seu sucesso. Deste modo, mesmo que não tenha plena consciência disso, Ronaldo demarcou-se graciosamente dos seus falsos "amigos nacionais": o seu mérito deve-o à força da sua determinação e ao apoio da família, em particular da mãe e irmãs, e dos seus colegas de equipa, e dedicou o seu "troféu" aos portugueses em geral. O certo é que o FCPorto, apesar de ser alvo da inveja encarnada dos media, conquista vitórias umas atrás das outras e tem feito uma excelente figura na Liga Milionária, tendo o seu nome gravado nas portas de vidro da sede da UEFA. Porém, apesar do seu reconhecimento universal e da projecção que faz do futebol nacional na Europa e no mundo, possibilitando a outras equipas nacionais participarem nos campeonatos europeus, os invejosos que condenaram o discurso miserabilista são, eles próprios a figura encarnada da miséria nacional: homens medíocres que nunca tiveram o seu momento de glória e de reconhecimento. Tal como tantos outros portugueses, eles temem a concorrência dos que têm capacidades; eles os silenciam recorrendo à mentira para evitar ser confrontados com a sua própria mediocridade intestinal e medular. Combatem o mérito para garantir a sua triste e medíocre presença e, neste combate que visa a liquidação dos que com o seu brilho radioso lhes roubam o vedetismo mediático, reconhecem a sua própria nulidade e incompetência. Não são homens à altura dos cargos que desempenham: são, em vez disso, coveiros do mérito e da verdade.
O programa "O Dia Seguinte" abordou precisamente estes problemas de um modo imparcial e objectivo, atribuindo a responsabilidade pela crise do futebol nacional à estupidez da comunicação social, e o representante do Benfica fez justamente um elogio da liberdade: é preciso dizer "não", isto é, não pactuar sempre com as cabalas dos seus próprios clubes. Com esta afirmação da liberdade, comungada pelos outros comentadores, todos mostraram que fazem mais pela saúde do futebol nacional do que alguns jornalistas que querem falsificar a verdade desportiva. Três homens, cada um deles com a sua própria paixão clubista, mas nem por isso inimigos da transparência do futebol nacional: um futebol que, apesar dos seus problemas internos, tem produzido figuras nacionais que se destacaram no futebol europeu e mundial, tais como Ronaldo, Luís Figo e Vítor Baía, entre tantos outros, incluindo Mourinho que foi campeão europeu sob a direcção de Pinto da Costa, a maior inteligência da gestão desportiva em Portugal que fez do FCPorto uma marca de prestígio reconhecido por todo o mundo, menos com a ajuda dos portugueses, mas mais pelo mérito da organização do FCPorto.
O exemplo de Ronaldo deveria contagiar outros portugueses e levá-los a triunfar com mérito nas suas respectivas actividades profissionais. Apreciei alguns pontos de vista expressos pelos dois cientistas nacionais e Fátima Campos prometeu fazer um programa dedicado exclusivamente à actividade científica ou mesmo cultural. Porém, gostaria de reformular a minha perspectiva citando uma frase de Hegel, a autor que me ocupa nestes últimos posts: Um grande povo é aquele que produziu uma metafísica. Infelizmente, como reconheceram Teixeira de Pascoaes e Sampaio Bruno, os portugueses são pouco dados a meditações metafísicas e desconfiam da razão: Portugal nunca produziu uma metafísica. Reside talvez aqui a maior fraqueza de Portugal. O nosso país fechou-se à metafísica: o dia-à-parte tem recebido o "acento de realidade" (Schutz) mais forte e a noite-à-parte tem sido exorcizada e, quase sempre negada, a favor das pobres exigências práticas do português no mundo quotidiano, quase sempre centradas na intriga e no falatório vazio que visa desencorajar a diferença e o mérito. A sociedade portuguesa sempre expulsou a noite da consciência e, deste modo, evitou colocar as derradeiras questões que interrogam o sentido do futuro de Portugal, donde resultou o triunfo da trivialidade e da mediocridade. Negar a metafísica é recusar pensar a possibilidade de um Portugal qualitativamente diferente daquele que conhecemos. Mais do que da ciência, como foi dogmaticamente sugerido, o futuro deste Portugal constantemente adiado pelos instalados no Terreiro do Paço depende da construção de uma metafísica capaz de introduzir uma mudança de paradigmas e, deste modo, abri-lo ao futuro do novo. Sem uma tal metafísica nacional, nenhuma outra actividade cultural alcança a profundidade meditativa capaz de ajudar a ultrapassar as crises que nos ameaçam.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Hegel e Antropologia Dialéctica (1)

«O escravo é obrigado a suprimir a dominação através de uma supressão não-dialéctica do senhor que se obstina na sua identidade (humana) consigo mesmo, isto é, através da sua aniquilação ou condenação à morte. Esta aniquilação (dos vencedores corruptos) manifesta-se na e pela luta final pelo reconhecimento (universal), o que implica necessariamente o risco de vida por parte do escravo libertado. É esse risco que, aliás, completa a sua libertação iniciada pelo trabalho, introduzindo nele o elemento constitutivo da dominação que lhe faltava. É na e pela luta final, em que o ex-escravo trabalhador age combatendo pelo prestígio, que se cria o cidadão livre do Estado universal e homogéneo, que, sendo ao mesmo tempo senhor e escravo, já não é nem um nem outro, mas o homem único sintético ou total, em quem a tese (da dominação) e a antítese (da sujeição) são suprimidas dialecticamente, isto é, anuladas no que têm de unilateral ou de imperfeito, mas conservadas no que têm de essencial ou de verdadeiramente humano e, por isso, sublimadas na sua essência e no seu ser. (Ou, por outras palavras,) o senhor morreu humanamente na luta: já não age, pois permanece ocioso (e corrupto); vive, portanto, como se estivesse morto; por isso, não evolui mais no decorrer da história e, quando esta termina, é aniquilado: a sua existência é uma simples sobrevivência (limitada no tempo) ou uma morte adiada. O escravo liberta-se progressivamente pelo trabalho que manifesta a sua liberdade; mas deve finalmente retomar a luta e aceitar o risco para realizar essa liberdade, criando, pela vitória, o Estado universal e homogéneo do qual será o cidadão reconhecido. Seria um milagre se uma revolução triunfasse sem que uma geração substituísse outra, quer de forma natural ou (de forma) mais ou menos violenta.» (A. Kojève)
