sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

António Damásio: Impulso Homeostático e Cultura

«Sugiro que o motor que impulsionou estes desenvolvimentos culturais seja o impulso homeostático. As explicações que assentam apenas nas significativas expansões cognitivas produzidas por cérebros maiores e mais inteligentes não bastam para justificar o extraordinário desenvolvimento da cultura. De uma forma ou de outra, os desenvolvimentos culturais manifestam o mesmo objectivo que a forma de homeostase automatizada a que me referi ao longo deste livro. Eles reagem à detecção de um desequilíbrio no processo de vida e procuram corrigi-lo dentro dos limites da biologia humana e do ambiente físico e social. A elaboração de regras morais e de leis, e o desenvolvimento de sistemas de justiça eram uma resposta à detecção de desequilíbrios provocados por comportamentos sociais que fazem perigar os indivíduos e o grupo. Os dispositivos culturais criados em resposta ao desequilíbrio tinham por objectivo restaurar o equilíbrio dos indivíduos e do grupo. A contribuição dos sistemas económicos e políticos, bem como, por exemplo, o desenvolvimento da medicina, eram uma resposta aos problemas funcionais que ocorrem no espaço social e que exigem uma correcção dentro desse espaço, para que não venham a comprometer a regulação vital dos indivíduos que constituem o grupo. Os desequilíbrios a que me refiro são definidos por parâmetros sociais e culturais, ocorrendo assim a detecção do desequilíbrio a um nível elevado da mente consciente, na estratosfera do cérebro, e não ao nível subcortical. No seu todo chamo a este processo "homeostase sociocultural"». (António Damásio)

Começo a elaborar a crítica do Livro da Consciência de António Damásio, impugnando a teoria funcionalista e sistémica da cultura que expõe no último capítulo Viver com a Consciência. A escolha deste começo não é inocente. Sendo o capítulo mais fraco e mais débil do livro de Damásio, a crítica da hipótese homeostática do desenvolvimento cultural que nele é exposta permite detectar antecipadamente a fragilidade global e estrutural da teoria neurobiológica da consciência, sem no entanto a desenvolver e a explicitar neste primeiro momento: a crítica do elo mais fraco da hipótese neurobiológica de Damásio - o elo do desenvolvimento cultural e da homeostase sociocultural que emerge com a descoberta do eu auto-biográfico na mente consciente - prepara o caminho para o confronto final com o núcleo duro dessa mesma hipótese. A debilidade do capítulo revela-se desde logo no uso impreciso de conceitos não-definidos ou dotados de significações ambíguas e até mesmo contraditórias. A imprecisão da terminologia - um traço invulgar na obra de Damásio que usa frequentemente conceitos claros e definições precisas para demarcar as suas teses das teorias rivais - insinua-se e inscreve-se precisamente no capítulo fundamental para testar - ao nível da evolução social e cultural do homem pré-histórico - a sua hipótese neurobiológica, com recurso aos dados recolhidos por outras disciplinas, nomeadamente pela paleontologia, arqueologia, pré-história, etologia, primatologia, sociobiologia e etnologia. A exposição da antropogénese realizada por Changeux - com base na paleoantropologia de Yves Coppens - é muito mais rica do que a "relatada" por Damásio, que se limita a recapitular as suas ideias mestras sem as conseguir ligar conjectural e materialmente ao registo fóssil (W.E. Le Gros Clark, David Pilbeam) e ao registo arqueológico (Leroi-Gourhan): o surgimento do eu rebelde permanece assim um mistério, embora Damásio pareça ligá-lo ao Homo neanderthalensis - mais seguramente ao Homo sapiens sapiens que coexistiu com o primeiro, substituindo-o definitivamente há cerca de 30 000 anos - do Pleistoceno tardio que, pelo facto de sepultar os seus mortos, seria talvez já capaz de contar histórias. A teoria do eu rebelde de Damásio - a chegada do eu auto-biográfico à mente do homem fóssil - coloca novos desafios ao estudo da antropogénese e, apesar de não termos vestígios directos para datar o seu aparecimento, devemos libertar e disciplinar a nossa imaginação paleontológica e arqueológica e tentar reconstruir a sua génese a partir dos fósseis infra-humanos e humanos (hominídeos) e dos seus artefactos. Quando escrevi a minha tese de mestrado sobre a evolução do cérebro humano, abordei este tema em função do esquema da hominização de Leroi-Gourhan que supera a teoria do rubicão cerebral, segundo a qual a linguagem tão necessária à emergência do eu auto-biográfico surgiu no momento em que o ramo dos hominídeos transpôs o rubicão cerebral - estimado em cerca de 900 cm3 - para dar origem aos hominianos propriamente ditos: os primeiros hominianos a atravessar o rubicão cerebral teriam sido assim os Pitecantropos (Homo erectus). Apesar da inadequação de alguns dos seus pressupostos, esta teoria teve o mérito de chamar a atenção da comunidade científica para a correlação existente entre a linguagem e o cérebro. Com base na ligação orgânica entre a técnica - motricidade técnica - e o nível de linguagem, Leroi-Gourhan observou que, apesar da expansão pré-frontal ser muito incompleta até ao Homo sapiens, a presença de áreas de associação verbal e gestual parece estar garantida desde o Australantropo: «A uma posição bípede e a uma mão livre, e consequentemente a uma capacidade craniana consideravelmente liberta, só pode corresponder um cérebro já equipado para o exercício da palavra, e creio que devemos considerar que a possibilidade física de organizar os sons e os gestos existe desde o primeiro antropídeo comum» - o Zinjantropo. Embora hoje não seja tão optimista, a ponto de atribuir uma linguagem - ainda que muitíssimo rudimentar - ao Australopiteco, continuo a sentir-me seduzido pelo universo paleontológico inaugurado pelo trabalho de Leroi-Gourhan, que recusou tratar o homem como uma espécie de autómato consciente ao serviço da regulação biológica: «O que transformou completamente a situação filosófica do homem fóssil foi a necessidade de admitir, desde os zinjantropos, um homem já realizado, andando na posição vertical, fabricando utensílios e, se a minha demonstração é válida, falando. A imagem deste homem está pouco de acordo com a imagem que dele fizeram dois séculos de ideias filosóficas. Os factos mostram que o homem não é, como se costumava pensar, uma espécie de macaco que se aperfeiçoava, fim último do edifício paleontológico, mas sim algo distinto do macaco. No momento em que esse homem aparece falta-lhe ainda um longo caminho a percorrer, mas esse caminho será menos no sentido da evolução biológica do que no sentido da libertação do quadro zoológico, uma organização absolutamente nova em que a sociedade se vai progressivamente substituindo à corrente do phyllum. Se quisermos a todo o custo encontrar o macaco inicial é agora necessário procurá-lo em pleno terciário. A imagem já humana dos australantropos é suficiente para alterar as bases dos problemas das origens. A sua bipedia é certamente antiga e implica uma distância considerável relativamente aos antepassados dos macacos actuais, algo comparável à separação da linha dos cavalos relativamente à dos rinocerontes, isto é, a perspectiva de descobrir um dia um pequeno animal, nem homem nem macaco, mas capaz por descendência de se tornar um ou outro» (Leroi-Gourhan). Quando lida à luz da perspectiva de Leroi-Gourhan, a teoria dos três estádios do eu de Damásio - o proto-eu, o eu nuclear e o eu auto-biográfico - exige provavelmente uma reformulação, sobretudo ao nível da evolução do eu auto-biográfico: a arqueologia do eu autobiográfico poderá vir a impor uma diferenciação evolutiva segundo a sequência: paleo-eu autobiográfico, arqui-eu autobiográfico e neo-eu autobiográfico, cada um deles em correspondência dialéctica com um determinado tipo evolutivo de sociedade e de cultura, a paleo-sociedade (sociedade hominídea, paleo-cultura, paleo-eu), a arqui-sociedade (sociedade da pré-história sapiental, arqui-cultura, arqui-eu) e as sociedades históricas (escrita, culturas históricas, neo-eu).

