quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Escola do Porto e Antropologia Existencial

«Mas um outro e mais sério perigo vai levantar o uso da inteligência nas sociedades primitivas - a descoberta da Morte. O animal vive sem esse conhecimento, mergulhado no mundo pelas sensações, ocupando a consciência com a acção, obturando o clamor do passado na adaptação de agora e vivendo o futuro como presente na ocupação sucessiva dos caminhos das tendências ou instintos a satisfazer.
«Só o homem pensa e conhece a Morte. Ou porque seja, com Scheler, o único animal que objectiva, dizendo eu e o Mundo; ou porque, com Heidegger, viva um tempo primordial onde o passado se acusa no presente e onde o futuro se abre à projecção da sua angústia.
«Heidegger encontra, com efeito, na existência humana perdida no mundo e na existência humana reencontrando-se, os caracteres fenomenológicos da existência. A fenomenologia da existência é, para ele, a ontologia da realidade. Existência, que se encontra na existência humana, pois que nenhuma existência há que não esteja nesta envolvida - ele o conclui por um renovo do argumento ontológico de Santo Anselmo. O primeiro carácter dá a inquietação, o mal-estar e o medo, que o homem banal adormece na uniformidade do mal de todo o Mundo. O segundo carácter dá a angústia perante o desamparo da sua existência finita e humilhada. Esta angústia é, sobretudo, a angústia perante a Morte, temporalização primordial, em que o passado e o presente se englobam num verdadeiro futuro». (Leonardo Coimbra)
Este texto de Leonardo Coimbra, retirado da sua obra inacabada O Homem às Mãos com o Destino, revela a superioridade filosófica e científica dos pensadores portuenses em relação aos seus críticos lisboetas: o Porto Culto (Sampaio Bruno) pensava de modo ousado e profundamente actual, enquanto os seus críticos lisboetas teciam anacronismos estupidificantes ao abrigo de um racionalismo idealista e frouxo, protagonizado por António Sérgio, entre outras figuras ineptas para o pensamento filosófico. Os ilustres portuenses, em especial Sampaio Bruno, pensaram com rigor a condição nacional de estar exilado na sua própria Pátria, mas, como depressa compreenderam, esta condição não é apenas um traço tipicamente português, mas também e fundamentalmente uma estrutura antropológica: o homem é, por natureza, o ser-em-risco (Herder, Gehlen, Rilke), isto é, o único ser cuja existência se encontra perpetuamente ameaçada, e, no âmbito nacional, o homem portuense - o cidadão do Porto - é um ser duplamente em risco, pelo facto de ser português e, acima de tudo, portuense: Ser portuense é ser um estrangeiro nesta terra inóspita e sinistra a que se chama Portugal. Sampaio Bruno pensa a condição portuense em analogia com a condição dos judeus expulsos da pátria: o portuense é, como o judeu na diáspora, um estrangeiro em solo pátrio, mas esse facto não é negativo; pelo contrário, dá-lhe a distância suficiente para garantir a objectividade da sua perspectiva, fazendo dele um homem universal (Teixeira de Pascoaes). Ora, é na compreensão deste exílio portuense em terras de Portugal - «o calvário do exílio mental adentro de fronteiras» (Joel Serrão) - que devemos procurar as estruturas fundamentais da antropologia filosófica da Escola do Porto, libertando-a dessa violência selvagem que se chama filosofia portuguesa (Álvaro Ribeiro): «Ser portuense de cerca de 1870 é a primeira condição que em tal inquérito (das condições culturais a que reagiu o pensador portuense) importa relevar. Falta-nos ainda, entre tanta outra coisa que nos falta, uma fundamentada sociologia cultural dos vários meios portugueses. Mas a quem a ideia tenha tentado já, não é difícil distinguir as feições culturais sobrassalientes de Braga, Porto, Coimbra, Lisboa de 1870, por exemplo. No burgo portuense de então, e de algumas décadas atrás, pressente-se um sobressalto cultural, em desfasamento com formas tradicionais, que poeticamente se cristalizará na obra de Guilherme Braga (outro esquecido!), anunciador de Cesário, de Gomes Leal, de Guerra Junqueiro, e, até, de António Nobre, e culturalmente nas obras de Amorim Viana e de Bruno, a quem se não poderá atribuir a responsabilidade de não terem tido, nem então nem agora, continuadores à sua altura. Esse Porto tão português mas também avidamente interessado pelas novidades do estrangeiro, que o comboio depunha rapidamente nas mãos dos moços que, em política, em poesia e em filosofia, sonhavam fraternidade, eis uma das chaves para a compreensão do pensamento de Bruno» (Joel Serrão). Se não levarmos a cabo este movimento de separação e de afirmação da autonomia da Escola do Porto no contexto cultural nacional, não podemos pensar a Filosofia em língua portuguesa. Pensar o exílio de si mesmo e do Porto na Pátria é já pensar o homem universal como náufrago. Lançado sem outra opção no mundo pátrio que o hostiliza, o homem portuense começa por o ver como um poder inimigo e limitador da liberdade dos seus movimentos: Portugal surge-lhe como alguma coisa que limita a sua existência e a realização dos seus sonhos diurnos.
Aquilo que Sampaio Bruno pensou em termos de exílio foi, mais tarde, tematizado por Heidegger em termos de apatridade. Na Carta sobre o Humanismo, Heidegger escreve: «A apatridade torna-se um destino do mundo. É por isso que se torna necessário pensar este destino sob o ponto de vista ontológico-historial. O que Marx a partir de Hegel reconheceu, num sentido essencial e significativo, como alienação do homem, alcança, com as suas raízes, até a apatridade do homem moderno. Esta alienação é provocada e isto, a partir do destino do ser, na forma de Metafísica, é por ela consolidada e ao mesmo tempo por ela mesma encoberta, como apatridade. Pelo facto de Marx, enquanto experimenta a alienação, atingir uma dimensão essencial da história, a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia. Mas porque nem Husserl, nem, quanto eu saiba até agora, Sartre reconhecem que a dimensão essencial do elemento da História reside no ser, por isso, nem a Fenomenologia nem o Existencialismo atingem aquela dimensão, no seio da qual é, em primeiro lugar, possível um diálogo produtivo com o marxismo». No seio da Escola do Porto, coube a Sampaio Bruno estabelecer esse diálogo produtivo com o marxismo, com o objectivo de elaborar uma filosofia da História de Portugal no âmbito da História Mundial. O anti-positivismo de Sampaio Bruno, aliado à sua atracção pelo marxismo, lido à luz da Cabala, da qual resultou o esboço de uma interpretação económica da História de Portugal, aproxima a sua filosofia da história da filosofia do Princípio Esperança de Ernst Bloch: o humanismo da esperança histórica que Leonardo Coimbra retoma do humanismo cristão, encontra-o Sampaio Bruno na corrente quente (Bloch) do marxismo. Tal como Ernst Bloch, Sampaio Bruno opõe às teorias do gradualismo e do progresso científico e tecnológico enquanto libertador da humanidade uma interpretação messiânica secularizada da história, atribuindo ao homem a tarefa de salvar a humanidade, a natureza e o próprio Deus: a esperança é integrada nesse amplo projecto político de libertação universal, que, fundado no conhecimento