«A dialéctica mistificada tornou-se moda na Alemanha, porque parecia sublimar a situação existente. Mas, na sua forma racional, (a dialéctica) causa escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes da sua doutrina (económica burguesa), porque a sua concepção do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e a destruição necessária (do sistema social estabelecido); porque apreende, de acordo com o seu carácter transitório, as formas em que se configura o devir; porque, enfim, não se deixa subjugar por nada e é, na sua essência, crítica e revolucionária» (Karl Marx)
Podemos ler a "Fenomenologia do Espírito" de Hegel como uma "ciência filosófica do homem", pelo menos esse será o caminho que iremos explorar. Os fundamentos filosóficos da antropologia dialéctica foram claramente explicitados por Hegel quando critica a frenologia de Gall, portanto, toda a antropologia naturalista que assimila o homem ao animal, não detectando entre eles nenhuma diferença essencial. A crítica hegeliana da frenologia é uma crítica da ciência e da sua experiência (experimentação) do mundo natural: a razão observadora (beobachtende Vernunft), referida à natureza orgânica, ao mundo da individualidade (psicologia) e à fisiognómica, confronta-se consigo mesma como uma existência exterior, na qual se enriquece com uma pletora de significados, incluindo um significado fisiognómico. A crítica da frenologia antecipa a crítica do positivismo predominante nas actuais ciências humanas. Na frenologia, descobrimos o erro da razão observante, a razão que expressa as suas características essenciais como determinações essenciais das coisas. O crânio não é um signo expressivo da individualidade consciente; é pura "coisa morta" e é, neste caput mortuum, que a razão observante pretende descobrir a exterioridade própria do espírito humano, a "visibilidade do invisível". O resultado deste absurdo é a forma do juízo infinito: "o ser do espírito é um osso", assim o enuncia Hegel, ou seja, o espírito é uma coisa. Esta forma de consciência individual move-se numa realidade alienada, numa realidade que lhe é estranha, pela própria actividade humana, sem ter atingido o conhecimento de que a objectividade desta realidade é o produto da exteriorização criada por si mesma. A razão observadora observa o mundo real e descobre as leis a que obedece, mas não conhece a história: a sua visão do mundo empírico é uma visão abstracta do mundo, que, ao querer apreender o ser sensível através das experiências científicas, o perde como puro movimento e como universal abstracto, ou, segundo a filosofia de Schelling, o mundo é apenas natureza, pura identidade consigo mesma, alheia à negatividade e, por isso, à história.
À antropologia naturalista, estática e monista, portanto, materialista, Hegel opõe uma concepção dialéctica, isto é, histórica, do homem: "O indivíduo (Individuum) é em si e para si: é para si ou é um agir (acção) livre, mas também é em si ou tem ele mesmo um determinado ser originário, determinidade que é, segundo o conceito, o mesmo que a psicologia queria encontrar fora do indivíduo. Em si mesmo, surge, portanto, a oposição, o duplo carácter de ser o movimento da consciência e o ser fixo de uma realidade que se manifesta (efectividade fenomenal) e que, no indivíduo, é imediatamente a sua. Este ser, o corpo da individualidade determinada, é a sua originariedade, o seu «não ter feito». Mas, porque o indivíduo é somente, ao mesmo tempo, «o que tem feito», o seu corpo é também a expressão de si mesmo por ele produzida; é, ao mesmo tempo, um signo que não permaneceu uma coisa imediata e no qual o indivíduo somente dá a conhecer o que ele é enquanto põe em obra a sua natureza originária". E mais adiante, na "Fenomenologia do Espírito", Hegel clarifica, contra a concepção de Lichtenberg segundo a qual "a realidade do homem é o seu rosto", a sua noção de que o indivíduo humano é apenas o que ele fez (getan hat): "O verdadeiro ser do homem é, pelo contrário, o seu acto (Tat); na acção, a individualidade é objectivamente real (efectiva) (e) apresenta-se (ou manifesta-se) como essência negativa, que só é enquanto supera (dialecticamente/aufhebt) o ser".
O homem aparece como ser em si (identidade) e para si (negatividade) e, enquanto tal, é uma totalidade sintética, portanto, dialéctica (unidade de contrários), cuja existência real e fenoménica está em movimento e em devir. Como ser em si, o homem é, pelo seu corpo (Leib) ou pela sua natureza inata em geral (ursprüngliche Natur), um ser natural, dotado de traços fixos e, tal como qualquer outro animal, determinado pelos vínculos que o ligam ao mundo natural ou mesmo social, no que se refere ao facto de ter nascido escravo ou livre. Porém, esta pretensa liberdade natural não tem nada a ver com a verdadeira liberdade humana: o homem livre é aquele que se faz livre, negando o ser dado e negando-se como dado ou inato, isto é, criando o novo e criando-se como homem novo. O homem que deixa de viver em função do futuro, sendo dominado pelo passado ou mesmo pelo presente, não é verdadeiramente um homem, um ser para si, consciente de si e capaz de falar de si mesmo e do que ainda não é, mas um mero animal que age por instinto, por hábito, por tradição, por imitação, enfim por simples inércia. Tal como o animal, este homem vive, mas deixou de agir. O homem verdadeiramente humano é acção criadora e, como tal, é, existe e aparece como negação da identidade, isto é, como diferença: o homem "é para si, ou seja, é uma acção livre" (Hegel), que, pela sua actividade efectiva, manifesta a sua humanidade e aparece como ser verdadeiramente humano. Ao agir, o homem realiza e manifesta a negatividade, mais precisamente a sua diferença em relação ao ser dado natural. A negatividade é a liberdade humana, aquilo que distingue o homem do animal e que só pode ser e existir como negação. A liberdade é negação do dado, quer do dado que o homem é em si mesmo (como animal e como tradição encarnada), quer do dado que não é (o mundo natural e social). Esta dupla negação é uma só negação: negar o mundo natural e social é o mesmo que o transformar, isto é, criar um mundo melhor e um homem novo. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Prós e Contras: O que podemos esperar de 2009?