O facto do conceito de homeostase - palavra cunhada por Walter Cannon para pensar a regulação do meio interior de Claude Bernard, isto é, a regulação ou gestão da vida - desempenhar um papel fundamental na hipótese do desenvolvimento cultural de Damásio permite-me identificar o seu carácter funcionalista e sistémico e estabelecer as suas afinidades electivas com a teoria funcionalista da cultura de Bronislaw Malinowski, por um lado, e a teoria geral dos sistemas de Ludwig von Bertalanffy e a sociologia funcionalista de Niklas Luhmann, para já não falar da cibernética de Norbert Wiener e de W. Ross Ashby, por outro. É certo que Damásio não está consciente destas afinidades, mas os conceitos que utiliza apontam no sentido de ter herdado - o seu inconsciente cognitivo a ter a última palavra sobre o seu processo ou controlo consciente - o núcleo duro da teoria funcionalista da sociedade e da cultura. Como não posso aqui resumir todo o debate científico em torno do funcionalismo e da teoria dos sistemas sociais e culturais, vou limitar-me a chamar a atenção para o perigo inerente à utilização a-crítica do modelo orgânico (Herbert Spencer) no domínio das ciências sociais e humanas, em especial da sociologia (Durkheim, Talcott Parsons, Robert Merton, Kingsley Davis) e da antropologia social (Malinowski, Radcliffe-Brown). Em termos simples, o funcionalismo estabelece uma analogia entre o organismo e a sociedade, examinando todos os fenómenos sociais na sua relação funcional com a totalidade do corpo social de que fazem parte. O fenómeno social em questão - uma instituição social ou um mero ritual religioso, por exemplo - só revela o seu sentido quando são entendidas as suas relações funcionais com os outros fenómenos que constituem a unidade social. O que incomoda nesta abordagem teórica não é tanto a sua hipótese holística, mas sobretudo o seu postulado utilitarista que leva a supor erradamente que tudo, num sistema social, tem uma função precisa na manutenção estrutural do equilíbrio homeostático da unidade social total, deixando assim pouco lugar à dinâmica da transformação social e cultural. Deste modo, ao utilizar modelos de equilíbrio da sociedade, o funcionalismo é levado a acentuar a ordem normativa e a coesão social, identificando a "saúde" com a ordem social e a "doença" com o conflito. A. Gouldner acusa-o de ser uma ideologia conservadora que não só favorece a preservação do privilégio, como também aconselha as elites dominantes a adoptar uma «política de repressão» para garantir o consenso social e a manutenção da ordem social. É certo que a teoria social de Marx envolve um conceito de equilíbrio, mas a noção marxista de equilíbrio móvel - instável - é completamente distinta do modelo mecanicista de equilíbrio que lhe foi imputado por Bukharin e do conceito de sociedade como sistema auto-regulador elaborado pelo funcionalismo cibernético. Para Marx, o sistema não é nada, porque quem trava os combates e vence as guerras não é o sistema mas os homens que, em circunstâncias históricas determinadas, se organizam para mudar o mundo social. Compreender a sociedade humana como um processo auto-regulado que prossegue o seu caminho independentemente da consciência, das ideias e das lutas sociais dos homens é negar aos homens, sobretudo às vítimas do sistema social vigente, a capacidade de intervir no processo e de transformar o mundo. Coisificar o sistema como se ele fosse auto-suficiente para se ajustar às mudanças internas e externas e se mover é desumanizá-lo. Com o alargamento do âmbito de aplicação da teoria da homeostase aos processos socioculturais, Damásio acentua de tal modo esta desumanização que chega ao ponto de imaginar uma sociologia do nematóide C. elegans. O que distingue o cérebro rudimentar deste verme do cérebro consciente do homem é a optimização da regulação vital automatizada - maior eficiência fisiológica - levada a cabo pelo último, mas tanto um como o outro são «escravos» do impulso homeostático. (Leia outra vez o texto de Damásio que aparece em epígrafe e exercite o seu pensamento crítico!)

António Damásio desenvolve uma teoria geral da homeostase num outro capítulo do Livro da Consciência, usando e abusando de uma linguagem metafórica sacada da economia. Eu não sou contra o uso de conceitos sacados de outras disciplinas, mas, neste caso particular, penso que uma tal utilização pode contribuir para a legitimação ideológica do sistema económico vigente que não promove efectivamente o bem-estar da maior parte dos organismos. Este perigo de legitimar pelo uso da sua linguagem preferida - reificando-o como se fosse um bom sistema "natural" de regulação da vida - aquilo que deve ser transformado para garantir o bem-estar saudável dos organismos vivos avoluma-se quando se passa da homeostase automática para a homeostase sociocultural. Neste momento, o confronto da teoria homeostática de Damásio com a teoria antropológica de Clifford Geertz seria extremamente produtivo, não só ao nível do crescimento da cultura e da evolução da mente, como também ao nível da ideologia como sistema de cultura, onde a hipótese homeostática da cultura como sistema de gestão da vida parece ser mais vulnerável. Porém, apesar das minhas reservas quanto à terminologia económica utilizada por Damásio, não pretendo questionar a sua teoria da homeostase e a sua extensão a todos os domínios da vida, desde as moléculas e as células até aos organismos mais sofisticados dotados de cérebros conscientes. Damásio distingue duas classes amplas de homeostase: a homeostase básica ou automatizada e a homeostase sociocultural ou reflexiva. Esta distinção não implica o divórcio entre biologia e cultura, isto é, o divórcio entre a evolução biológica e a evolução sociocultural, como se a homeostase básica sob controle subcortical (tronco encefálico) fosse uma construção puramente biológica, e a homeostase sociocultural sob controle cortical, uma construção puramente cultural. Para Damásio, «a biologia e a cultura são interactivas», não no sentido de interagirem enquanto processos separados e distintos um do outro, como sucede na teoria da cultura de A.L. Kroeber, mas no sentido redutor da cultura não ser mais do que a grande revolução biológica gerada pela chegada do eu humano à mente ou, como diz Damásio noutro contexto, «uma segunda natureza colocada no inconsciente cognitivo» e em relação de subordinação ao inconsciente genómico - o grande sistema de controle - que determina a configuração inicial das artes e a estruturação primordial do espaço social: «Armada com as estruturas de eu tão complexas e apoiada por uma capacidade ainda maior de memória, raciocínio e linguagem, a mente consciente dos seres humanos cria os instrumentos da cultura e abre caminho a novas formas de homeostase ao nível da sociedade. A homeostase, dando um salto extraordinário, alarga-se ao espaço sociocultural. Os sistemas judiciais, as organizações económicas e políticas, a arte, a medicina e a tecnologia são exemplos dos novos dispositivos de regulação» da vida (Damásio). A cultura enquanto criação da mente consciente é de tal modo funcionalizada - o funcionalismo radical de Damásio - que perde a sua autonomia em relação ao continente Vida: ela mais não é do que um sistema reflexivo de regulação colocado ao serviço exclusivo da gestão e da protecção da vida, a premissa fundamental do princípio do valor biológico que guiou tanto a evolução das estruturas cerebrais como a evolução das operações cerebrais ou mentais. A teoria alargada da homeostase de Damásio visa, em última análise, naturalizar a mente - e os seus produtos e instrumentos culturais - numa perspectiva darwinista perfeitamente modificada pela elaboração do conceito de valor biológico: aceitar este alargamento da homeostase fisiológica à cultura e à sociedade é aceitar a cerebralidade da mente - e a sua mortalidade - e, no caso do homem, a cerebralidade difusa do maestro ou do chefe de orquestra que é o eu autobiográfico - e a sua mortalidade. Apesar de estarem separadas por milhares de milhões de anos de evolução biológica, as variedades básica e sociocultural da homeostase - que actuam como curadoras do valor biológico - «promovem o mesmo objectivo - a sobrevivência de organismos vivos - embora em nichos ecológicos distintos» (Damásio). Aquilo que parecia ser uma dissonância insuportável na teoria do desenvolvimento cultural de Damásio - o choque entre a sua perspectiva da cultura como sistema regulador da vida e a sua tese da mente independente e rebelde que surgiu com o eu auto-biográfico para «questionar os actos da natureza» - mais não é do que o reforço do núcleo duro da sua teoria alargada da homeostase. Com a entrada em cena da homeostase sociocultural no decurso de um longo período evolutivo, «mais uma vez o Pleistoceno», o objectivo da sobrevivência de organismos vivos expande-se, «englobando a procura deliberada do bem-estar». Quando menciona a arte rupestre do homem pré-histórico, Damásio destaca apenas o seu valor para a sobrevivência e o seu contributo para o desenvolvimento do conceito de bem-estar. Questionar os actos da natureza não significa - para o homem - libertar-se do quadro zoológico e construir consciente e livremente o seu próprio mundo e o seu próprio destino. A mais-valia da homeostase reflexiva reside tão-somente na procura deliberada do bem-estar. «Se o cérebro prevaleceu na evolução por oferecer uma regulação vital mais ampla, os sistemas cerebrais que levaram à mente consciente prevaleceram por oferecer uma mais vasta possibilidade de adaptação e de sobrevivência, a par do tipo de regulação capaz de manter e expandir o bem-estar»: com o uso do conceito de bem-estar, a teoria alargada da homeostase de Damásio torna-se alvo da crítica ideológica, que, de um modo puramente imanente, a confronta com os efeitos de mal-estar (obesidade, praga humana, envelhecimento da população europeia, doença de Alzheimer, atrofia dos órgãos mentais e cognitivos, perturbações psiquiátricas, exclusão social, pobreza, violência, guerras, fome, crescimento demográfico excessivo, stress, insegurança, angústia, depressão, incerteza, crises, etc.) e de crise ecológica (as doenças de Gaia identificadas por James Lovelock) produzidos pela procura deliberada do bem-estar - organizada e incentivada pelo hiper-capitalismo que nega ao homem a sua transcendência. A revolta da natureza é a revolta contra a ideologia do bem-estar que, depois de ter sido incorporada pelo organismo nas suas trocas metabólicas com a natureza e com os outros organismos, domesticou o homem (Konrad Lorenz), fazendo dele um animal metabolicamente reduzido, cujo estilo devorador de vida ameaça a continuidade da aventura biológica na terra.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Apresentação de António Damásio

«Podemos encarar a consciência humana e as funções que ela tornou possível - linguagem, memória expandida, raciocínio, criatividade, todo o edifício cultural - como as curadoras do valor dentro dos nossos seres tão ricos em mente, consciência e capacidade de interacção social. Podemos também imaginar um longo cordão umbilical que une a mente consciente, ainda mal separada das suas origens e para sempre dependente delas aos reguladores profundos, elementares e sem consciência, do princípio de valor. A história da consciência não pode ser contada de forma convencional. A consciência surgiu devido ao valor biológico, enquanto contribuidora para uma gestão mais eficiente do valor. Mas a consciência não inventou o valor biológico, nem o processo de valorização. Na mente humana, a consciência viria a revelar o valor biológico e permitiu o desenvolvimento de novas formas e meios de o gerir.» (António Damásio)