rigoroso do mundo, aguarda activamente a realização de um futuro melhor - bonum futurum. O pensamento verdadeiramente genial de Sampaio Bruno gira em torno da sua ideia de Deus: «Deus é omnisciente actualmente, mas não é omnipotente». A noção da não omnipotência de Deus no mundo actual permite-lhe não só livrar Deus da responsabilidade pelo mal existente, como fez mais tarde Hans Jonas para pensar Deus depois de Auschwitz, como também afirmar que «o homem não está neste mundo nem para saber nem para gozar», mas sim para «ajudar a evolução da Natureza» (Novalis): «Trabalhando, para saber, a fim de poder», «o homem tem de dar contas do supremo dever que lhe incumbe, o dever para com a natureza inteira. Libertando-se a si, libertando os seus irmãos de espécie, ele contribuirá já para a libertação universal». O fim único e supremo do homem neste mundo é eliminar o mal existente, ajudando a evolução da natureza e resgatando Deus, sem no entanto pretender realizar o infinito no finito. A grande política - a luta fracturante contra o mal existente - implica uma moral cósmica - isto é, ecológica - que Sampaio Bruno retoma de Guerra Junqueiro, para mostrar a falsidade da moral religiosa, da moral filosófica e da moral ascética. A modernização de Portugal pode e deve ser levada a cabo sem o desencantamento do mundo.
A filosofia elaborada pela Escola do Porto vacila entre a Filosofia da Vida e a Filosofia da Existência, mas nessa vacilação fértil e criadora predomina a tendência vitalista que foi clara e exaustivamente tematizada por Leonardo Coimbra, o mais bergsoniano de todos os filósofos portuenses: «O que é a evolução? A evolução é, antes de mais, uma hipótese científica de que as ciências biológicas não podem prescindir. O como da evolução e o seu processo é que são discutíveis; a evolução é um facto e uma hipótese indispensável» (L. Coimbra). Leonardo Coimbra constrói o seu sistema criacionista em diálogo produtivo com a filosofia de Henri Bergson ou mesmo com o organicismo ampliado de Whitehead, sem abdicar do racionalismo aberto e da dialéctica da ciência: «O biologismo bergsonista é, pois, uma metafísica, uma ontologia, e não um simples legítimo protesto irracionalista à Schopenhaeur e Nietzsche contra a Razão, prisioneira de si mesma, que é a Razão de Kant» (L. Coimbra). A recepção portuense da filosofia de Nietzsche permitiu aos seus filósofos captar uma noção profunda que foi posteriormente explicitada por Heidegger como o culminar final - ou o fim - da metafísica. Leonardo Coimbra, tal como Guerra Junqueiro, Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes, demarca-se aqui do irracionalismo subjacente à filosofia da vontade de poder de Nietzsche, interpretada como um humanismo antropolátrico: «O esteticismo dum Nietzsche, descendente intelectual de Schopenhauer, é-o apenas em proximidade e acidente histórico e geográfico, pois é a mais alta afirmação da vontade de domínio, dando aos impulsos da vida o direito de tudo servirem à saúde, à alegria e à força biológica. Nietzsche é um protesto contra o objecto matemático-físico em nome do instinto, da propulsão das formidáveis latências biológicas. Mas essas forças, que mais não são que a vontade indisciplinada e colérica, desespiritualizada e dissipada em desejos e violências, são ainda as forças de um homem dono e conquistador universal. Tanto Nietzsche é apesar de tudo um cientista que aceitará o eterno retorno, logo que possa levar o entusiasmo da acção até à embriaguez de infindáveis repetições. Nietzsche perde-se na sombra da sua loucura, mas a Schopenhauer é só a negação total que o pode salvar» (L. Coimbra).
O pensamento de Leonardo Coimbra, em constante andamento de aprofundamento e de ampliação, culmina com a publicação da sua obra antropológica fundamental - A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, donde retirámos a última citação. Em Portugal, Teixeira de Pascoaes assume a crítica do cientismo da dispersão moderna e do maquinismo, opondo a procura ao encontro, o desejo à posse, enfim o Ser ao Ter. Leonardo Coimbra retoma a crítica do clericalismo científico de Pascoaes, fazendo dela uma chave de leitura crítica da história da filosofia moderna, desde Descartes - o seu fundador - até Bergson e Lenine, com incursões pela filosofia antiga e medieval. Esta leitura crítica do pensamento moderno toma a forma de uma crítica dos humanismos idealista e antropolátrico, em nome do humanismo cristão ou teocêntrico. Toda a filosofia moderna e contemporânea é dominada pelo humanismo antropolátrico, que «reduz o Universo a uma integral referência, subordinação e dependência do homem» e que «só é nítido depois do cristianismo e em consciente negação de Cristo, de Deus e do espírito, deixando o homem reduzido a uma vontade-força, a uma exclusiva vontade de domínio exaustivo e conquistador». Leonardo Coimbra identifica o humanismo antropolátrico com o cientismo, que, encarado como uma idolatria do homem e da produtividade indefinida, é promovido pelo «imperialismo do querer científico, inteiramente desviado do seu verdadeiro destino de elemento da cultura para exclusivo cultural». O cientismo exclusivista que resulta da excessiva estima da cultura científica fomentada pela Modernidade conduziu a uma redução do todo às conquistas do homem, isto é, a uma referência da realidade à vontade humana: o homo sapiens - o homem positivista de Comte - aparece como o verdadeiro tipo de homem, que tem, diante de si, uma natureza oferecida à sua omnipotência dominadora. A concepção do homem como centro e senhor da realidade consuma-se no materialismo dinâmico: o cientismo degrada-se e faz-se tecnicismo.
Heidegger pensou mais tarde a essência da técnica em termos muito próximos da crítica do cientismo de Leonardo Coimbra: «A essência do materialismo esconde-se na essência da técnica; sobre esta, não há dúvida, muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, na sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento». A técnica torna o ente manifesto e, enquanto forma da verdade do ser, funda-se na história da metafísica, como a sua fase final em que todo o ente aparece como a matéria de um trabalho, ou, como diz Coimbra, como matéria a ser trabalhada por uma razão dominadora e exploradora. Na peugada de Bergson, Leonardo Coimbra separa a invenção científica da invenção técnica, o que lhe permite pensar a essência do delírio do industrialismo como a orgia da invenção técnica numa sociedade entregue ao capitalismo selvagem. Na era da técnica, o humanismo niilista ou exaustivo é o último extremo do humanismo antropolátrico: «O homem é tudo. O resto, nada mais que matéria oferecida à sua ambição e conquista: - extroversão integral, expansão da vontade do homem sobre a anónima fisionomia do Todo; extroversão da mola que se distende, da toalha de água que irrompe, submergindo e dissolvendo tudo. É o gesto dum querer avassalador, acompanhado duma insaciável vontade, que, a cada conquista, sente uma força propulsora inesgotada, impelindo a novas e mais audaciosas conquistas. A cada movimento de expansão vencedora a vontade aumenta de ambição e cobiça, como se a mola ao distender-se readquirisse, pelo acaso dos encontros, novas forças de elasticidade acrescendo-lhe as possibilidades de novas expansões. Este humanismo de conquista, exaustivo de tudo o que não é homem ou humano serviço, é a forma da vontade do cientismo técnico, como o foi do homem essencialmente mágico». Da devastação da natureza e do seu domínio técnico faz eco este Soneto a Orfeu de Rilke:
«A máquina ameaça todo o conseguido, quando
se atreve a ser no espírito e não no obedecer.
Pra que a hesitação mais bela da mão magnífica não resplandeça
corta ela mais rígida a pedra para o edifício mais resoluto.
«Em nada fica atrás, para que uma vez lhe escapemos
e ela, luzente de óleo, se pertença na fábrica silenciosa.
Ela é a vida, - supõe saber mais que ninguém,
ela ordena e cria e destrói co'a mesma decisão.
«Mas para nós o existir é ainda encantado; em cem
lugares é ainda origem. Um jogo de puras
forças que ninguém toca que não ajoelhe e admire.
«Palavras extinguem-se ainda ternas ao tocar o Indizível...
E a música, sempre nova, das pedras mais frementes,
ergue no espaço inutilizável a sua casa divinizada».
Neste Soneto a Orfeu, Rilke contrapõe à exactidão da máquina a mão hesitante mas criativa do artesão, de que o poeta, o construtor da casa divinizada da palavra, é o mais alto representante: «A máquina moderna parece, por vezes, um volante louco, girando nas imensas voltas da sua inércia e levando os homens esfarrapados e feridos na vertigem da sua velocidade» (L. Coimbra). A Escola do Porto atribui ao Homem um lugar de tal modo privilegiado no esquema da evolução criadora ascendente que lhe cabe tornar o universo consciente e salvá-lo: «O lugar do homem é dum certo modo - o modo humilde - o centro da criação. O coração humano é como o filtro onde a natureza se purifica para servir a vida do Espírito. Somos semeados em corpo de morte e corrupção, ressuscitaremos em incorruptível corpo de imortalidade. A Parúsia marca a conclusão de toda a viagem do homem e da natureza desentendidos (porque o homem se afastou de Deus), viagem de inquieta procura, na névoa, de Deus de que o homem se separou, das linhas da harmonia duma natureza obscurecida por sua pecaminosa vontade de domínio e orgulho» (L. Coimbra). A tensão entre filosofia da vida e filosofia existencial que caracteriza a filosofia da Escola do Porto dificulta a explicitação das estruturas formais da sua antropologia filosófica. Ao abraçar o humanismo cristão, Leonardo Coimbra permite pensar a sua antropologia como uma interpretação existencial do homem, de cunho marcadamente personalista e dialógico: «O homem real não é o puro homem natural, mas sim o homem que optou e opta, o homem que usou mal a sua liberdade e que, enredando as suas relações com os seres e os mundos, as suas universais relações, vive longe de Deus e em desarmonia com o Universo. Não é ainda o homem decaído do estado de natureza, pois já vimos que tal estado é meramente abstracto e não explicaria a fome de infinito e eterno, a transfiguração e transmutação da vida que faça esta substancial, de lábios colados a uma fonte capaz e não em permanente caminho por entre fontes insuficientes para a sede que transporta. O homem real é o homem decaído dum estado sobrenatural, em que a natureza, dada em liberdade, pela liberdade se possui aumentando-se no amor a Deus ou diminuindo e perdendo-se em rebeldia e afastamento. Este o significado do pecado original. O homem autêntico, o homem da realidade é o ser de liberdade merecendo ou desmerecendo a vida deiforme, e, quando a não mereça, descendo da liberdade para a natureza até minguar e obscurecer a própria natureza no que ela teoricamente seria sem a Graça, que a põe em condições de escolher o Infinito Bem ou de Ele voluntariamente se afastar». O homem autêntico é um desterrado do mundo edénico para o mundo de prova, da dor, da angústia, do trabalho, que pode ser de perda ou de resgate. O criacionismo de Leonardo Coimbra é, desde logo, uma filosofia da liberdade e, neste aspecto, distingue-se claramente da filosofia biológica de Bergson: o primeiro é uma ontologia espiritual que opera a integração do ser no plano espiritual, enquanto a segunda é, primeiramente, uma ontologia vitalista que se abre depois à liberdade e à vida inventiva do Espírito através da religião mística ou dinâmica. Com o recurso à tese tomista da analogia do Ser, Coimbra mostra que a vida humana não é uma coisa, mas ser de liberdade, convocado e chamado ao mundo e à vida para tomar uma decisão responsável (Heidegger): a opção entre o Bem e o Mal, entre a proximidade de Deus e o afastamento de Deus, entre o resgate e a perda, enfim entre a existência autêntica e a existência inautêntica. Leonardo Coimbra elaborou uma teoria da Queda e do Resgate, que, nas suas últimas obras, recupera a teoria cristã do pecado original. Mas, se recuarmos aos seus escritos anteriores, onde expõe uma teoria social do conhecimento, fortemente marcada pela Escola Sociológica de Durkheim, levando em conta as suas leituras críticas de Schopenhauer e de Antero de Quental, podemos definir a perda - a vida inautêntica - como a queda da vida pessoal nas ideias e nas formas padronizadas de comportamento que a sociedade hipercapitalista impõe aos seus indivíduos através da organização social do seu mundo da vida. A Graça - Deus que habita o nosso núcleo essencial, não como hóspede mas como hospedeiro - fortalece o coração do homem, levando-o a assumir a missão política de libertar os outros, libertando-se a si mesmo: a Alegria resulta da libertação do núcleo essencial desse hóspede estranho e sinistro - a sociedade capitalista interiorizada - que pretende colonizá-lo e forçá-lo a agir em conformidade com o acordo social estabelecido que imobiliza a história e a sociedade num coisismo social e ideológico. Neste sentido, a filosofia tardia de Leonardo Coimbra é resgatada dessa prisão que seria o regresso a alguma forma de neotomismo, aproximando-a da filosofia tardia de Horkheimer que encerra um pensamento que tende para o teológico, isto é, para Deus, sem o qual não podemos salvar um sentido absoluto: «Deus é presente nas almas pelo acto primeiro da sua dádiva, mas nenhuma alma, porque é liberdade, existe sem aceitação e apropriação livre do seu ser de natureza e muito menos da sua possível vida sobrenatural. A opção dará o afastamento ou a aproximação de Deus, essa última determinação de todo o seu ser inclinando-se, ao sopro da Graça, em franca abertura da alma, é a marcha, em fé e esperança, de toda a vida dada à Caridade e em seu devotado serviço. Livremente, as almas se inclimam e, como caravelas animadas de força íntima e própria, vão de velas pandas no largo mar da vida, cheias de Graça, demandando o porto e abrigo seguro, o verdadeiro oceano sem limites de praias, de altura ou profundidade, - o mar da vida eterna e infinita» (L. Coimbra).