O debate de Prós e Contras (5 de Janeiro de 2009) debruçou-se sobre a questão crucial deste momento em que o Primeiro Ministro José Sócrates anunciou, numa entrevista dada à SIC, que a economia portuguesa vai, ou melhor, já entrou em recessão: Como vai ser 2009? Fátima Campos Ferreira convidou para este debate o Ministro dos Assuntos Parlamentares, Augusto Santos Silva, e alguns representantes dos partidos da oposição: Rui Rio (PSD), Ilda Figueiredo (PCP), Nuno Melo (CDS-PP) e Miguel Portas (BE). Além destes convidados que estiveram no palco, participaram na plateia dois sociólogos, Joaquim Aguiar e Pedro Adão e Silva, e três jornalistas cujos nomes não fixei. Na divulgação deste debate no site da RTP1, constavam outras questões dirigidas ao destino do ano de 2009: O Ano de todos os perigos? Eis algumas delas: «O ano mais difícil de sempre ou momento de oportunidades? Tempo de crispação social ou época de união de esforços? O que vem aí?» José Sócrates já tinha respondido a esta última questão: A crise da economia nacional e a sua entrada num período de recessão. Apesar de terem sido mostrados alguns extractos dessa entrevista de José Sócrates, os convidados começaram o debate como se essa entrevista não tivesse sido realizada, retomando temas carunchosos já nossos velhos conhecidos, dando início antecipadamente às campanhas eleitorais que irão ocorrer neste ano que, além de ser um ano de recessão, será também um ano de eleições e, por conseguinte, um ano político.
O debate iniciou com a intervenção do membro do governo que apresentou o seu diagnóstico da crise e as medidas tomadas e aprovadas pelo governo para minorar os seus efeitos. A ideia básica já previamente avançada por José Sócrates é a de que a consolidação orçamental realizada pelo governo, durante esta legislatura, permite uma maior folga para fazer face aos efeitos nefastos da crise em Portugal. A redução do défice orçamental possibilita ao governo tomar medidas sociais e fazer investimentos públicos, de modo a impedir a estagnação da economia e o aumento descontrolado do desemprego. Além disso, Augusto Santos Silva justificou a fragilidade nacional como resultado de três factores, muito sumariamente, a dependência energética, a divida externa e o défice alimentar, destacando as políticas já implementadas pelo governo para reduzir esta fragilidade estrutural nacional, nomeadamente a modernização da economia portuguesa, através da aposta nas energias renováveis e nas novas tecnologias, entre outros projectos já apresentados. Falou também nos grandes investimentos públicos previstos, bem como dos investimentos feitos na eficiência energética, na modernização do parque escolar e na qualificação dos portugueses. Rui Rio acusou o governo de estar a "hipotecar o país", endividando as gerações futuras. A sua proposta foi a de fazer investimentos públicos com efeitos multiplicadores. Gastar mais agora, com o objectivo de garantir alguns postos de trabalho precários, pode ser deixar uma factura demasiado elevada que compromete as gerações futuras, sem sentido de Estado. Ilda Figueiredo destacou a destruição do aparelho produtivo nacional, após a entrada de Portugal na zona Euro, tanto ao nível da agricultura como ao nível da indústria, que esmagou a nossa soberania alimentar. Nuno Melo concentrou-se no ataque ao discurso de José Sócrates, acusando o Estado de ser "mau pagador" e de não prever uma "baixa de impostos", e Miguel Portas centrou-se naquilo que considera serem os maiores perigos da crise económica, o desemprego e a deflação, recomendando a taxação das mais-valias dos muito ricos e o fim dos offshores. Na plateia, alguém exprimiu o seu "ódio pessoal" pela figura de José Sócrates, outro elogiou a sua competência comunicativa, e, finalmente, uma ave de outro mundo manifestou o seu saudosismo neoliberal.
Com este tipo de troca de argumentos, Portugal não tem futuro. O debate entre o governo e as oposições revela claramente que, neste momento, o PS é a única alternativa política credível a si mesmo: José Sócrates pode, portanto, pedir aos portugueses a renovação da maioria absoluta nas próximas eleições legislativas, alegando que todos os governos do PSD foram responsáveis pelo agravamento do atraso estrutural nacional e pelo surto de uma forma perversa de corrupção. Todas as medidas neoliberais tomadas pelos governos do PSD foram, no fundo, subvertidas pelos seus membros de modo a satisfazer os seus próprios interesses privados: a classe dirigente converteu-se em classe empresarial com forte propensão pela especulação financeira. O mito de que "o PSD governa bem e o PS governa mal" é mais uma mentira que circula pelos canais da comunicação social. Em Portugal, neoliberalismo significa corrupção: as privatizações realizadas, que o PSD, em coligação com o CDS, desejava alargar à Caixa Geral de Depósitos, ao Sistema de Saúde e à própria Segurança Social, foram feitas não a favor de uma verdadeira economia de mercado, mas para beneficiar os próprios dirigentes políticos. O PSD e o CDS não defendem o neoliberalismo, isto é, não confiam realmente nas leis da economia de mercado, porque, enquanto poder político instituído, usaram o Estado não para promover o crescimento económico salutar, mas para fomentar uma fonte de acumulação de capital mediada pelo poder político: a sua ambição sempre foi transformarem-se em empresários especulativos ricos, sem fomentar o fortalecimento de uma economia capaz de criar emprego e riqueza nacional. O Ministro dos Assuntos Parlamentares soube confrontar a Direita com o seu vazio político e ideológico, mostrando que o sorriso de Rui Rio significava ausência de projectos e de alternativas: os partidos da Direita portuguesa não são efectivamente alternativa ao PS.