Comprometo-me a retomar a crítica das teorias - ou melhor, das hipóteses - de António Damásio. Infelizmente, a teoria crítica não elaborou uma teoria sistemática das relações entre cérebro e mente. Apesar desta lacuna teórica, lastimada por Theodor W. Adorno, possuímos os contributos decisivos de muitos filósofos e cientistas que trabalharam fora do âmbito da Escola de Frankfurt - mais preocupada com a psicanálise e a síntese freudo-marxista do que com as neurociências, dos quais destaco cinco figuras pioneiras: Mikhail Bakhtin, L.S. Vygotsky, A.R. Luria, Joseph Gabel e Ernst Bloch. As lacunas rudimentares da teoria neurobiológica da consciência de António Damásio, sobretudo como foi exposta na sua última obra, encontram-se «preenchidas» e superadas nas obras dos autores referidos. O materialismo dialéctico e histórico dos sábios marxistas pode completar - se essa fosse a minha tarefa - o materialismo neuro-redutor - por vezes, muito mecanicista - de Damásio, acrescentando-lhe o sentido como empreendimento cooperativo humano, fornecendo-lhe os conteúdos sociais da mente consciente e, sobretudo, evitando o seu desvio idealista financeiro no que se refere à concepção da sociedade, da história, da linguagem e da cultura. As referências filosóficas de Damásio são figuras filosoficamente pobres: John R. Searle, Patricia Churchland, R. McCauley, Daniel Dennett, Simon Blackburn, Ned Block, Owen Flanagan, T. Merzinger, David Chalmers, Galen Strawson e Thomas Nagel são, de um modo geral e talvez com a excepção do primeiro, figuras destituídas de verdadeira erudição filosófica e contaminadas pelo terrível deslumbramento do capitalismo fetichista de bolsa. A «cientificidade» da neuro-filosofia produzida por tais figuras é suspeita: a síntese cérebro-mente - a ciência unificada de P. Churchland - é instrumental e, por isso, presta-se à sua utilização ideológica por parte da ordem social estabelecida. Desgraçadamente, Damásio herda destas tristes e sombrias figuras filosóficas não só o seu estilo de pensar e de argumentar - a pobreza de imaginação criadora - mas também o seu individualismo burguês elevado a princípio metodológico (Karl Popper) e profundamente avesso à psicologia social de George H. Mead ou à sociologia da Escola Sociológica de Durkheim, para já não falar da teoria marxista da sociedade: «A perspectiva adoptada neste livro engloba uma hipótese que não é universalmente apreciada, e muito menos aceite - ou seja, a ideia de que os estados mentais e os estados cerebrais são, no seu essencial, equivalentes» (Damásio). Damásio é materialista quando estabelece esta identidade entre estados mentais e estados cerebrais, mas logo a seguir, depois de ter formulado a sua hipótese neurobiológica da consciência, abraça o idealismo para explicar as criações sociais e culturais da consciência, isto é, a história do homem: o seu individualismo cerebral é responsável por este desvio idealista que faz da história do homem um mero produto da consciência - sufragado pelo valor biológico. O neuro-reducionismo de Damásio não é, portanto, consistente em si mesmo e também não é congruente com a abordagem teórica - a quarta perspectiva dos aspectos neurobiológicos da mente - que adoptou logo no início do Livro da Consciência: «a busca de antecedentes do eu e da consciência no passado evolutivo». Ora, Vygotsky & Luria adoptaram a mesma perspectiva na sua obra Estudos sobre a História do Comportamento: Símios, Homem Primitivo e Criança, e, dado terem articulado a filogénese, a história e a ontogénese, recolheram resultados culturais e sociais mais ricos do que os obtidos por Damásio. O que falta a Damásio é o conceito de abertura do homem ao mundo, em especial ao mundo social e cultural, que não é estranho a Jean-Pierre Changeux: «Uma das mais-valias da divergência evolutiva que conduziram ao Homo sapiens é, bem entendido, o alargamento das capacidades de adaptação do encéfalo ao meio ambiente, acompanhado de um evidente aumento das aptidões para criar objectos mentais e para os combinar entre si. O pensamento desenvolve-se e enriquece-se a comunicação entre os indivíduos. Os laços sociais intensificam-se e, durante o período que se segue ao nascimento, deixam no cérebro de cada indivíduo uma marca original e em larga medida indelével» (Changeux). Changeux - tal como Charles Sherrington com a sua noção de cérebro como órgão de união - abre a porta das neurociências a uma teoria da construção social do cérebro consciente sem colidir com o interesse de emancipação que orienta a teoria crítica. Não conheço o modo como Damásio relaciona a consciência com a liberdade humana, mas, se a sua perspectiva for a mesma de Francis Crick, então o meu receio fica justificado: a síntese neurobiológica priva o homem da liberdade. A sua concepção fundamental da consciência como estando ao serviço do valor biológico - mediante o desenvolvimento de novas formas e meios de o gerir - aponta no sentido da negação da autonomia da História em relação à evolução biológica: a concepção hegeliana da história como «progresso na consciência da liberdade» é absolutamente estranha a Damásio, que não refere uma única vez essa jóia da «Filosofia da Consciência» que é a Fenomenologia do Espírito de Hegel. O que move a luta de vida ou de morte da consciência do escravo contra a consciência do senhor não é o valor biológico: hoje, no mundo árabe, os jovens dão a vida pela liberdade. Ao fazer da história do homem um anexo ou uma província da evolução biológica, Damásio silencia a sua voz perante o terrível e cruel espectáculo da exploração e da dominação do homem pelo homem, e este silêncio que é um apagão neural reflecte-se na sua concepção paupérrima da memória (Walter Benjamin) e do sonhar acordado (Ernst Bloch), o devaneio de Gaston Bachelard. A teoria neurobiológica da consciência de Damásio é o produto típico de um cérebro satisfeito consigo mesmo, com a sua "vidinha" egoísta - a do eu auto-biográfico que utiliza a introspecção para dar substância aos conceitos metafóricos que cria - e com o mundo tal como ele é - um inferno.

As obras de António Damásio:

Damásio, António (1994). O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Damásio, António (2000). O Sentimento de Si: O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Damásio, António (2003). Ao Encontro de Espinosa: As emoções sociais e a neurobiologia do sentir. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Damásio, António (2010). O Livro da Consciência: A construção do cérebro consciente. Lisboa: Círculo de Leitores.

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Antropologia e Primitivismo Português

«A tragédia mental de Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano». (Fernando Pessoa)

«Quando o carácter adoece e se dilui, é natural que o espírito de iniciativa dê lugar ao imitativo ou simiesco. A degenerescência inferior apaga os valores adquiridos que se conservam, em nós, como que num estado de perpétuo esforço. Sempre que o homem hesita na sua humanidade, aparece o macaco. Este persegue-nos constantemente, vigiando-nos, e aproveitando o primeiro descuido da nossa pessoa, para se lhe substituir». (Teixeira de Pascoaes)

«Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas.» (Sampaio Bruno)

Na história do espírito humano, podemos distinguir dois tipos de épocas: as épocas em que o homem está abrigado e as épocas em que o homem está à mercê das intempéries, sem-abrigo. Nas épocas abrigadas, o homem vive no mundo como se vivesse em sua própria casa, enquanto, nas épocas sem-abrigo, o mundo é uma imensa intempérie e, frequentemente, o homem não tem quatro estacas para erguer uma tenda. A natureza da reflexão antropológica varia em função da época em questão. Nas épocas abrigadas, o homem não é um ser problemático e, por isso, o pensamento antropológico integra-se pacificamente no seio do pensamento cosmológico, mas, nas épocas desabrigadas, o homem torna-se problemático para si mesmo e, em consequência disso, o pensamento antropológico adquire profundidade e independência. A pré-história da antropologia filosófica fornece todos os materiais para pensar esta conexão entre o tipo de época histórico-espiritual e a natureza do pensamento antropológico, bastando nomear Santo Agostinho que se surpreende com aquilo que no homem não pode ser compreendido como parte integrante do mundo, e o movimento espiritual da gnose, sobretudo o maniqueísmo, que, despojando a criação de valor, nega ao homem um lugar no mundo. Apesar da riqueza cognitiva desta pré-história antropológica, o nascimento da antropologia filosófica está estruturalmente ligado à emergência do capitalismo: «Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades que se condicionam uma à outra» (Lukács). O mundo contingente de que fala Lukács é, conforme mostraram Marx e Engels, uma criação do capitalismo: o pecado original do capitalismo - a apropriação privada dos bens da natureza e da sociedade - é a manifestação suprema da alienação. A associação teológica da alienação com o pecado original foi vista pelo jovem Lukács nestes termos: «O carácter estranho desta natureza relativamente à primeira, a apreensão moderna sentimental da natureza, não são mais do que a projecção da experiência que ensina ao homem que o mundo ambiente que ele mesmo criou não é para ele um lar, mas uma prisão». A contingência do mundo e o homem problemático são realidades e categorias históricas que se condicionam reciprocamente: a missão histórica - isto é, política - do marxismo foi dar um abrigo ao sem-abrigo, mais precisamente aos desabrigados pela revolução agrícola que precedeu a revolução industrial. Porém, independentemente dos efeitos nefastos da crise financeira e económica de 2008, a concretização de uma política do homem abrigado não é suficiente para garantir a desalienação do homem e do mundo, sobretudo quando conserva uma visão optimista e progressista da história sem a quebra radical da continuidade do capitalismo: quer dizer que o sem-abrigo é uma realidade humana originária - ou melhor, uma realidade bio-antropológica - refractária aos movimentos da história, a menos que o sonho médico totalitário seja capaz de alterar a natureza humana por meios farmacológicos, neuroquímicos e genéticos. A linguagem comum adulterou o sentido originário do sem-abrigo: em vez do seu sentido de abertura do homem ao mundo, o pensamento de rebanho do animal humano metabolicamente reduzido preferiu usá-lo negativamente, atribuindo este traço ou condição humana - aliás, o traço fundamental da liberdade do homem - aos homens que vivem na rua. Com esta adulteração do sentido originário do sem-abrigo, mediante a qual deixa de ser um conceito antropológico para passar a ser exclusivamente um conceito sociológico (Cf. Snow & Anderson), o homem europeu contemporâneo revela inadvertidamente a crise profunda da sua própria humanidade: a segurança é privilegiada em detrimento da liberdade e, quando isto acontece, o homem abdica da sua humanidade e entrega-se à preservação da sua animalidade, como se o mundo que criou fosse uma segunda natureza tão cega como a natureza que lhe é exterior. (:::)