Kierkegaard estabeleceu uma distinção entre pensador existencial ou subjectivo e pensador sistemático ou abstracto, de modo a demarcar o seu conceito de existência da filosofia hegeliana: o pensador abstracto move-se numa zona de pensamento puro, sem ter em conta as necessidades particulares do seu existir, enquanto o pensador existencial se encontra ao serviço da sua própria existência. Teixeira de Pascoaes identifica-se nitidamente com o pensador existencial, o que lhe permite meditar a sua própria poesia e apresentar o seu homem universal como uma concepção existencial do homem. O conceito kierkegaardiano de existência remonta à distinção clássica entre a essentia (aquilo que uma coisa é em si, o seu íntimo quid) e a existencia (o existir dessa coisa, o seu quod) dos seres, para redefinir a existência como o existir do homem, tal como ele se dá e se afirma no terreno da vivência existencial. A existência aplica-se somente ao homem e, quando afirma que o mundo sem o homem seria absoluta inexistência, Teixeira de Pascoaes reserva este termo para significar exclusivamente a existência humana. Cada um dos pensadores da Escola do Porto pensa a existência humana de modo peculiar: Guerra Junqueiro pensa-a como regresso ao lar, Sampaio Bruno pensa-a como exílio e Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra pensam a existência humana como liberdade que se apreende a si mesma na referência a uma transcendência que é Deus, mas todos eles apreenderam a característica essencial que permite separar a existência da vida. A existência está para além de todas as determinações da vida e das coisas do mundo, como algo essencialmente indivisível que só cessa e desaparece quando o homem morre ou enlouquece: o homem pode perder tudo, incluindo a posse dos seus membros, o uso dos seus sentidos ou mesmo todo o seu físico defeituoso, sem por isso perder a última e mais profunda camada do seu ser, para a qual tudo é exterior, não essencial e estranho. A existência ou se apreende como um todo ou se perde como um todo. O despojamento, bem como a auto-libertação, a respeito de todas as coisas e da esfera do próprio corpo não afecta esse núcleo essencial que cada um de nós vive como uma estranheza cruel da alma para consigo ou como um seu recuo forçado para dentro de si mesma, até aos últimos confins do solitário eu, depois de perdido tudo o que o prendia à vida. Esta experiência íntima que nos confronta com a estranheza de tudo o que é familiar explicita-se no fenómeno da angústia perante o desamparo - o abandono - da existência finita e humilhada do homem e da sua atitude perante a morte. O mundo é-me estranho. Os outros - próximos ou distantes - são-me estranhos. A alegria é a minha alegria, o sofrimento é o meu sofrimento, a doença é a minha doença e a morte é a minha morte. A existência é a minha existência. A minha alma é uma estranha neste mundo que sou forçado a partilhar com outros que me são estranhos. Na estranheza radical do mundo e na angústia perante a morte, descubro o meu núcleo essencial que já habita a Casa de Deus. A experiência do nada ocorre, como compreendeu Leonardo Coimbra, na religiosidade oriental, tal como foi tematizada por Schopenhauer: o espírito asiático defende a supressão da vontade de viver, mediante a adopção de uma atitude de pura contemplação e a transmutação de todo o esforço em pura passividade. Buda recomenda aos seus discípulos o despojamento de tudo o que seja material, de modo a alcançarem o Nirvana, a única redenção a esperar para o sofrimento deste mundo. Porém, na filosofia da existência, a experiência do nada não visa a pura passividade; pelo contrário, a vivência do nada, como pano de fundo inóspito e sombrio que continuamente destrói todas as ligações, já fixadas e tornadas habituais, com a vida, coloca o homem num permanente estado de tensão, que o chama ao sentimento da sua missão e o força a tomar uma decisão responsável: optar pela flecha que é a sua existência autêntica. O homem autêntico não se perde no nada, como sucede com o budista asiático que se perde e se absorve no Nirvana, o seu derradeiro fim normal, abdicando do tempo em benefício do eterno, mas assume corajosamente a temporalidade e a historicidade que definem a sua condição humana e o seu modo de existir: «A temporalização, para usar a profunda linguagem de Heidegger, cristã é a que dá sentido a todas as outras formas do tempo - abstractos longínquos de realidades subordinadas à Realidade-Origem. Cristo aparece no tempo, dando-lhe vivo sentido histórico. Aparece, e as preformações em si insubsistentes, vazios aspirando uma plenitude, que pressentem e desconhecem, orientam-se no sentido do Fim, adquirindo significado e valor histórico. E as realidades futuras serão o crescimento, no tempo, do germe de eternidade depositado na história. Vozes falando a sua insuficiência, em falência de ser, sofreguidões de ser, esperando; vozes de oração e fé, almas de caridade, dessedentando-se - fons vincit sitientem - em sua presença mística: eis a história» (L. Coimbra). A referência a Cristo como a origem das coordenadas históricas é fundamentalmente um apelo à acção política: «Cristo é a resposta, é a mão do invisível dando-se na terra às desgraças suplicantes; é a história, porque é a Origem e o Fim e, entre os dois, a esperança unindo-os pelo humilde resplendor da caridade. Antes de Cristo a terra é um grito varando o Azul». Leonardo Coimbra herda da filosofia do idealismo alemão a noção da Filosofia como órgão da liberdade: «A filosofia é, pois, um órgão de maior proximidade política, isto é, de mais directa acção social. Humaniza e transmite, traz à síntese dinâmica da Razão os elementos analíticos de progresso, que lhe vêm chegando das ciências. /A filosofia, órgão da liberdade metafísica, será também o órgão das liberdades sociais, assimptóticas dessa liberdade ideal, que seria a própria vida espiritual na origem, nascimento e visão em Deus. Os olhos de Espinosa contemplando, lúcidos e serenos, o íntimo estremecimento de seu espírito no amor intelectual de Deus». Esta compreensão do pensamento de Leonardo Coimbra exige um recuo até às suas primeiras obras filosóficas, em particular Esboço de um Sistema Filosófico e A Razão Experimental: «A pessoa é autónoma e livre, porque, em frente da realidade social, não se limita a sofrer, mas reage e cria (novo mundo). Houve uma interferência do individual e do colectivo, que permitiu ao primeiro fazer-se pessoa e dirigir o segundo».
Quando o indivíduo humano se desvincula de tudo o que lhe é exterior e estranho, do seu corpo, do sentimento, da percepção ou mesmo da consciência, mergulhando na profundidade do seu núcleo essencial, descobre um estranho hóspede interior e imanente: «A religião é uma Relação, é a relação dum eu limitado com o Infinito que o sustenta, é essencialmente a atitude desse eu, que, vendo-se em angústia, insuficiência e possível abandono, se abre em humildade ao Invisível que o socorre. Esse Invisível é um estranho hóspede, que bateu para que se abrisse e foi, de pronto, reconhecido por nós como o único e autêntico dono da casa. É o hóspede que alimenta o hospedeiro e põe neste a confiança de que só perdendo-se nele, se reencontrará em substancial e imperecível realidade. O orgânico, a ressonância corporal, a simbólica que o corpo empresta é linguagem daquela atitude e nunca a substância do seu ser. O corpo salva-se pela penetração da vontade até aquele ponto em que ele, caindo e levantando-se mas obedecendo, serve a relação do homem com Deus» (L. Coimbra). A descoberta desse estranho hóspede - que é Deus