A anulação da credibilidade dos partidos situados à esquerda (sic) do PS foi feita pela cidadã chamada Fátima Campos Ferreira: Afinal, onde vão buscar o dinheiro para promover as políticas económicas que defendem? E Augusto Santos Silva comprovou o vazio à esquerda do PS: Ilda Figueiredo falou e falou muito, de um modo gritante e ruidoso que irritou Nuno Melo, mas, para além de afirmar o carácter imperialista da União Europeia, a sua voz ficou silenciosa quando lhe foi perguntado qual o modelo de sociedade que defendia. Este silêncio é sintomático: o PCP sonha com o passado que se desmoronou com a Queda do Muro de Berlim, envolvendo-se em manifestações sindicais condenadas por uma autoridade que diz respeitar, a autoridade revolucionária de Lenine. Quanto a Miguel Portas, o problema resolve-se taxando as mais-valias dos ricos e abolindo os paraísos fiscais. Surpreendente é o facto destes partidos do protesto organizado serem incapazes de apresentar alternativas políticas: a defesa da economia feita por Miguel Portas revela falta de imaginação política. Neste momento, em Portugal, não há alternativa política credível ao PS e, o que é pior, na sociedade portuguesa não há oposição. Todos falam a partir da mesma cartilha económica e, por isso, as diferenças ideológicas aparecem esbatidas num discurso único que tende a defender o status quo da chamada classe média, aquela classe que emergiu da parasitação do Estado Ultra-Centralizado contra o interesse nacional e a pátria (terra natal) a que todos os portugueses têm constitucionalmente direito. Neste coro metabolicamente reduzido, a oposição sem oposição, a ambição pela manutenção do seu lugar ao sol da corrupção estabelecida, a única voz dissonante foi a do Ministro quando disse que esta é a hora do Estado, desde que o PS aproveite esta oportunidade histórica para reformar substancialmente o Estado, libertando-o da corrupção e da mediocridade visceral. O pseudo-neoliberalismo português deve ser confrontado com as suas próprias aberrações: a racionalidade da economia de mercado é, como mostrou Marx, auto-contraditória, porque as próprias leis que a regem conduzem à sua destruição, a qual só pode ser evitada através de uma intervenção responsável do Estado.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 4 de janeiro de 2009

Leitura de Friedrich Engels

«Pela teoria feuerbachiana da moral, a Bolsa é o templo supremo da moralidade... desde que se especule de maneira certa. Se o meu desejo de felicidade me leva à Bolsa e, uma vez ali, sei calcular de modo preciso as consequências dos meus actos, de modo que estes só me tragam vantagens e nenhum prejuízo, isto é, se consigo ganhar sempre, então terei cumprido a prescrição de Feuerbach. E, com isso, não prejudico sequer o desejo de felicidade de outro homem, tão legítimo quanto o meu, pois ele dirigiu-se à Bolsa tão voluntariamente como eu e, ao tratar comigo o negócio da especulação, obedecia ao seu desejo de felicidade, nem mais nem menos como eu obedecia ao meu. E se perde o seu dinheiro, isso mostra que a sua acção era imoral, por ter calculado mal as suas consequências. E, ao castigá-lo como merece, posso inclusivamente orgulhar-me como se fosse um Radamante moderno. Na Bolsa também impera o amor, na medida em que este é algo mais do que uma frase puramente sentimental, pois aqui cada homem encontra noutro homem a satisfação do seu desejo de felicidade, que é exactamente aquilo que o amor procura e de que, na prática, ele cuida. Portanto, se jogo na Bolsa, calculando bem as consequências das minhas operações, isto é, com êxito, actuo ajustando-me aos postulados mais severos da moral feuerbachiana, e, além disso, torno-me rico. Em outros termos, a moral de Feuerbach é feita, sob medida, para a actual sociedade capitalista, embora o seu autor não o quisesse nem o suspeitasse». (Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã)
Friedrich Engels (1820-1895) é, juntamente com Karl Marx, um dos pais fundadores da "interpretação marxista da história" e do socialismo moderno e, no entanto, até mesmo no seio da marxismo, tem sido desprezado, como se não tivesse participado activa e originalmente na elaboração dessa teoria. Engels foi não somente um "homem de grande talento" que colaborou com Karl Marx (Max Beer), mas sobretudo um Grande Filósofo, cujo génio é equiparável ao do próprio Marx: "Engels não foi um brilhante auxiliar, mas um homem de um génio igual ao de Marx, e complementar deste" (Henri Lefevre).
Na sua obra "Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã", numa nota de rodapé, Engels escreveu "algumas palavras" sobre a sua participação na construção da teoria marxista: "Que tive certa participação independente na fundamentação e, acima de tudo, na elaboração da teoria, antes e durante os quarenta anos da minha colaboração com Marx, é coisa que eu próprio não posso negar. Porém, a parte mais considerável das ideias directrizes principais, particularmente no terreno económico e histórico, e especialmente a sua formulação nítida e definitiva, cabem a Marx. A contribuição que eu trouxe, com excepção, quando muito, de alguns ramos especializados, Marx também teria podido trazê-la, mesmo sem mim. Em compensação, eu jamais teria feito o que Marx conseguiu fazer. Marx tinha mais envergadura e via mais longe, mais ampla e mais rapidamente que todos nós outros. Marx era um génio; nós outros, no máximo, homens de talento. Sem ele, a teoria estaria hoje muito longe de ser o que é. Por isso, ela tem legitimamente o seu nome". A modéstia de Engels ajudou a criar a imagem de que o marxismo era fundamentalmente uma criação de Marx: o seu talento aparece subordinado ao génio de Marx. Contudo, não nega a originalidade do seu contributo que, nesta nota, restringe a certos "ramos especializados" e, como diz, acessíveis a Marx. Em 1843, Engels publica, nos Anais Franco-Alemães de Ruge, um estudo económico, Esboço de uma Crítica da Economia Política, onde avança com a ideia de que a chave da sociedade civil se encontrava na economia. Este esboço contém já muitos elementos da interpretação "marxista" da história: a diferenciação crescente das classes sociais, as crises de superprodução cada vez mais profundas e a ligação estrutural de todas as contradições económicas à propriedade privada dos meios de produção. A história hegeliana era fundamentalmente uma história política, mas, na sua estadia em Manchester, Engels apercebeu-se de que os factos económicos "constituíam, pelo menos no mundo moderno, uma potência histórica decisiva": formavam os fundamentos dos antagonismos de classes. Engels compreendeu que esses antagonismos sociais, pelo menos em Inglaterra, onde a grande indústria tinha provocado o seu pleno desenvolvimento, constituíam "as bases dos partidos e as fontes das lutas políticas". Marx elogiou este estudo que lhe forneceu o conhecimento dos factos económicos, levando-o a iniciar os seus próprios estudos de economia política. Engels promoveu esta viragem no pensamento de Marx da filosofia do proletariado para a crítica da economia política: os "Manuscritos de 1844" iniciam a crítica da economia política. Este contributo de Engels foi decisivo e, de certo modo, conduziu Marx a elaborar teoricamente a "hipótese de Engels" naquela que é a obra mais importante do mundo moderno: "O Capital" (1859).