No quadro da civilização europeia, o único povo que não criou uma metafísica foi o povo português. O facto de ser um povo sem metafísica (Hegel) é suficiente para classificar os portugueses como homens primitivos e arcaicos que, em vez de produzir a sua própria cultura superior, consomem a cultura alheia sem no entanto a compreender. Hoje em dia - por causa da massificação e do nivelamento por baixo - é difícil distinguir as três camadas da mentalidade portuguesa: aquilo que Fernando Pessoa atribuiu teoricamente a cada uma delas, eu atribuo ao português médio. A vida mental do português médio, uma figura psicológica e cognitivamente mumificada que está presente em todas as camadas sociais, revela-se na sua incapacidade de reflectir: o português é incapaz de pensar e, quando o finge fazer para imitar o estrangeiro civilizado, é incapaz de reflectir e de criticar com ideias próprias o que lê ou o que lhe dizem. Por causa desta incapacidade debilitante, os portugueses não evoluem e não crescem, vivendo parasitas de si mesmos e plagiando-se invejosamente uns aos outros para ver qual deles é o "grande macaco" que se destaca mais na praça pública. (:::) Embora não seja um fenómeno contemporâneo especificamente português, tendo entrado no território da filosofia pela mão de Peter Singer, a defesa irracional dos chamados direitos dos animais mostra até que ponto os portugueses já não confiam na sua própria humanidade, preferindo colocar-se ao nível dos animais, não dos animais selvagens mas sim dos animais domésticos. Apesar da diferença do tamanho do cérebro, a vida psicológica dos portugueses não é muito superior à dos chimpanzés ou, para referir um caso humano, à dos bosquímanos !Kung. Com esta comparação, pretendo chamar a atenção para o carácter arcaico e primitivo da vida mental e social dos portugueses, que pode ser estudada sem o recurso a teorias antropológicas sofisticadas: a ecologia do comportamento - utilizada por Robert Foley para apresentar uma síntese do processo de hominização e por Emilio F. Morán para estudar a ecologia humana dos povos primitivos da Amazónia - é suficiente para estudar os comportamentos dos portugueses. Os antropólogos sociais e os biólogos do comportamento das áreas da etologia, da ecologia comportamental e da sociobiologia encontram em Portugal um povo primitivo, cujo estudo pode ajudar a compreender a vida mental do homem primitivo: o genoma dos portugueses e de outras populações da Península Ibérica - fósseis vivos do homem primitivo - inclui alguns genes arcaicos, provavelmente responsáveis pelo seu provincianismo (Fernando Pessoa) e pelo seu estilo saloio. Quando aplicada ao estudo dos traços típicos dos portugueses e dos bascos, por exemplo, a genética do comportamento converte-se em arqueologia genética: o estudo de F. Cunha Leão - ele próprio um exemplar do homem primitivo - sobre a psicologia portuguesa destaca o excesso de emotividade nacional, associado a um complexo de inferioridade. (:::)

(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Metro do Porto: Estádio do Dragão

Metro do Porto: Campo 24 de Agosto

OPorto: Unesco World Heritage

Oporto, Portugal

As Pontes do Porto: Um passeio de barco

O Porto, Cidade Invicta

O Porto Medieval

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Que é feito do Museu de Etnografia do Porto?

Saquei da Internet esta informação sobre o Museu de Etnografia e História do Porto, que está fechado ao público desde 1992. Disseram-me - um mero boato - que muitas peças do espólio deste museu do Porto foram transferidas para outros museus, talvez para o Museu de Etnologia de Lisboa: um roubo injustificável que, até agora, ainda não foi explicado pela Câmara Municipal do Porto e pelo Ministério da Cultura! Sistematizar o inventário do museu significa roubar - e centralizar - as suas peças: eis a cultura patrimonial portuguesa! A aposta no turismo e na requalificação da cidade do Porto exige a reabertura de um Museu de Etnologia ousado! O Império Colonial português foi absolutamente negligenciado e esquecido: os vigaristas portugueses não têm sensibilidade cultural e, por isso, não coleccionaram artefactos culturais dos povos dos territórios ultramarinos colonizados. Maldito país que nem sequer uma antropologia soube elaborar! O culto em torno da figura de Jorge Dias - outro portuense de nascimento - não se justifica: a sua obra tem escasso valor teórico. (Porém, admiro a sua obra etnográfica e recordo aqui Vilarinho da Furna: Uma Aldeia Comunitária.) Quando assisti às conferências da exposição dos artefactos da Melanésia, uma colecção da Universidade do Porto, aqui na Ribeira, fiquei chocado com a ignorância vestida de arrogância intelectual dos conferencistas: os zombies universitários não tinham estudado essa área cultural da Oceânia, optando pela improvisação opinativa. Lembro-me de ter confrontado a indigência cognitiva de um deles com os estudos etnográficos de R. H. Codrington, B. Malinowski, Margaret Mead, F. Bell, J. Guiart e C. Belshaw, mas obtive como resposta uma charada à maneira de Lewis R. Binford: a arqueologia é, por excelência, a Ciência do Homem, e, no momento presente, já é toda a Filosofia! (A relação entre arqueologia e filosofia - Julian Thomas, Mathew Edgeworth, Th.C.W. Oudemans, Tim Ingold, Ian Hodder, Kent Lightfoot, Paul Newall - é uma outra história que poderei contar num outro post, até porque alguns estudantes de doutoramento em arqueologia estão interessados em conhecer a minha perspectiva. Porém, devo dizer que a arqueologia do saber de Michel Foucault não clarifica essa relação: «A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo» - «a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares» (Foucault). Escavar a imaginação metafórica da arqueologia é uma das tarefas da Filosofia, na execução da qual ela afirma a sua superioridade cognitiva! No entanto, a Filosofia - em especial o marxismo - já deu diversos contributos fundamentais para a arqueologia, bastando pensar na obra de V. Gordon Childe e de A. Leroi-Gourhan. As metáforas arqueológicas de Heidegger são avessas ao discurso arqueológico: o próprio Heidegger rejeitou uma leitura antropológica da sua ontologia fundamental. Fazer com que os calhaus arqueológicos - artefactos e monumentos, objectos e utensílios da cultura material - transpirem sem a ajuda da linguagem - a linguagem usada pelos fabricantes desses artefactos arqueológicos - uma tal ontologia é puro delírio arqueológico pós-moderno. A Filosofia não é um calhau e, conforme mostrou Hegel, resiste tenazmente à sua ossificação. A crítica hegeliana da frenologia - o Espírito não é um osso - pode ser retomada para criticar a arqueologia pós-moderna que tenta erguer-se à altura da Filosofia. A arqueologia hegeliana do espírito é completamente distinta das práticas discursivas da arqueologia pós-processual. Engels estabeleceu um paralelo entre a Fenomenologia do Espírito de Hegel e a Embriologia e a Paleontologia do Espírito: a Fenomenologia do Espírito é assim o desenvolvimento da consciência individual concebido, através das suas diferentes etapas, como a reprodução abreviada das fases por que, historicamente, passa a consciência do homem.)

Eis a informação:

«O Museu de Etnologia do Porto foi criado em 1945, sob a designação de Museu de Etnografia e História do Douro Litoral. Desde a sua fundação, o museu encontra-se instalado no Palácio de S. João Novo, datado do séc. XVIII, que estudos recentes apontam tratar-se de um projecto de arquitectura da autoria de António Pereira (mas geralmente atribuído a Nicolau Nasoni). O Palácio de S. João Novo sofreu uma degradação acentuada desde 1970, com reflexos particularmente negativos nas condições de conservação das colecções etnográficas. Em 1989, o museu transitou para a tutela do IPPC e, em 1991, para o IPM, vindo a ser encerrado ao público em 1992 dado o avançado estado de ruína do imóvel. Desde então, o IPM tem vindo a diligenciar pela salvaguarda do espólio do museu, traduzida, numa primeira fase, pelo depósito das suas colecções em diversos museus, com vista à sua protecção. Numa segunda fase foram efectuadas, com a colaboração da DGEMN, obras nas coberturas e na fachada do Palácio. Numa terceira fase, o IPM procederá à resolução da actual situação do Museu, o que ocorrerá posteriormente ao processo de sistematização do seu inventário» (CMP).