transcendente e, ao mesmo tempo, imanente - na chama ou no fogo do núcleo essencial ajuda a clarificar duas noções fundamentais da antropologia existencial de Leonardo Coimbra: o humanismo antropolátrico é um humanismo de suficiência, enquanto o humanismo teocêntrico é um humanismo de insuficiência. Com a formulação desta oposição entre dois modos de ser ou de existir, Leonardo Coimbra pensa o humanismo cristão como a emergência da pessoa em contraposição ao idealismo: «O idealismo moderno é um humanismo de suficiência ou dispersão, em que o homem é o criador ou o ponto de passagem de forças impessoais que, atravessando-o e subindo-o por agora, acabarão por o dissolver no seu inconsciente anonimato». À noção do homem como ponto de referência e medida de todo o ser, Leonardo Coimbra opõe - em polémica com a interpretação de Berdiaeff - a problemática da liberdade - a exigência da liberdade metafísica - de Dostoiévski: «a consciência profunda do homem perante Deus». O homem vontade-força, o homem técnico, que se faz ponto de referência e medida de todo o ser está condenado a destruir a vida que a Terra acolhe: «Antropolatrismo é, pois, igual a niilismo». Assumindo-se como redentor do homem, o homem técnico que «espera vencer a morte pela operação cientista da ressurreição» leva a cabo a humanização integral, através de dois processos: a colocação de todos os seres ao serviço do homem ou a sua destruição e a multiplicação do homem até à colonização humana do universo. Leonardo Coimbra censura a audácia deste imperialismo cientista, não só por causa da sua concepção do homem como ser auto-suficiente e do afastamento de Deus que este soteriologismo universal implica, mas também por causa dos seus efeitos destrutivos: o homem não se basta a si mesmo e a sua consciência não é o registo único da luz universal. O homem é o ser livre que se auto-apreende como ser relativo a Deus, porque não se criou a si próprio: a liberdade pela qual decide o seu projecto de vida foi-lhe concedida por Deus. A liberdade do homem é, portanto, uma dádiva da transcendência, que lhe desvenda a sua insuficiência ontológica, a insegurança do seu ser e as probabilidades de alcançar ainda o que autenticamente pode ser. Pela liberdade que Deus lhe concedeu, o homem pode conformar a sua existência como se modela qualquer material e fazer a sua própria história, liberta dos constrangimentos do seu património genético e dos condicionalismos exteriores. A finitude radical da existência humana revela a sua insuficiência ou falência de ser e, por conseguinte, a sua dependência em relação a Deus que habita o seu núcleo essencial.
Dado não decorrer apenas como um acontecer natural, a existência humana exige uma orientação: cabe ao homem enquanto ser livre decidir e optar por um destes caminhos - a orientação antropolátrica que o conduz ao niilismo ou a orientação de Deus que o leva à salvação. A orientação antropolátrica é o caminho da existência inautêntica e da perda, enquanto a orientação de Deus é o caminho da existência autêntica e do resgate. O sentido da decisão responsável pela existência autêntica pode ser visto como uma viagem do pensamento do homem pelos caminhos infinitos: «O homem é sempre mais rico de desejo e imaginação do que lhe pode dar a realidade quotidiana. Alargar esta é dar lugar geométrico e metafísico aos sonhos da sua imaginação, e não é pequena alegria ver aumentar a sua compreensão espiritual pelo alargamento das suas relações humanas» (L. Coimbra). O homem que viva completamente mergulhado na vida quotidiana e nas suas rotinas corre o risco de se perder a si próprio nesse mundo impessoal, seguindo «espontaneamente as linhas da compressão social que o levam para o quase inconsciente cumprimento de seus fins sociais». Leonardo Coimbra acompanha de perto a sociologia de Durkheim para mostrar que o indivíduo precisa da sociedade para emergir como pessoa, mas, a partir dessa emergência social do eu, a pessoa deve reagir e modificar essas linhas de obrigação do meio criadas pela pressão ou coerção social: o homem só pode encontrar-se a si mesmo se conseguir distanciar-se do seu eu social e da coacção lógica que o obriga a viver numa espécie de temor escravizante, submisso e sujeitado ao acordo social estabelecido que bloqueia a construção de um novo mundo social. Afastar-se do mundo social coisificado - colonizado pelo sistema capitalista e pelos mass media que dissolvem e afogam a individualidade na opinião pública anónima - para o interior mais íntimo do eu é uma tarefa que só pode ser realizada com a ajuda da consolação da filosofia (Boécio): «O encontro do homem consigo mesmo no espelho da meditação reflexa é evidentemente a condição indispensável para que este ponha e se dê fins, deixando de seguir espontaneamente as linhas da compressão social que o levam para o quase inconsciente cumprimento de seus fins sociais». Leonardo Coimbra descobre e explicita uma temática partilhada por Bergson e Heidegger: a coexistência de dois si mesmos, o eu social - das Man de Heidegger - e o eu livre ou fundamental - o si mesmo autêntico de Heidegger. Heidegger preconiza a transformação do Man - o eu impessoal - da vida quotidiana em ser-si-mesmo, mediante a qual a existência humana produz um solus ipse. O solipsismo existencial ou ontológico mais não é do que a actualização do principium individuationis, que Heidegger atribui não à vontade mas ao Cuidado (Sorge), o órgão do homem para o futuro. Segundo Bergson, a função da vontade é libertar o si mesmo fundamental das exigências funcionais da vida social e da linguagem ordinária usada para comunicar com os outros num mundo externo absolutamente distinto de nós. Ora, a linguagem criada por este mundo comum leva à formação de um segundo si mesmo que obscurece o si mesmo fundamental. Cabe à filosofia trazer de volta o si mesmo social ao si mesmo real e concreto, cuja actividade é pura espontaneidade criativa. Leonardo Coimbra vê neste eu livre de Bergson «um protesto da dialéctica contra o cousismo do tempo algébrico». A dialéctica da liberdade desperta o homem banal do seu ilusionismo coisista, fazendo-o pensar consigo mesmo e com Deus, e, ao mesmo tempo, convoca-o para a tarefa da libertação, isto é, da construção de uma sociedade aberta, que Leonardo Coimbra pensa como uma sociedade de eus autónomos ou de si mesmos autênticos que sabem escutar a voz da consciência. Esta voz da consciência, que é, como vimos, a voz de Deus, chama o homem, a partir do seu núcleo essencial, à autenticidade, a qual se desvela como culpa humana no duplo sentido de ser culpado ou ser responsável pelos seus actos e de estar em dívida ou dever alguma coisa a Alguém. O homem foi lançado no mundo sem ser trazido ao ser-aí por si mesmo: a sua existência está sempre-já em dívida com Alguém que lhe concedeu a vida e a liberdade. Para Leonardo Coimbra, Kierkegaard, Gabriel Marcel, Henri de Lubac e Karl Jaspers, esse Alguém é Deus, e, com esta noção de homem como ser livre e relativo a Deus, a antropologia existencial converte-se, de certo modo, em antropologia teológica (W. Pannenberg): a comunicação com os outros passa pela linha indirecta da comunicação com Deus.
J Francisco Saraiva de Sousa