O marxismo é, portanto, uma criação conjunta de Marx e Engels. A amizade que os uniu está na base da génese do marxismo. No primeiro encontro em Paris (1844), ambos "hegelianos de Esquerda" tiveram certamente oportunidade de verificar o seu "acordo total em todos os domínios teóricos": as afinidades teóricas traduziram-se numa colaboração que duraria toda a sua vida. Marx definiu o espírito dessa colaboração estreita deste modo: Decidimos "trabalhar em conjunto para desenvolver a oposição existente entre a nossa concepção e a concepção ideológica da filosofia alemã, o que significa, na realidade, acertar as contas com a nossa consciência filosófica anterior". Produziram diversas obras em conjunto, entre as quais "A Sagrada Família" (1845), "A Ideologia Alemã" (1845/46) e o "Manifesto do Partido Comunista" (1848). Em 1845, Engels publica outra obra que atraiu as atenções gerais: "A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra", onde o proletariado é visto não como "o meio para a filosofia se realizar", como no Jovem-Marx, mas como o agente histórico da revolução social. Depois da morte de Karl Marx (1818-1883), Engels trabalhou na organização dos manuscritos deixados pelo amigo e publicou o segundo e o terceiro volumes de "O Capital" em 1885 e 1894. Antes de 1914, era Engels mais do que Marx o principal responsável pela difusão das ideias marxistas. Obras tais como "Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico" (1880), "Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã" (1888) e "Anti-Dühring" (1878), bem com "A Origem da Família, da Propriedade e do Estado" (1884) e a inacabada "Dialéctica da Natureza" (1878?), marcaram fortemente a interpretação feita posteriormente do pensamento de Marx e, de certo modo, estão na origem do marxismo-leninismo como viria a ser interpretado por Estaline: o marxismo foi reduzido a uma mera concepção do mundo dotada de um propósito pragmático e instrumental ou, como diz Marcuse na sua brilhante análise do marxismo soviético, a interpretação "comunista" assumiu o carácter de uma behavioral science. Isto significa que a dialéctica foi transformada de uma forma de pensamento crítico numa concepção do mundo e num método universal com normas e regulações rigidamente determinadas. O próprio marxismo deixou de ser uma teoria crítica capaz de funcionar como o órgão da consciência e da prática revolucionárias e passou a ser encarado como uma ideologia, isto é, como um elemento da superestrutura de um sistema de dominação estabelecido. A codificação da dialéctica em "sistema filosófico", a mera inversão materialista de Hegel, constitui a própria destruição da dialéctica: a essência da dialéctica, isto é, a compreensão de uma totalidade social intrinsecamente antagónica em marcha, revolta-se contra a sua codificação num sistema acabado. A revolta da dialéctica contra a sua codificação foi protagonizada pelo chamado marxismo ocidental, aquele que tem em Karl Korsch e Georg Lukács os seus principais interpretes.
Com este post, procurei chamar a atenção para a originalidade do pensamento filosófico e político de Engels, isto é, para a interpretação que fez do marxismo, sem no entanto apresentar uma interpretação cabal da sua filosofia. Embora seguindo muitas das orientações metodológicas dadas por Engels, entre as quais a distinção positivista entre materialismo histórico (ciência da História) e materialismo dialéctico (filosofia marxista), o marxismo ocidental, ao procurar demarcar-se do marxismo soviético, foi muito injusto com Engels, esquecendo não só o seu contributo decisivo para a construção da teoria crítica (designação dada por Horkheimer ao marxismo), mas também o seu papel ímpar no desenvolvimento da consciência de classe do proletariado mundial. O regresso a Marx foi, ao mesmo tempo, um repúdio da dialéctica da natureza de Engels e um regresso a Hegel, não ao Hegel da "Ciência da Lógica" e da "Enciclopédia das Ciências Filosóficas", elogiado por Lenine e até por Estaline, mas ao Hegel da "Fenomenologia do Espírito". Porém, este repúdio de Engels esquece que foi este filósofo marxista que forneceu a orientação metodológica para compreender de modo claro esta obra do Jovem-Hegel: a Fenomenologia do Espírito foi considerada por Engels como "um paralelo da embriologia e da paleontologia do espírito", "o desenvolvimento da consciência individual concebido, através das suas diferentes etapas, como a reprodução abreviada das fases por que, historicamente, passa a consciência do homem". O mesmo Engels que, na "Dialéctica da Natureza", afirma que "o trabalho criou o próprio homem". A história desta colaboração que está na origem da maior filosofia dos Tempos Modernos ainda está por fazer e, neste momento, após a Queda do Muro de Berlim, ela pode ser realizada de modo "imparcial".
Para aguçar o apetite pela leitura de Engels, vou finalizar com duas referências tiradas de "Ludwig Feuerbach". Em termos muito simples, a tese geral que preside a esta obra consiste em mostrar que Feuerbach, bem como os outros hegelianos, foi incapaz de superar verdadeiramente Hegel, tarefa que foi realizada plenamente pela obra comum de Marx e Engels.
Teoria da Maldade. Na sua moral "idealista", Feuerbach abordou de forma superficial a antinomia do bem e do mal, ficando aquém de Hegel que pretende falsamente ter invertido de forma materialista. Na "Enciclopédia das Ciências Filosóficas", Hegel escreve: "Quando se diz que o homem é bom por natureza, pensa-se afirmar algo de muito grandioso; mas esquece-se que se diz algo de muito mais grandioso quando se afirma que o homem é mau por natureza". Isto significa que, para Hegel, "a maldade é a forma que exprime a força propulsora do desenvolvimento histórico". Feuerbach não capta esta ideia do papel desempenhado pela maldade humana no desenrolar da história, vendo no amor o "cimento" de todas as relações humanas. Marx compreendeu que a violência é a "parteira da história" num duplo sentido: 1) "todo o novo progresso representa um ultraje a algo de santificado, uma revolta contra as velhas condições, agonizantes mas consagradas pelo hábito", e, 2) "desde o surgimento dos antagonismos de classe, são exactamente as paixões más dos homens, a cobiça e a sede de domínio que servem de alavanca ao progresso histórico, como, por exemplo, a história do feudalismo e da burguesia constitui uma contínua comprovação" que se estende até a actual crise financeira e económica. Embora retome esta ideia hegeliana, Marx supera Hegel, porque a história hegeliana se converte, na dialéctica marxista, em pré-história: a história é, portanto, um processo aberto.