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Prós e Contras: Consolidação e Crescimento - Exportações

«Dentro do quadro estritamente nacional não cabem nem se explicam o movimento de expansão geográfica dos Portugueses e o seu dirigente principal, o infante D. Henrique. O Infante Navegador é uma das maiores figuras da Humanidade e a empresa dos descobrimentos lusitanos, uma das mais fecundas em resultados de todos os tempos. Basta divisar em conjunto a marcha geral da expansão do homem no planeta para se tornar patente que o momento decisivo, nessa série de tentativas por tantos séculos dispersas, é aquele em que os Portugueses, sob a direcção ou a inspiração do Infante (Azul e Branco, Blue Dragon), conseguem não só dar corpo e unidade aos esforços do passado, mas assegurar-lhes, pela eficiência do novo impulso, a continuidade no futuro. Com o advento das navegações portuguesas, o homem vai pela primeira vez conhecer os lineamentos gerais e a grandeza do planeta que habita, e concebe das suas possibilidades sobre a terra uma ideia exaltadora em alto grau das suas energias». (Jaime Cortesão)

As Descobertas dominaram o imaginário empresarial e patrimonial do debate Prós e Contras de hoje (14 de Fevereiro) e, por isso, escolhi esta imagem do Infante Dom Henrique de Avis, o ilustre portuense (Porto, 1394-1460) que abriu Portugal ao mundo, para fixar o conteúdo deste comentário: o estratega e dirigente da primeira globalização foi um homem do Porto. O Infante do Porto dirigiu a maior empresa nacional da História de Portugal e o seu mérito foi reconhecido mundialmente: Beazley - um historiador inglês - enalteceu-o, erguendo-o à categoria de primeiro entre os homens que provocaram os maiores progressos da Humanidade, chamando-lhe «o verdadeiro leader dum Renascimento e duma Reforma» (Jaime Cortesão). Portugal atravessa a maior crise da sua longa história e navega em águas mortas sem rumo e sem projecto de futuro: o Infante do Porto abriu-lhe o mundo mas Portugal não soube explorar de modo construtivo essa abertura ao mundo, fechando-se na sua própria mediocridade visceral - o deserto da cultura - por causa da corrupção endémica que o domina desde o 25 de Abril. Usei intencionalmente a expressão deserto da cultura para desconstruir o preconceito dominante - uma terrível mentira nacional! - que Fátima Campos Ferreira introduziu - talvez inadvertidamente - neste debate ao convidar um agente cultural - António Pimentel (Museu de Arte Antiga) - para discutir a necessidade de elaborar uma nova empresa nacional com empresários ou gestores de empresas privadas - Basílio Horta (AICEP), Luís Filipe Pereira (EFACEC), José Manuel Fernandes (Frezite) e Rogério Carapuça (NovaBase), entre outros empresários ligados ao sector das indústrias tradicionais. A presença de Basílio Horta reforçou o mote do debate: mais empresas a produzir e a exportar para mais mercados e mais imagem de Portugal no mundo. Para sair da crise, Portugal precisa de produzir mais e de exportar mais. Apesar de não detalhar um programa ou plano completo de crescimento económico, a perspectiva da internacionalização e da exportação rompe, pelo menos teoricamente, com a nefasta prática nacional de endividar o país para melhorar artificialmente o bem-estar dos portugueses (Luís Filipe Pereira): as únicas medidas defendidas por Basílio Horta para atrair o investimento estrangeiro foram o pacto laboral para a competitividade entre empresários e trabalhadores (1), crescer em conjunto e em cluster (2), crédito e políticas de apoio (3) e reforma do sistema de justiça (4). José Manuel Fernandes preferiu chamar a atenção para o desequilíbrio existente entre o sector dos serviços - a aposta portuguesa das últimas décadas - e o sector dos bens transaccionáveis para defender a regresso ao chão da fábrica e à economia real das empresas, distinta da macro-economia dos economistas do grande ecrã da TV. José Manuel Fernandes tem toda a razão quando diz que os empresários são parceiros activos na implementação de estratégias adequadas de desenvolvimento económico de Portugal, mas onde estão esses empresários schumpeterianos de risco? Os maiores empresários portugueses trocaram o chão da fábrica - o sector da produção industrial e agrícola - pelo facilitismo do lucro garantido do sector dos serviços não-exportáveis: as grandes fortunas portuguesas e as empresas do regime vivem predominantemente da exploração do metabolismo nacional. A maior parte dos empresários portugueses não produz grande riqueza nacional, traduzida na criação de empregos e no aproveitamento das pessoas qualificadas, nem sequer valoriza a cultura e o património. Alguém conhece uma fundação cultural financiada por um grande grupo empresarial português? O défice da cultura portuguesa é basicamente o défice das humanidades. Alguém conhece um grande grupo empresarial português com vontade de ajudar a suprir o défice da cultura humanista e filosófica? Ao contrário do que se passa noutros países, as grandes empresas portuguesas e os bancos privados não valorizam a cultura e a paisagem urbana: as suas sedes são anti-edifícios construídos num espaço urbano não-requalificado. Tenho sérias dúvidas quanto à capacidade de empresários deste calibre - destituídos até mesmo de cultura empresarial - para realizar e concretizar o Eixo Atlântico: uma concepção de Ernâni Lopes que José Manuel Fernandes lembrou neste debate.

O tema da cultura e das descobertas como paradigma de empresa nacional entrou no debate pela voz histórica de José Manuel Fernandes: Rogério Carapuça colocou a cultura e a língua portuguesa ao mesmo nível da diplomacia económica. Cultura encarada como investimento na massa cinzenta (Luís Filipe Pereira) e diplomacia económica podem ajudar a promover as exportações nacionais. Luís Filipe Pereira e Rogério Carapuça têm um conceito tecnológico de cultura: a cultura tecnológica significa investimento na massa cinzenta dos portugueses - os zombies sem mente! - e pode ser medida pelo número de indivíduos bem-preparados pelas luso-universidades deslumbradas com o seu vazio cognitivo - o novo mito nacional largamente difundido por Rogério Carapuça! - e pelo valor acrescentado (Luís Filipe Pereira). Não sou contra esta dimensão tecnológica da cultura e muito menos contra a plataforma do carro eléctrico e a aposta nas indústrias de tecnologia avançada com valor acrescentado: o que me chocou não foi tanto este conceito quantitativo da cultura, mas sobretudo a sua aceitação acrítica por parte de António Pimentel, que, além de ter subordinado a imaterialidade da cultura à sua materialidade patrimonial, com o objectivo de despromover a língua portuguesa como pátria da identidade, matou a cultura quando a olhou como produto de consumo. A suposta boa-preparação das novas gerações - 1 em 10 portugueses ontem, 1 em 3 portugueses hoje (Rogério Carapuça) - revela-se negativamente no uso do conceito de indústria cultural: o efeito de desconhecimento total do seu perfil epistemológico. O conceito de indústria cultural foi forjado por Theodor W. Adorno para substituir o conceito de cultura de massas, cuja crítica aristocrática já tinha sido feita por Ortega y Gasset. O efeito global do sistema unitário da indústria cultural é o de uma anti-desmistificação: a dominação técnica progressiva da natureza converte-se num logro colectivo que tolhe a consciência das massas (Adorno). A utilização do conceito de indústrias culturais no plural, levada a cabo por A. Girard, entre outros teóricos da comunicação, perde de vista este efeito global, o efeito de liquidação do indivíduo autónomo, tornando-se incapaz de criticar a cultura afirmativa (Marcuse) veiculada pelos mass media. Alheio a esta controvérsia científica, António Pimentel não só identificou as indústrias do imaginário (Patrice Flichy) com a esfera do consumo, submetendo os bens culturais ao princípio de comercialização (Brecht), sem levar em conta o seu efeito global de ofuscamento ideológico, como também fez da cultura uma embalagem comercial - o medium da linguagem visual do marketing - para facilitar as exportações nacionais. Um tal conceito heterónomo de cultura reflecte já o triunfo consumado do sistema da indústria da cultura: não só os seus consumidores passivos, como também os seus produtores e agentes, foram definitivamente privados da sua autonomia e da sua independência, tornando-se incapazes de avaliar com consciência e de tomar decisões racionais. Ao fazer da cultura - tomada sob a forma de turismo cultural - uma escrava da economia, António Pimentel limitou-se a reivindicar - a título pessoal - um lugar ao sol no xadrez do poder vigente da sociedade administrada. Curiosamente, foi uma figura administrativa - Rogério Carapuça - que referiu a não-existência de um grande filme sobre os descobrimentos portugueses. Com a nomeação desta lacuna cultural, caiu por terra a sua confiança na qualidade das universidades portuguesas: o aumento do número de diplomados - sobretudo quando estes diplomados são analfabetos funcionais - não significa necessariamente maior preparação técnica e científica para resolver os desafios do futuro. A cultura portuguesa é, toda ela, uma enorme lacuna, ou melhor, um deserto cognitivo: os poucos oásis de cultura criativa que surgem no seio deste vasto deserto lusitano, como por exemplo a Escola do Porto, são sistematicamente mergulhados no esquecimento pelos zombies universitários que só colaboram entre si nestas criminosas ocasiões, para liquidar todos aqueles que assombram a sua mediocridade visceral. As universidades portuguesas são cloacas comportamentais, isto é, escolas do crime cultural. Para singrar e vencer em Portugal, é preciso ter cunhas: o mérito é uma palavra estranha ao universo português. Toda a organização social portuguesa milita contra a competitividade, interna e externa: a inveja patológica dos portugueses - a manifestação pública da sua mediocridade genética - mata tudo o que é distinto. Nesse sentido, concordo com Rogério Carapuça quando afirma que a mudança de atitude vem antes da definição de estratégias adequadas (Luís Filipe Pereira), mas não vejo como podemos alterar a atitude invejosa dos portugueses sem lhes impor de cima uma estratégia integral e multi-factorial de desenvolvimento nacional. O resgate da cultura portuguesa implica a eliminação dos burros malvados que ocuparam ao longo dos tempos os centros de decisão nacional, da política à cultura, passando pela comunicação social. O estado de inveja patológica faz de Portugal uma mentira organizada e, se nada fizermos para alterar esse estado de degeneração através de uma revolução cultural permanente, não podemos sonhar com um mundo melhor: a psicologia de base dos portugueses é avessa à cultura superior, o que ajuda a compreender a sua propensão quase-inata para a corrupção, a alienação e a adição tecnológica. A imagem de massas desalmadas de zombies ligados em rede pela via do telemóvel ou da Internet, perseguindo os homens verdadeiramente humanos, - a imagem de Portugal Contemporâneo! -, é um espectáculo sinistro. Portugal é um filme de terror.