36 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... Acho que não vou conseguir fazer uma leitura existencial da antropologia da escola do Porto, porque esta vacila entre a filosofia da vida e o existencialismo: as noções estão lá mas não há seguimento cabal. E, no entanto, há a ligação com Unamuno que possibilita pensar a ligação entre existência e religião. O raciovitalismo de Ortega pode ser vislumbrado em Coimbra.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O estudo que Leonardo Coimbra faz da Origem da Tragédia de Nietzsche é deveras interessante: a recepção portuense de Nietzsche de que já falei noutros posts. Visão trágica da vida? E lá está Pascal, mas uma tal visão leva à dialéctica! O segredo reside talvez em converter o naufrágio em exílio! Mas neste caso Sampaio Bruno é mais adequado para essa tarefa hermenêutica, bem como a noção de abandono de Pascoaes!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... Preciso de tempo para descobrir o mecanismo hermenêutico capaz de garantir o sucesso da tarefa que assumi: a separação do Porto ajuda a desbravar esse terreno. O Porto autónomo é o Porto universal - um novo nascimento para Portugal. A crítica do tecnicismo levada a cabo pela escola do Porto antecipa a caminhada de Heidegger: o antropolatrismo é niilismo, como diz Coimbra. Porém, a ciência foi mais longe e abdicou do homem, reduzindo-o a animal. Aqui reside a última novidade: a ciência já não é movida pela vontade de poder, mas pela vontade de matar o homem, moldando-o à imagem do animal. Este é o perigo da ciência-técnica! Precisamos de uma nova filosofia para salvar a humanidade: já não estamos na era do antropolatrismo, mas do zoolatrismo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Coimbra afirma que o humanismo antropolátrico leva ao humanismo exaustivo - o exclusivismo da vontade técnica, o humanismo conquistador como autolatria do homem técnico: o domínio do universo pelo homem. Pela mão de Pascoaes, Coimbra antecipa a crítica da técnica de Heidegger e avança com uma crítica do imperialismo. A consumação dessa vontade técnica liquida o humano. Se o antropolatrismo é niilismo, o tecnicismo situa-se para além ou aquém do homem: a humanização é quebrada.