O Abuso da Etimologia em Filosofia. A filosofia de Engels é exposta de modo rigoroso numa linguagem simples, isto é, acessível àqueles que não têm formação filosófica profunda, e, de modo diferente da exposição de Marx, para já não falar de Hegel, o "obscuro" (Adorno, Bloch), mergulha no concreto e na realidade. Engels critica em Feuerbach precisamente aquilo que se tornou tão banal na filosofia contemporânea, sobretudo a partir de Heidegger: o uso e abuso do método das etimologias. Feuerbach concebe as relações puramente humanas como a nova e verdadeira religião, no sentido etimológico do termo: "A palavra religião vem de «religare» e, na origem, significa união. Qualquer união de dois seres humanos é, portanto, uma religião. Estas divagações etimológicas constituem o último recurso da filosofia idealista. Pretende-se que tenha valor, não o que as palavras significam segundo o desenvolvimento histórico do seu emprego real, mas o significado que deveriam ter na sua origem etimológica. E, deste modo, glorificam-se como uma «religião» o amor entre os dois sexos e as uniões sexuais, pura e simplesmente para que não desapareça da língua a palavra religião, tão cara à recordação idealista". O recurso à etimologia visa não somente conservar na língua a palavra no seu "sentido originário", como também e sobretudo manter a própria realidade visada por esse sentido originário, na tentativa derradeira de fechar as portas ao futuro e ao novo que ele promete, o qual só pode ser realizado através de uma luta de vida ou morte (Hegel): "a violência é, como viu Marx, a parteira de toda a velha sociedade prenhe de uma nova" sociedade. (Não posso desenvolver mais o comentário destas teses: ele seria mais longo do que a própria obra de Engels.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Hegel: Estado e Crise Financeira

O mundo actual é, de certo modo, hegeliano às avessas, no sentido de voltar, neste momento de crise financeira e económica, após três pesadas décadas de predomínio exclusivo e totalitário do neoliberalismo, a afirmar a realidade e o valor do Estado. A crítica hegeliana do liberalismo económico continua a ser pertinente, embora o Estado presente não coincida inteiramente com o Estado racional de Hegel: o Estado que se realizou depois de Hegel, especialmente o Estado actual, é a grande casa da corrupção, onde perdura a ausência de horizontes e onde a burocracia revela a sua essência que Max Weber descreve como uma jaula de ferro. A racionalização do mundo pela ciência, pela administração e pela gestão produz uma servidão que ameaça a dignidade do homem, porque o sistema de produção eficaz é também um sistema de dominação e de exploração do homem pelo homem. A humanidade foi despojada das suas virtudes mais elevadas e, neste mundo desencantado, o homem encontra-se só e dilacerado, diante da escolha do seu próprio destino.
Saber burocrático e força bruta são as duas faces do Estado Moderno. Saber e poder harmonizaram-se de tal modo que se identificam com a Razão. Os homens de Estado têm necessidade de informações que usam com o objectivo de manipular os cidadãos, ou melhor, as multidões solitárias e ruminantes, privando o Estado das tarefas humanistas que conservava em Hegel. Com a organização social da ciência e da investigação, as ciências foram inseridas nos aparelhos de produção, de consumo e de controle, e o saber foi relegado para um ghetto que, em Portugal, já não é a Universidade. Os homens de Estado dispõem dos seus próprios serviços de informação e de equipas especializadas. Para estas criaturas privadas, egoístas e abusadoras do património nacional e da dignidade do Estado, o saber funciona como um banco de dados: o conhecimento foi reduzido a um saber institucional que, em vez de ocupar o centro, como sucedia na filosofia política de Hegel, foi relegado para uma posição marginal. O saber institucional serve duplamente, na materialidade (produção) e na idealidade (política), mas já não reina. O Estado serve-se do saber e torna-se cada vez mais a grande casa civil onde os políticos e os funcionários públicos perseguem os seus próprios interesses particulares, de modo a tornarem-se empresários, mediante uma sofisticada engenharia financeira, manipulação perversa das leis, tráfego de influência, cunhismo e abuso do poder, e a garantirem o seu futuro, bem como o das respectivas famílias. Aceitar esta situação de monstruosidade política é colocar-se ao serviço destes falsos homens de Estado, seleccionados corruptamente, em quartos escuros, pelos seus próprios aparelhos políticos e partidários. Os chamados "entendidos" formam conselhos e tornam-se conselheiros dos governantes, a título privado e/ou público, enquanto os que não são competentes em coisa nenhuma, mas revelam uma habilidade na manipulação dos homens, na feitura das leis e dos decretos e na utilização das competências, se tornam chefes ou lideres políticos. Porém, todos eles deixaram de zelar pelo interesse comum, isto é, pela universalidade: o seu objectivo é satisfazer os seus próprios interesses particulares. Paradoxalmente, a distinção hegeliana entre Estado e Sociedade Civil tende a desaparecer ou a esbater-se num oceano de corrupção generalizada, o qual parece ser refractário à própria astúcia da razão. Ou, na minha terminologia, a actual sociedade metabolicamente reduzida não tem história: um eterno retorno do mesmo.