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Apresentação de Adolf Portmann

«Em Basileia, Adolf Portmann, outro zoólogo, tinha assinalado que a situação especial do homem como ser que aprende mantém uma relação com a singularidade do primeiro ano de vida humana, singularidade que deveria ser qualificada de anomalia se se a compararmos com os processos respectivos na natureza, ou seja, se se fizermos de novo o paralelo com o animal. Se nos limitarmos à maturação dos órgãos, à capacidade de movimento, à potência sensorial, ao desenvolvimento da faculdade de comunicar e emitir sinais específicos, isto é, humanos - a linguagem, deveríamos considerar o recém-nascido como um produto típico de um parto prematuro. Somente ao fim do primeiro ano de vida alcança certa capacidade de orientação e de movimento, começando a comunicar com outras pessoas; todas estas são faculdades que os animais superiores exibem pouco depois do seu nascimento e, com frequência, poucas horas depois de nascerem. Por outras palavras, esta singularidade do primeiro ano de vida humana - que Portmann descreve como um ano de vida embrionária extra-uterina - indica que, quanto à percepção e ao movimento, os processos decisivos de maturação operam durante um ano inteiro como situações de aprendizagem sob a influência orientadora do meio circundante. A capacidade de aprendizagem do ser humano e esta influência orientadora do seu meio estão, por assim dizer, incluídas no plano de desenvolvimento puramente biológico, sendo a criança típica e normalmente (ainda que anormalmente em relação ao animal) sacada do corpo materno para ser submetida a essa influência do meio. O homem conserva por muitos anos esta docilidade de suas funções sensoriais, motoras e expressivas. Baseando-se nisto, o anatomista holandês Ludwig Bolk observou que a sua idade adulta e, até certo ponto, toda a sua vida, é caracterizada por uma notável retenção de traços da primeira infância.» (Arnold Gehlen)

«A adaptação a condições de vida demasiado cómodas significa degeneração». (Arnold Gehlen)

Felizmente, nem todos os biólogos foram seduzidos pela vulgata darwinista, e, entre eles, Adolf Portmann (1897-1982) merece um destaque especial: a originalidade da obra biológica de Portmann não reside somente no seu programa de pesquisa morfológica, mas sobretudo no seu contributo fundamental para a elaboração de uma bio-antropologia filosófica. Max Scheler - o pai fundador da antropologia filosófica, juntamente com Helmuth Plessner - partiu da comparação entre a conduta humana e a conduta animal para destacar a abertura ao mundo (Weltoffenheit) do homem e a vinculação ao meio (Umweltgebundenheit) do animal: o paralelo estabelecido entre o homem e o animal em termos de comportamento - o mesmo que atravessa o esboço antropológico de Herder - permite a Scheler fundamentar a peculiar posição do homem no reino animal no espírito (Geist) - a posição excêntrica do homem de Plessner - e nas suas relações espirituais. Arnold Gehlen retoma esta abordagem para analisar a essência do homem: frente à elevada especialização e segurança instintiva do animal, o homem apresenta-se biologicamente como um ser deficiente por causa da sua falta de especialização, da sua imaturidade e da sua pobreza instintiva. Para conseguir sobreviver, o homem é obrigado a compensar essa redução ou inibição dos instintos (Scheler) e de especializações com a sua própria acção: as suas realizações espirituais e culturais resultam desta compensação institucional. Porém, como demonstraram Portmann e Lorenz, as realizações positivas e superiores do homem não podem ser explicadas somente a partir do elemento negativo de uma deficiência: a peculiaridade do homem afecta - segundo Portmann - a sua própria constituição biológica, o seu comportamento e até mesmo o processo das fases do seu ciclo vital. Para Portmann, o homem, comparado com os demais mamíferos superiores, nasce de um parto prematuro e, por causa de nascer inacabado do ponto de vista fisiológico, está exposto na fase final do seu desenvolvimento embrionário extra-uterino às influências do meio social, do qual recebe impressões decisivas. Sendo prematuramente sacado do corpo materno, o recém-nascido, pelo menos durante o seu primeiro ano de vida, apresenta-se aberto ao mundo, «sofrendo» precocemente a acção orientadora e modeladora de uma multidão de impressões - inundação de estímulos sociais (Gehlen) - que se precipitam sobre ele. Porém, para Portmann, o homem já vem preparado biologicamente para lidar com as relações espirituais e culturais, com as relações pessoais e sociais e com o especificamente humano, enquanto, para Gehlen, a espécie humana exibe traços de uma paralisação da evolução: Gehlen explica a deficiência humana - o homem como ser incompleto e em perigo - a partir do nascimento prematuro (Portmann) e do primitivismo dos órgãos humanos caracterizados como «estados ou circunstâncias fetais que se tornaram permanentes» (Bolk), ao mesmo tempo que rejeita a hipótese da domesticação de Lorenz. Portmann distancia-se de Gehlen, sobretudo da sua concepção do homem como ser deficiente ou carente, quando afirma que «à debilidade relativa da organização instintiva no homem» se opõe «um crescimento pujante de outros sistemas centrais de impulsos», reconhecíveis pelo «poderoso aumento da massa do córtex cerebral e dos seus sulcos». A lentidão do desenvolvimento do homem - o prolongamento da infância - não deve ser vista unicamente como algo negativo, porque ela corresponde perfeitamente à peculiaridade psíquica do homem - o seu espírito - como ser cultural e social. Ora, é precisamente nesta abertura do biológico ao sócio-cultural que reside o génio científico e filosófico de Portmann.

Obras de Adolf Portmann que deviam ser traduzidas em língua portuguesa, pelos menos as assinaladas a negrito:

Portmann, Adolf (1962). Zoologie und das neue Bild des Menschen. Hamburg. (Esta obra foi publicada inicialmente com o título Biologische Fragmente zu einer Lehre vom Menschen, Basel 1944.)
Portmann, Adolf (1963). Biologie und Geist. Friburg.
Portmann, Adolf (1964). Um das Menschenbild: Biologische Beiträge zu einer Anthropologie. Stuttgart.
Portmann, Adolf (1971). Entläßt die Natur des Menschen? München.
Portmann, Adolf (1946). Natur und Kultur im Sozialleben: ein Beitrag der Lebensforschung zu aktuellen Fragen. Basel.
Portmann, Adolf (1948). Einführung in die vergleichende Morphologie der Wirbeltiere. Basel. (Obra fundamental de morfologia que encantou Hannah Arendt por causa da sua teoria da aparência e da sua inversão das prioridades.)
Portmann, Adolf (1948). Die Tiergestalt. Basel.
Portmann, Adolf (1953). Das Tier als soziales Wesen. Zürich.
Portmann, Adolf (1960). Neue Wege der Biologie. München.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O Café Marx (3)

... e a Doença de Alzheimer.

«Envelhecer significa a transformação gradual (ou antes, súbita) de um mundo de rostos familiares (quer seja de amigos ou de inimigos) numa espécie de deserto habitado por rostos estranhos. Por outras palavras, não sou eu que me retiro do mundo, é o mundo que se desfaz». (Hannah Arendt)

Goethe definiu o envelhecer como o retirar-se gradualmente da aparência. Porém, quando começou a envelhecer, Hannah Arendt viveu essa separação do mundo, não como retirada do mundo, mas como o próprio mundo a retirar-se à sua volta, ou melhor, como a progressiva dissolução de um mundo de seres prontos a acolher o seu aparecer, através do desaparecimento desses seres. Arendt capta e tematiza uma experiência universal: a morte dos outros próximos, amigos ou inimigos, faz de nós órfãos de mundo: o nosso mundo começa a estreitar-se e a retirar-se gradual ou subitamente até ao seu desaparecimento final. De certo modo, o crescimento e o envelhecimento são etapas opostas do ciclo vital: o envelhecimento estreita os horizontes do nosso mundo, definidos e traçados pelos adultos - esses estranhos cartógrafos remotos que traçam o mapa do nosso sistema localizado de relações de conflito ou de cooperação no mundo - durante o nosso período de crescimento. Os endereços que coleccionámos durante este período de expansão vital - com o objectivo de ingressarmos na cosmovisão dos adultos - começam a desaparecer à medida que envelhecemos: cada endereço conquistado por cada um de nós é mais uma localização do nosso eu na rede de relações de um mapa social em expansão, e a perda de um endereço - a morte de um outro, querido ou detestado - implica o retraimento, ou melhor, a contracção desse nosso mundo de outros prontos a acolher o nosso aparecer. A troca de e-mails pode ajudar a compreender a ideia nuclear subjacente à concepção arendtiana do envelhecimento. Quando envio o meu endereço exacto a um «estranho» com quem teclei algures num chat e recebo a sua resposta, a minha rede de relações alarga-se, na medida em que me tornei visível para mais um outro ser. Mas, se esse outro morrer mais tarde e deixar por isso de me responder, o meu mundo de relações começa a contrair-se. Ora, envelhecer é precisamente tornarmo-nos invisíveis para o mundo, através da morte dos outros que acolhiam o nosso aparecer. Envelhecer é viver essa dolorosa experiência do nosso próprio apagamento: a "morte" rouba-nos os outros prontos a receber a revelação - a manifestação - do nosso ser singular e a ser testemunhas dela. O facto de não podermos manifestar a mais ninguém a nossa auto-revelação amputa-nos da nossa abertura ao mundo. O conceito de abertura ao mundo foi forjado por Max Scheler e retomado mais tarde por Arnold Gehlen para determinar o lugar especial ocupado pelo homem no reino animal, mas H. Arendt tomou-o de Adolf Portmann, cuja obra Zoologie und das neue Bild vom Menschen (1951, 1956) opera a inversão das prioridades: «Não o que algo é, mas a maneira como "aparece", é o problema a investigar» (Portmann).