Incluir o marxismo nesse antropolatrismo niilista é deixar o terreno livre ao tecnicismo: aqui Coimbra enganou-se completamente. O humanismo da esperança alimenta-se ainda do marxismo e Deus só pode ser pensado como destituído da sua majestade omnipotente, tal como disse Bruno. Quer dizer que podemos continuar a modernizar o mundo sem o desencantar. Aliás, esse é o projecto político da escola do Porto: modernização sem desencantamento do mundo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mais: Leonardo Coimbra, para ser fiel ao seu criacionismo como filosofia da liberdade, devia aplicá-lo à história e, nesse caso, nunca poderia regressar ao humanismo cristão. Esse regresso foi o seu erro! Só podemos superar o marxismo se tivermos uma alternativa viável e não temos.

Unknown disse...

Conheço mt mal o e.bloch. Ja deixou aqui algum post especifico sobre ele?
Já li algumas analises mais radicais bem interessantes da parte dele. Por ex, sobre a escola frankforte :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, já fiz muitos posts sobre Bloch, mas veja este que o reconduz aos outros:

http://cyberself-cyberphilosophy.blogspot.com/2008/08/ernst-bloch-antropologia-e-ontologia.html

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Agora estou a ver a profundidade do pensamento de Coimbra e de Pascoaes, mas a sua captação exige muito esforço.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A recepção portuense de Nietzsche é fantástica e merece estudo profundo, além de permitir um confronto com Deleuze. Afinal, foi produzida uma filosofia original em língua portuguesa - a da escola do Porto, mas é preciso libertá-la das más análises para a ver na sua originalidade. Tarefa colossal!

Unknown disse...

ai é? amanhã ja vejo isso :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou a ser atormentado com esta questão: Coimbra leu O Ser e o Tempo de Heidegger ou teve acesso à sua teoria em segunda mão? O texto em epígrafe mostra que ele compreendeu bem a teoria da queda que retoma com a sua figura do homem dual - natureza e graça, dois modos de exirtir - um autêntico que se dirige à transcendência e outro inautêutico que degrada a própria natureza. A vida humana é vista como opção entre esses dois modos de existir. Mas o post já está longo para fazer novas incursões hermenêuticas! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, Coimbra vê a filosofia de Nietzsche como uma filosofia da vontade de domínio, usando Bergson para acentuar o cientismo de Nietzsche e o seu cousismo. Leitura interessante!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, estou como o tempo: copiosamente chuvoso e muito frio, mas caminho em frente. Acabei de dar um puxão de orelha a L. Coimbra, e subverti-o. Vou usar o seu pensamento para o violar hermeneuticamente, dando-lhe outra possibilidade de vida. :)

Afinal, já estou na posse dos conceitos que me permitem libertar a filosofia portuense!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu posso violar o legado porque nasci para pensar. Para mim, pensar não é um esforço; é um prazer só meu! A dialéctiva volta-se para o seu momento individualista! Mas esse é o meu pensamento que preside a tudo o que penso e escrevo! Um guardião pode violar - tudo é-lhe permitido, a começar pela transmissão do legado. :)

Unknown disse...

Entao o FCP?? lol... Adiante :)
Ontem, li uma passagem duma carta do K Korsh ao Paul Partos sobre a capacidade do capitalismo pra dissolver toda a oposição, q me fez lembrar este blog :)
Já é tarde pra mim, mas amanhã eu transcrevo.
Foi qd tava tb a ler sobre a ma experiencia americana do Adorno e qd ele se sai com esta mt gira « Tornou-se tb claro para o intelectual do estrangeiro, que ele deve erradicar-se como um ser autónomo, se espera realizar alguma coisa ou ser aceite como um empregado do super-trust em q a vida se condensou(...)»

^^


Asta 0/

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya - Se Pinto da Costa não contratar novos jogadores, estamos lixados. Há apito encarnado, mas a equipa não anda a jogar bem!

Ah, se dissolvo alguma coisa é a falta de bom-senso das classes dirigentes! Portugal pós-25 de Abril foi um fracasso total e consumou a destruição da cultura e da oposição. Consenso significa corrupção e saque: esse um dos traços desta triste democracia!

O capitalismo é destrutivo! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E a natureza mata, como vemos no caso do terramoto no Haiti: a finitude radical tem sido descurada pelo pensamento neoliberal. A noção de eternidade que surgiu com a sociedade da informação foi uma armadilha neoliberal total - pura ideologia usada para a acumulação corrupta de capital. Do romantismo até ao marxismo, todos odiamos o capitalismo! A luta contra a morte e o envelhecimento é estupidez total. Portugal muda no dia em que tiver coragem para despedir os velhos corruptos que governaram como se fossem a última geração! A violência é a mãe da mudança! Violência é humanismo revolucionário!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Objectivamente, não pudemos esperar que estes velhos corruptos e incompetentes que nos governaram morram para mudar Portugal: é preciso expulsá-los e condená-los à penúria que geraram para os outros. Eles liquidaram todas as outras duas ou três gerações: Portugal não tem por isso futuro, porque as novas gerações são burrecas. É preciso arriscar e ver o que sucede - pode existir alguma massa cinzenta escondida! Os economistas e gestores devem ser abatidos - eles geraram a pobreza real e a sua vergonha que aprisiona as pessoas que se entregam ao consumo estúpido - pobres sem nada de seu que pensam ser alguém porque consomem e se auto-consomem. Um horror o futuro!

Aliás, a blogosfera e a internet confirmam esse estilo de vida: apropriar-se do que é dos outros, como se fosse seu. O indivíduo foi literalmente liquidado - não há autor mas um serviço público que abastece os burrecos com ideias alheias! Não há dignidade humana!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, Adorno pensa o exílio linguístico - a saudade da língua materna, o alemão. Marcuse morreu a falar inglês, mas Adorno e Horkheimer viram no regresso à pátria o regresso à língua alemã - a única capaz de dizer o pensamento filosófico! Para eles, viver nos USA foi um exílio: Sampaio sabia o que era isso. E nós também... Portugal é o nosso exílio mental! Porugal mata a inteligência e o pensamento e só sabe conjugar um verbo - roubar, roubar, roubar!

Unknown disse...

Sim, mas o mal está no sistema e n propriamente no capitalista, já q este, e como bem notaram os da teoria critica, está tb preso no sistema e na implicação de relaçoes.
É a tal questão da dialectica como totalidade que deve determinar o sujeito(aqui sao marxistas e n so hegelianos, pois)
Ainda na msm onda, olhe o q conta um tal gustav janouch sobre uma conversa com kafka, em q este teria afirmado
« O capitalismo é um sistema de relações, que partem de dentro para fora, de fora para dentro, de cima para baixo e de baixo para cima. Tudo é relativo, tudo está preso. O capitalismo é uma condição tanto do mundo como da alma.»