Hegel concebe o Estado como uma entidade essencialmente separada e distinta da sociedade civil (Die bürgerliche Geselschaft), a qual é constituída pelo conjunto dos homens privados, separados do grupo natural que é a família e carentes de consciência nítida de quererem a sua unidade substancial. A função da sociedade civil é conferir "segurança e protecção à propriedade (privada) e à liberdade pessoal" e o seu fim último reside no interesse do indivíduo. A sociedade civil é a sociedade da burguesia, aquela que foi implantada em 1789 e aplaudida por Adam Smith, na qual, segundo o liberalismo económico, os fins egoístas dos indivíduos acabariam por criar, sob a orientação da célebre mão invisível de Smith, a comunidade de interesses da sociedade, mais precisamente, um sistema de dependência mútua, no qual cada indivíduo perseguindo as suas próprias vantagens acabaria por promover naturalmente o interesse do todo. De acordo com esta descrição liberal do esquema social, tão grata ao pensamento do século XVIII, a sociedade como um todo progride através da interacção automática de interesses divergentes num mercado livre, sem necessidade da intervenção do Estado. A sociedade civil é, como viu Hegel, o Estado do liberalismo económico. Porém, a doutrina económica liberal não produz uma filosofia política capaz de garantir a associação livre dos homens. A economia capitalista de mercado desregulada não é efectivamente uma "economia da compaixão", mas uma economia de exploração que, apesar de gerar riqueza, não é suficientemente rica "para pagar o tributo ao excesso de pobreza e à sua consequente plebe" que gera continuamente. Ciente da conexão material entre o domínio da lei e o domínio da propriedade privada, Hegel é levado a superar a doutrina liberal, tal como foi elaborada por John Locke, bem como a rever criticamente a teoria do contrato social de Rousseau. O mundo das necessidades e da riqueza deve ser superado por um Estado suficientemente forte para encerrar em si mesmo a sociedade civil e garantir a realização e o reconhecimento da liberdade subjectiva do indivíduo.
A função do Estado é totalmente diferente: integrar e criar uma ordem que não dependa da cega correlação entre as necessidades e os esforços particulares para a sua perpetuação. O Estado tem como tarefa fundamental fazer coincidir os interesses particulares e o interesse geral, de modo a garantir e preservar o direito e a liberdade dos seus cidadãos. A ordem económica não constitui uma verdadeira associação e, por isso, o Estado tem como finalidade criar esta associação verdadeiramente livre e racional. Embora seja capaz de sustentar o direito inalienável do indivíduo, de expandir as necessidades dos homens e os meios para as satisfazer, de organizar a divisão do trabalho e de antecipar o domínio da lei, a sociedade civil é impelida para além dela mesma na direcção da realização do universal. Isto significa que todos esses elementos que já estão presentes na sociedade civil devem ser separados dos interesses particulares e submetidos a um poder situado acima do sistema competitivo da sociedade. Este poder que supera, conservando-a, a sociedade civil é o Estado, que, "como realidade em acto da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é, segundo Hegel, o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a Liberdade obtém o seu valor supremo e, assim, este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever". O liberalismo tende a confundir o Estado com a sociedade civil, "destinando-o à segurança e protecção da propriedade e da liberdade pessoais". E, quando isto acontece, "o interesse dos indivíduos enquanto tais é o fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado". Nesta perspectiva liberal, portanto, individualista, que remonta ao cristianismo, o Estado e as suas instituições manifestam-se como coacções contra as quais os indivíduos particulares se revoltam, de modo a defender a sua liberdade empírica e o seu mundo da particularidade. O Estado hegeliano supera esta forma de relação do Estado com o indivíduo: "Se o Estado é o espírito objectivo, então só como seu membro é que o indivíduo tem objectividade, verdade e moralidade". O homem enquanto membro de um tal Estado universal deixa de ser "burguês" (Bürger) e torna-se cidadão: um homem plenamente satisfeito, formado pelo Estado no qual vive e age e no qual reconhece e é reconhecido por todos os outros cidadãos. Esta ideia hegeliana foi conservada pelo "marxismo ocidental" (Merleau-Ponty): "O indivíduo totalmente desenvolvido é a consumação de uma sociedade totalmente desenvolvida. A emancipação do indivíduo não é uma emancipação da sociedade, mas o resultado da libertação da sociedade da atomização" (Max Horkheimer), que atingiu o seu extremo na moderna era da cultura de massas e do consumo irracional. (Precisamos urgentemente de uma Declaração Universal dos Deveres do Homem e do Cidadão!)
A concepção hegeliana do Estado é dialéctica e, por isso, não pode ser vista como uma idolatria do Estado autoritário, geralmente atribuída a Thomas Hobbes e terrivelmente consumada no pensamento político de Joseph de Maistre. A dialéctica é, por natureza, avessa à reificação social e conceptual, bem como ao próprio sistema absoluto tecido por Hegel. O Estado de Direito ou o Direito da Razão de Hegel nasce do atomismo dos interesses egoístas, da "cruz do presente", cuja contrapartida é a "rosa dialéctica". Hegel não confere ao Estado uma dignidade absoluta, mas somente uma dignidade objectiva. O Estado hegeliano encarna o espírito objectivo e, enquanto tal, subordina-se ao espírito absoluto: a Arte, a Religião e a Filosofia. A razão não está, portanto, condenada a consumar-se no Estado. Embora não seja limitado pelo Direito Internacional, o direito de Estado não é o direito final, porque, na filosofia hegeliana da História, está claramente submetido ao "direito do Espírito Universal que é o incondicional absoluto". O Estado hegeliano encontra o seu conteúdo real na História Universal (Weltgeschichte), isto é, no reino do espírito universal que contém "a verdade suprema absoluta". A relação entre os Estados nacionais autónomos é mediada pelo Espírito que se eleva acima deles e, deste modo, os unifica. Para Hegel, "a história universal é o progresso na consciência da liberdade". Isto significa que o verdadeiro sujeito da história não é o indivíduo mas o universal. A essência do universal é o espírito e a essência do espírito é a liberdade. Esta começa com a propriedade, expande-se no domínio universal da lei que reconhece e assegura igual direito de propriedade e completa-se no Estado que enfrenta, reconciliando-os, os antagonismos que acompanham a liberdade de propriedade. O Estado é, para Hegel, "a realização da liberdade". Dominando a sociedade civil, o Estado garante a liberdade do indivíduo e do seu verdadeiro interesse: "o destino dos indivíduos está em participarem na vida colectiva". Embora tenha uma ou outra feição musculada, o Estado hegeliano não abandona "os pobres ao seu destino", entregando-os "à mendicidade pública" e assistindo passivamente à "facilidade para concentrar em poucas mãos riquezas desproporcionadas". Não é, portanto, um Estado liberal, "um Estado extrínseco, o Estado da carência e do intelecto", que zela unicamente pelos interesses privados de uma classe que acumula riquezas descomunais a expensas da pauperização alargada da plebe, mas um Estado que, superando os antagonismos do "reino animal espiritual" (Das geistige Tierreich), o mundo da riqueza, visa garantir o "pleno desenvolvimento do indivíduo", mais precisamente de todos os indivíduos, independentemente da sua proveniência social.