A doença de Alzheimer coloca um grande desafio à ontologia fenomenológica que suporta o pensamento político de Hannah Arendt: «O mundo em que os homens nascem contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas, que têm todas em comum o facto de aparecerem e, por essa razão, são feitas para serem vistas, ouvidas, tocadas, saboreadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sencientes dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Neste mundo em que entramos, aparecendo vindos de parte nenhuma, e do qual desaparecemos para parte nenhuma, Ser e Aparência coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende para o seu ser, isto é, para a sua dimensão de aparência, da presença de criaturas vivas. Nada nem ninguém existe neste mundo cujo verdadeiro ser não pressuponha um espectador. Por outras palavras, nada do que é, na medida em que aparece, existe no singular; tudo o que é está destinado a ser percebido por alguém. Não é o Homem mas sim os homens quem habita o planeta. A pluralidade é a lei da terra» (Arendt). Não pretendo impugnar esta coincidência entre o ser e a aparência, até porque ela não é estranha à dialéctica: o que pretendo fazer é pensar a condição terrível - anti-humana e anti-política - do doente de Alzheimer à luz do princípio de que o aparecer é um co-aparecer, na medida em que os outros seres aos quais apareço, aparecem-me, por sua vez. Para Arendt, o sujeito puro espectador não existe: cada um de nós é, ao mesmo tempo, espectador e actor nesse palco que é o mundo comum: «Tudo o que pode ver deseja ser visto, tudo o que pode ouvir pede para ser ouvido, tudo o que pode tocar apresenta-se para ser tocado» (Arendt). A nossa vida decorre entre o nascimento e a morte: ao nascer fazemos a nossa primeira aparição no mundo e, ao morrer, desaparecemos definitivamente deste mundo. Arendt recorda que, para os romanos, morrer é o mesmo que deixar de estar ou ser entre os homens, inter homines esse, donde resulta que viver é estar entre os homens: cada um de nós só acede à existência efectiva quando aparece a outros homens e, ao mesmo tempo, acolhe o aparecimento desses mesmos homens. O mundo comum é precisamente o espaço que permite a cada um de nós aceder à sua realidade, fornecendo-nos o palco onde fazemos aparecer essa realidade singular que cada um de nós é. A dimensão do aparecer unifica todos os aspectos da condição humana: nascimento e morte, pluralidade e mundaneidade.

A demência associada à doença de Alzheimer resulta de influências hereditárias, que afectam predominantemente pessoas nas 4ª e 5ª décadas da vida, ou de fontes não-genéticas, em especial no caso dos indivíduos idosos, que incluem acúmulo de proteína, infecção, toxinas, distúrbio neuroquímico ou insuficiência vascular. Em ambas as circunstâncias, depósitos abundantes de amilóide são encontrados no sistema nervoso central. Os sinais mais evidentes da doença de Alzheimer são a deterioração progressiva da função da memória - sobretudo da memória a longo prazo, e a falha das tarefas da linguagem, da orientação visual-espacial, do pensamento abstracto e do julgamento, efeitos estes acompanhados por alterações da personalidade, com distúrbios de humor e de comportamento: os pacientes acabam por não reconhecer os próprios familiares e a si mesmos quando colocados frente a um espelho. Usando a linguagem de Daniel Dennett e de David J. Chalmers, podemos definir - literalmente - o doente de Alzheimer como um zombie. Completamente dependente dos outros, ele habita um deserto povoado por rostos estranhos, sendo ele próprio estranho a si mesmo: o mundo do doente de Alzheimer desfaz-se rápida e completamente. Embora o seu corpo continue a ter visibilidade para os outros, ele próprio - tomado na sua singularidade e na sua dignidade ontológica - já desapareceu em vida, não só para os outros, mas também para si mesmo: é um morto em vida - um cadáver adiado e inútil - que permanece entre os homens. Sem pretender explicitar todos os aspectos desta condição à luz da fenomenologia geral, destaco apenas a perda da humanidade: «uma criatura sem espírito não pode possuir algo como uma experiência de identidade pessoal» (H. Arendt). O impulso para aparecer e para se ajustar ao mundo das aparências, exibindo e mostrando, não o seu eu interior mas a si próprio como um indivíduo, abandona completamente o doente de Alzheimer, deixando-o inteiramente entregue ao seu processo vital interno. Destituído desse impulso de aparecer, o doente de Alzheimer perde a sua humanidade, a sua humanitas: ele está ali diante de nós sem poder escolher deliberadamente o que mostrar e o que esconder.

Anexo. Uma conjectura provocante: a inércia mental dos portugueses, isto é, a sua indigência mental e cognitiva "natural" condena-os mais tarde ou mais cedo a manifestar a doença de Alzheimer. O estudo de David Snowdon suporta esta hipótese: pessoas que apresentaram baixa densidade de ideias durante a sua vida adulta juvenil revelam um risco particular para este tipo de demência. Os escritos de baixíssima densidade de ideias dos jovens portugueses apontam nesse sentido: o destino de Portugal como deserto-cemitério de zombies-Alzheimer.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Café Marx (2)

... e os Direitos do Homem.

«Toda a emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem. /A emancipação política é uma redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente e egoísta e, por outro, a cidadão, a pessoa moral. /A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver absorvido em si o cidadão abstracto; quando como homem individual, na vida de cada dia, no trabalho e nas suas relações, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado os seus próprios poderes como poderes sociais, de maneira a nunca mais separar de si este poder social como poder político.» (Karl Marx)

«Os direitos do homem são, em parte, direitos políticos, que só podem exercer-se quando se é membro de uma comunidade. O seu conteúdo é a participação na vida da comunidade, na vida política da comunidade, na vida do Estado.» (Karl Marx)

Max Horkheimer nunca apreciou a figura intelectual e moral de Jürgen Habermas e, por causa disso, a sua amizade com Theodor W. Adorno foi assombrada durante algum tempo: o tempo deu-lhe razão. A filosofia política e jurídica de Habermas abandona o espírito crítico que move a teoria marxista: Faktizität und Geltung (1992, 1994) cita apenas uma obra de Karl Marx - O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, sem referir uma única vez a crítica da Declaração dos Direitos do Homem de 1793 (e de 1791) feita por Marx na sua obra A Questão Judaica. Quando aborda o pensamento político de Arendt, Habermas não detecta que a sua crítica dos direitos humanos está muito próxima da crítica de Marx, a qual - por sua vez - pode ser confrontada com a crítica de Edmund Burke, através da mediação do humanismo integral de Ernst Bloch. Todos eles criticam o individualismo abstracto da Declaração dos Direitos do Homem: a noção arendtiana de direito à pluralidade, definido como direito a ter direitos, já se encontra tematizada nas obras de juventude de Marx. Porém, ao encarar a "sociedade" - o mundo comum de Arendt - como totalidade social antagónica, a crítica marxista do carácter abstracto e egoísta dos direitos humanos vai mais longe, na medida em que exige a restituição integral do mundo humano - a própria História! - ao próprio homem: falta-nos apenas desenvolver uma ontologia integral do sem-abrigo e do sem-mundo, de resto já aflorada na estética e na ontologia do ser-social de Georg Lukács. Mas, como não pretendo partilhar estes pensamentos profundos, deixo aqui algumas referências bibliográficas:

Marx, Karl (1975). Escritos de Juventude. Lisboa: Edições 70.
Marx, Karl (1984). O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. Lisboa: Edições Avante!. (As traduções portuguesas das obras de Marx devem ser revistas e refeitas, porque não têm qualidade.)
Arendt, Hannah (1998). Origens do Totalitarismo: Anti-Semitismo, Imperialismo, Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. (Esta obra foi publicada em Portugal pelas Publicações Dom Quixote.)
Bloch, Ernst (1961). Naturrecht und Menschliche Würde (Direito Natural e Dignidade Humana). Frankfurt: Suhrkamp.
Habermas, Jürgen (1998). Facticidad y Validez: Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Valladolid: Trotta. (A razão comunicativa de Habermas não me convence: a sua fraqueza reside no facto de ser impotente para garantir as condições objectivas do seu uso público quando estas são ameaçadas pela racionalidade instrumental, iníqua e invasora da economia de mercado. A democracia radical é incompatível com o capitalismo. Habermas priva a Filosofia precisamente daquilo que ela necessita para continuar a pensar um mundo melhor: a filosofia da história e a antropologia fundamental. A obsessão pela fundamentação normativa esquece que a fundamentação não garante a dignidade humana. O capital financeiro e os seus agentes diabólicos riem-se da fundamentação e da teoria do discurso, ao mesmo tempo que não escutam as vozes do protesto. Onde está a democracia quando o regime vigente priva a maior parte da humanidade do direito à palavra escutada? Do diálogo com os opressores - cegos e surdos em relação à vida alheia que sacrificam para conservar o seu narcisismo diabólico - nunca surgirá a emancipação! O abandono da tópica marxista e do paradigma da produção inviabiliza o projecto político da emancipação: a Esquerda privou-se da sua própria política, como se o capitalismo quisesse sustentar a sua agenda irracional de direitos, incluindo os direitos sociais!)
Bobbio, Norberto (1992). A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus.
Lefort, Claude (1980). Droits de l'Homme et Politique. Paris: Payot.
Lefort, Claude (1986). Essais sur le Politique. Paris: Seuil.
Gauchet, Marcel (1980). Les droits de l'homme ne sont pas une politique. Paris: Gallimard.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Prós e Contras: Mundo em Mudança