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Sobre a tal passagem do k.korsh, na qual denuncia a imensa flexibilidade e capacidade do capitalismo americano para neutralizar e absorver todas as oposiçoes e divergencias:

« Na Europa existe uma oposição legitima entre a teoria estática e a teoria dinâmica. A primeira oferece uma solução técnica racional para os problemas actuais enquanto a última expõe a irracionalidade daquelas soluções técnicas perante os problemas reais. Nos Estados Unidos, contudo, não há lugar para esta coexistência. Há muitas actividades pressupostas como a correcção contínua de factos investigados; a descoberta de novos campos científicos e a aplicação de novos métodos, é uma absorção imediata de tendências contra-culturais; uma saturação de tudo quanto é anómalo e ilegal: a institucionalização do negócio, da política, da corrupção, do poder e da criminalidade. Sob estas circunstâncias, as novas ideias não precipitam conflitos ou pressões; meramente fornecem a ração diária de » o.O


LOL, a tal associação q fiz com este seu blog, foi por isso esta: a de ficar aqui, por vezes, a pregar sozinho no deserto. :)
Há q projectar estes assuntos e este blog para outras plataformas - facebook e outros do genero - ou vai cair na mesmissima situação como o adorno, horkheimer, debord e outros o.O


Asta 0/

Unknown disse...

Bom dia!

so pra deixar um link q um colega facebook partilhou http://saavedrafajardo.um.es/BIBLIOTECA/IndicesW.nsf/FCoimbraW2?Openform


:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Acabo daqui a pouco ou amanhã! Foi divertido viajar pelo pensamento de Coimbra, mas já não vou desenvolver cabalmente a crítica da vida quotidiana e do eu social. Logo vejo!

Sr

Vou pensar noutra plataforma, mas estou a ter larga audiência.

Unknown disse...

Yeah
Como ja sugeri, tratar-se-ia de linkar este blog a partir do facebook, e nao mudar de plataforma.. o.O
Tenho lá um amg recente, da Ontologia Fractal, q tb gostou do seu blog. Take a look http://mecanosfera.wordpress.com/


;)


Bom fds \0/

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O post está finalmente concluído - não posso desenvolver as últimas noções introduzidas: Leonardo Coimbra foi liberto para o pensamento genuíno. Missão cumprida! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, até estou a ser tentado a aprofundar a teoria dos dois si mesmo, porque, ao contrário do que se pensa, o "anarquismo" espreita o pensamento de Bergson e de Coimbra! Adoro toda a conflitualidade interna humana: conflito de motivações, conflito de eus, conflito energético total
!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Temos diversas oposições que se articulam: mente aberta - mente fechada, sociedade aberta - sociedade fechada, eu individual - eu social, religião dinâmica - religião estática, moral aberta - moral fechada, liberdade - obediência, etc.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, esta leitura teve como objectivo evitar o regresso do tomismo e da escolástica - a doença da alma lusa! A invenção do termo criacionismo foi infeliz, porque implica o regresso da criação do mundo por Deus que Leonardo acaba por namorar sem apreender a faculdade fabuladora do homem, bem explicitada por Bergson: o universo como máquina produtora de deuses que ajuda a contornar a angústia. O amor ao homem não é solução, porque o amor é uma adição que, levada ao extremo, produz promiscuidade sexual universal, precisamente o erotismo consumista que Coimbra critica. Interpretar uma obra é libertá-la dos seus desvios intoleráveis e actualizá-la em função dos novos conhecimentos adquiridos. O substancialismo dinâmico foi colocado de forma breve e forte por Guerra Junqueiro.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Coimbra coloca o problema da ciência em termos interessantes: a distinção entre ciência e cientismo, este último entendido como a ideologia espontânea dos cientistas. E acusa Bergson de ter identificado os dois termos, condenando a ciência. Coimbra assume a defesa da relatividade e da mecânica quântica, mas esquece que a sua última visão da criação vai contra a ciência biológica. Eis a questão: a filosofia deve ater-se à ciência ou ser livre para pensar?!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, outra coisa: Coimbra não compreendeu o marxismo - aspecto que omiti aqui no âmbito do antropolatrismo - e, quando analisa O Capital, diz disparate, embora fale da divisão social do trabalho e do trabalho e critique a razão identitária. Aliás, se o tivesse compreendido, teria refeito a sua crítica do cousismo, captando a dialéctica genuína. O regresso ao catolicismo é, ele próprio, cousismo: uma das causas do atraso de Portugal! Há muito trabalho hermenêutico a realizar, mas só pode ser realizado quando nos libertarmos dos có-cós que dominam as instituições nacionais.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Há um Porto Socialista que ainda não foi bem analisado!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, quando falei do homem como ser relativo a Deus pensava na referencialidade de Rilke: foi na sua poesia que descobri essa referência, bem como na de Hölderlin.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A medida do homem é Deus, a grande fábula que criámos para fazer face à angústia e ao desamparo. Eis qaqui outro conceito meu: o sem-abrigo - o homem como ser sem-abrigo que subjaz ao despojamento quase visto como uma redução fenomenológica! Ah, afinal a minha filosofia reside na arte de bem-violar! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, em termos de procedimento hermenêutico, atribui a valência máxima à obra "A Alegria, a Dor e a Graça", onde descubro a chave da leitura que fiz da filosofia de Coimbra: aceito o Cristo que é aqui apresentado, destacando que a ontologia geral é levada a cabo a partir de uma ontologia fundamental - a da existência humana. Coimbra liga-se a Heidegger!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A unidade da filosofia portuense está garantida, porque interpreto o regresso ao lar de Junqueiro como um regresso a si-mesmo! Exílio e redenção: a transformação do eu social em eu fundamental implica um afastamento da sociedade estabelecida, de modo a preparar a subjectividade rebelde para um novo mundo social. Neste sentido, o regresso do humanismo cristão seria uma repetição que o criacionismo de Coimbra não tolera, como se vê pela crítica que dirige ao eterno retorno de Nietzsche. Dessocializar o self sem o desumanizar para o preparar para a grande recusa! O humanismo teocêntrico faz assim sentido, porque implica um salto qualitativo!