A análise hegeliana do mundo económico é profética quando descreve as suas contradições imanentes e, antecipa, em alguns aspectos, a crítica marxista da economia política. A liberdade que o homem privado atinge na procura do seu interesse pessoal é insuficiente para garantir a realização do universal: a "harmonia" assente na divisão do trabalho e nas leis de mercado ameaça romper-se a todo o momento. Hegel estava ciente de que a "doutrina económica" era insuficiente para produzir uma filosofia política: a sociedade civil, o mundo económico, é incapaz de resolver as suas contradições imanentes e, por isso, Hegel elabora uma concepção autónoma do Estado, atribuindo-lhe a missão superior de unificar os interesses privados e o interesse universal, de modo a salvaguardar a ordem social dos antagonismos que a dilaceram e que a ameaçam destruir. Embora tenha assimilado muito bem a economia clássica burguesa (Smith, Say, Ricardo), Hegel parece não compreender que o capitalismo, além de ser uma imensa troca de equivalências, é também, a um nível superior e mais profundo, uma imensa troca de não-equivalências. Na sociedade civil, manifestam-se forças de desproporção e de ruptura que tendem a desequilibrar periodicamente o sistema capitalista. Foi Marx que descobriu que o capitalismo contém um conflito essencial entre forças que tendem a equilibrar-se e forças que tendem a desequilibrar-se: a contradição fundamental do sistema capitalista, que não produz para satisfazer as necessidades humanas mas para obter lucro, não reside entre a produção e o consumo, mas sim entre o carácter socialmente produtivo do trabalho e a apropriação privada dos produtos do trabalho, da qual resulta uma série de conflitos económicos, sociais, ideológicos e políticos. Isto significa que, segundo Marx, "a tendência interna do capitalismo para o equilíbrio apenas se manifesta durante e através da crise". Sem um "plano", as proporções determinadas por Marx entram necessariamente em crise. Neste aspecto, o pensamento de Marx não se distancia muito do de Hegel, pelo menos ao nível dos meios: compete ao Estado impor um "plano" capaz de controlar e regular o mundo económico constantemente ameaçado pelas desproporções. É certo que os marxistas têm razão quando destacam a natureza de classe do Estado, afirmando que, nos períodos de crise como o actual período de crise económica geradora de desemprego, miséria e conflitualidade gratuita (não-essencial), o Estado intervém de modo a "socializar o prejuízo dos capitalistas" (Lenine, Sweezy), mas o Estado hegeliano pretende estar situado acima dos interesses privados. Enquanto não tivermos uma alternativa económica viável capaz de substituir a economia capitalista de mercado, convém defender a soberania radical do Estado e o seu papel regulador na esfera económica, exigindo-lhe que garanta efectivamente o interesse universal e a liberdade dos seus cidadãos. Hegel sempre foi solidário com a causa dos "mais pobres", ou seja, sempre lutou contra a pobreza gerada pelo mundo da riqueza, isto é, pelo capitalismo desde a sua origem sangrenta no processo de acumulação primitiva do capital (Marx): o seu ideal de juventude acompanhou-o durante toda a sua vida. A filosofia do Direito de Hegel defende os princípios da publicidade na administração pública e no tribunal, defende a emancipação dos judeus, a igualdade de direitos de todos os cidadãos do Estado, a autonomia administrativa do município, a representação popular, e, acima de tudo, defende um regime constitucional. Ao colocar o Estado acima da sociedade civil, Hegel afirma a autonomia total da esfera política, confiando-lhe a nobre missão de impedir que os conflitos gerados na esfera da produção colapsem a ordem social, ampliando a mendicidade e a miséria, e, portanto, de defender uma ética que desperte o contacto do homem com a ágora, com a praça pública, com a res publica, com a colectividade. O Direito hegeliano é a negação da negação, isto é, a realização da verdadeira liberdade.
Contudo, há algo no seio do Estado hegeliano que subverte a sua lógica de funcionamento: o corpo de funcionários do Estado que devia zelar pelo interesse universal pode, em vez disso, procurar usar todos os seus "aparelhos" e dispositivos em função dos seus interesses privados. "Sob o capitalismo, o poder e o dinheiro tornaram-se duas grandezas comensuráveis. Uma determinada quantia de dinheiro é convertível numa determinada forma de poder, e é possível calcular o valor de troca de qualquer poder". Walter Benjamin usa o termo corrupção para designar a aplicação deste procedimento que conecta diversas entidades entre si, através de um "sistema de distribuição" que funciona em curto-circuito: uma verdadeira teia de interesses privados que liga os poderes públicos aos poderes económicos privados. Os corruptos denunciam-se sempre que comparam o "governo da economia nacional" com o "governo da economia doméstica". Com esta "analogia", não só reduzem tudo ao mundo privado, como também subordinam a política à economia, amaldiçoando a economia política, a verdadeira missão do Estado. A corrupção ameaça a autonomia do Estado e a sua supremacia universal sobre a sociedade civil: os sectores mais elevados de funcionários do Estado, em particular os governantes, podem usar o poder político para enriquecer e formar uma "nova classe dirigente" que se identifica com o poder económico e o mundo da alta finança. Todos estes indivíduos que usaram e continuam a usar o poder político para se converterem facilmente em "empresários", com depósitos chorudos em bancos de investimento, aqueles que geram grandes fortunas, como estamos a descobrir neste momento de crise financeira e económica, traíram a confiança do povo e lesaram a dignidade do Estado, o Estado de um Povo. Hegel não podia prever este desenvolvimento nefasto do Estado, que o amarra ao princípio da subjectividade emocional e do egoísmo predominante na sociedade civil, porque lutava pela definição de um Estado que começava a nascer no seu tempo. Porém, o seu elogio da guerra permite-nos criar um mecanismo interno ao Estado que previna a corrupção e liberte o futuro da presença nefasta desta classe de "novos-ricos", ou melhor, de criminosos de colarinho-branco: a Pena de Morte.
J Francisco Saraiva de Sousa