«A genuína e própria filosofia começa no Ocidente. Só no Ocidente se ergue a liberdade da autoconsciência, desaparece a consciência natural e o espírito desce dentro de si próprio. No esplendor do Oriente desaparece o indivíduo; só no Ocidente a luz se torna a lâmpada do pensamento que se ilumina a si própria, criando por si o seu mundo. (...) A liberdade no Oriente, na Grécia e no mundo germânico pode definir-se de modo provisório e superficial com as seguintes fórmulas: no Oriente é livre um só, o déspota; na Grécia são livres alguns; na vida germânica vale o axioma que todos são livres, isto é, o homem é livre enquanto homem». (Hegel)

Prós e Contras debateu hoje (7 de Fevereiro) a revolução árabe - o efeito dominó de Fátima Campos Ferreira, cujo epicentro se localizou primeiramente na Tunísia, contagiando a seguir o Egipto -, em especial as revoltas dos jovens egípcios na Praça Tahrir - Cairo - que se iniciaram no dia 25 de Janeiro. Com o levantamento da Tunísia, o Egipto perdeu o medo (Miguel Portas) e os jovens com ganhos de instrução e de educação exigem a queda do regime de Hosni Mubarak. Conforme mostrou Ângelo Correia, as realidades sociais dos países árabes são muito diferentes entre si, e estas diferenças geram lógicas revolucionárias específicas. Porém, apesar da especificidade de cada país, "nada vai ser igual no futuro" (Ângelo Correia), porque o mundo islâmico está em mutação: o levantamento sem fronteiras devolve o orgulho ao mundo árabe. Em relação ao Egipto, Ângelo Correia apontou três ordens de razões que ajudam a compreender a irrupção inesperada das manifestações anti-Mubarak na Praça Tahrir: a pressão demográfica e a escassez de recursos, a luta contra a corrupção e a iniquidade e a angústia das novas gerações provenientes da pequena e média burguesia. A sociedade egípcia é demograficamente uma sociedade jovem: os jovens egípcios estão condenados à pobreza e ao desemprego e, tal como sucede na Europa, "estudam para ser escravos" (Miguel Portas) ou para ficar no desemprego. A alta burguesia egípcia monopoliza todos os recursos nacionais, recusando partilhá-los com os jovens desempregados e com os pobres. A cleptocracia egípcia denunciada neste debate é muito idêntica à cleptocracia que reina nas democracias ocidentais e, quando criticou a ineficácia da Plataforma de Barcelona, Ângelo Correia chamou a atenção para a corrupção europeia: a democracia e a ideologia hipócrita dos direitos humanos não nos protegem do Estado governado por ladrões. O nosso mundo em mudança exige uma nova filosofia política e uma nova filosofia da história: tentar aplicar-lhe as categorias clássicas adia o inevitável, isto é, a consumação da revolução global. A filosofia da história de Hegel, retomada fraudulentamente por Fukuyama em chave neoliberal, enganou-se quando supôs que o islamismo - a Irmandade Muçulmana - tinha desaparecido do «solo da história universal, refugiando-se na comodidade e sossego orientais»: 11 de Setembro mostrou a sua vitalidade e a potência agressora - a América - foi brutalmente atacada no seu interior e no seu orgulho. As revoltas árabes voltam a colocar na ordem do dia a importância civilizacional do Mediterrâneo, e a China, ao comprar a dívida pública da Grécia e de Portugal, está interessada em controlá-lo. O novo pensamento político que precisamos para pensar o nosso mundo global só pode ser elaborado a partir do marxismo liberto desse fardo pesado que foi o comunismo: o marxismo - tomado como crítica do progresso - é a única filosofia capaz de unir as diversas culturas sem as privar da sua identidade.

Joshua Ruah teme que o estabelecimento da democracia no Egipto possa vir a prejudicar os interesses estratégicos de Israel, mas, apesar do carácter mesquinho desta perspectiva, tanto ele como os outros participantes acreditam que a revolução árabe visa derrubar os regimes autoritários e cleptocráticos, pelo menos nas Repúblicas do mundo árabe (Loureiro dos Santos), e, nas palavras enfáticas de Adel Sidarus, operar a abertura árabe ao mundo, à modernidade e à democracia. Helena Trindade Lopes, que citou Sólon para diminuir os méritos da civilização grega em relação à civilização egípcia, esquece que a democracia que os egípcios parecem reclamar é precisamente uma invenção grega e que, sem a emergência da filosofia na Grécia, o Ocidente não teria tido os instrumentos teóricos para operar a modernidade. O Egipto e a Suméria foram efectivamente grandes civilizações (Ângelo Correia), mas não atingiram o nível de desenvolvimento cognitivo, social e político alcançado tanto pela Grécia Antiga como pelo Império Romano. O que me choca não é tanto esta reverência pelo Domínio do Faraó - aliás sintomática! - mas sobretudo o facto de Miguel Portas e da Esquerda estarem reféns da agenda ocidental - neoliberal, claro! - da democracia e dos direitos humanos: o Holocausto desmentiu a eficácia de uma política levada a cabo em nome dos direitos humanos (Hannah Arendt) e as lógicas neoliberais expulsam todos os dias os desempregados e as vítimas da corrupção da humanidade. Al Jazeera possibilita o diálogo dos árabes uns com os outros e a globalização da comunicação mostra-lhes a existência de outros mundos, nomeadamente do mundo ocidental. Porém, o Ocidente tal como o conhecemos é a catástrofe, e, depois desta revelação da crise financeira e económica, já não pode ser apresentado como imagem de libertação. Os problemas que afligem os jovens egípcios são os mesmos problemas que deviam preocupar os jovens europeus: pobreza, desemprego, fome, escravatura, miséria, vagabundagem, privação, educação deficitária, nomadismo, vida errante, vida precária, desenraizamento, ausência de futuro, insegurança ontológica, incerteza, violência, vida angustiada, tristeza, enfim alienação. A democracia não protegeu ninguém dos malefícios do neoliberalismo e da gula irracional dos especuladores - amigos das prostitutas de luxo! - de Wall Street. Não há apenas um Mubarak mas diversos Mubarak's no mundo inteiro, incluindo a Europa e a América: a existência plural dos Mubarak's - todos eles obscena e corruptamente ladrões ricos que não abdicam do poder, onde permanecem até morrer - apaga a diferença entre regimes democráticos e regimes autoritários. No Ocidente, a democracia vigente confirma a suspeita de Aristóteles de que a democracia impulsiona e provoca a tirania, no nosso caso a cleptocracia totalitária: a aliança fatal entre democracia e capitalismo impede o regime democrático de resolver os problemas sociais que o capitalismo gera, precisamente a pobreza, as desigualdades sociais e a corrupção. Ora, se a democracia não aboliu a pobreza no Ocidente, também não o poderá fazer no Oriente ou em qualquer outra parte do mundo: os cidadãos do mundo global que usam as redes sociais para comunicar entre si têm um inimigo comum que é o capitalismo. Quando um autor reaccionário como Robert A. Dahl escreve que «a teoria democrática continua a ser muito insatisfatória», ele mais não faz do que condenar o capitalismo que bloqueia o desenvolvimento democrático, mesmo que não tenha consciência disso. A Esquerda já devia saber que, no quadro da actual democracia capitalista, não podemos sonhar com a construção efectiva de um mundo melhor: não há diálogo possível entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos. A situação precária dos jovens egípcios não vai melhorar se a mudança de regime político não for acompanhada por uma mudança de sistema social: a democracia não põe comida no prato, se o motivo da revolta for tão-somente a auto-preservação sem transcendência. A luta entre gerações deve converter-se em luta política pela conquista do poder: a eliminação física das geriatrias instaladas acabará por acontecer mais tarde ou mais cedo, sobretudo aqui na Europa. O mundo europeu envelhecido que sobrecarrega a segurança social e o mundo árabe juvenil dominado por velhos corruptos apontam, cada um seguindo o seu próprio caminho, nessa direcção: o prolongamento da vida não é uma utopia, como pensou Ernst Bloch, mas sim uma anti-utopia, na medida em que subverte a própria dinâmica de renovação da vida. E hoje em dia lutar pela vida é lutar contra o capitalismo, cuja lógica necrófila nos rouba a dignidade da vida humana. Entre o princípio de Robespierre la liberté et la terreur e o princípio islâmico la religion et la terreur, prefiro o primeiro, embora seja obrigado a reconhecer a vitalidade do segundo.

J Francisco Saraiva de Sousa