quinta-feira, 30 de junho de 2011

Filosofia Imunológica

«O sistema genético e o sistema imunitário funcionam como memórias que registam o passado da espécie e o passado do indivíduo, respectivamente. Mas um ser vivo não é apenas o último elo de uma cadeia ininterrupta de organismos. A vida é um processo que não se limita a registar o passado, mas que se vira também para o futuro. Segundo parece, o sistema nervoso surgiu como aparelho para coordenar o comportamento de diversas células nos organismos multicelulares. Tornou-se depois máquina registadora de determinados acontecimentos da vida do indivíduo. E, finalmente, tornou-se capaz de inventar o futuro». (François Jacob)

François Jacob esboça - em poucas palavras - uma teoria dos sistemas biológicos - o sistema genético, o sistema imunitário e o sistema nervoso - que ainda não foi pensada filosoficamente ou mesmo cientificamente. Pensar filosoficamente a teoria biológica - tal como tem sido elaborada pelas ciências biológicas - é tarefa que compete à Filosofia Biológica: aqui o que pretendo fazer é dar início à formulação da Filosofia do Sistema Imunitário. Segundo Jacob, o sistema imunitário funciona como memória que regista o passado infeccioso do indivíduo. Pensar a memória imunitária nas suas relações com a memória genética e a memória neural constitui desde logo um desafio-objecto-território para a Filosofia Imunológica: aquilo a que chamei memória neural ou, se quiserem, memória neuro-psicológica, foi sempre o alvo preferencial da reflexão filosófica. A Filosofia da Memória tem um passado milenar fabuloso, constituindo talvez um dos maiores tesouros cognitivos do pensamento filosófico. As ciências biológicas lançaram dois desafios a esse legado filosófico, primeiro quando reduziram a memória considerada até aqui como uma faculdade da mente consciente a uma função cerebral susceptível de ser explicada pela linguagem celular e molecular da neurobiologia da memória, e segundo quando começaram - graças ao desenvolvimento da biologia molecular - a falar de outros tipos de memória, tais como a memória genética e a memória imunitária. (E o que pensar da memória imunitária das sucessivas gravidezes masculinas «localizada» algures no útero da mãe?) Quando desafiada pela ciência, a filosofia tende a recuar, e este recuo assume geralmente duas formas: o abandono-entrega desse objecto de estudo - ou fragmento do mundo real - à competência da análise científica, limitando-se a filosofia a fazer a teoria do conhecimento científico, ou então continuar a fazer o seu percurso teórico autónomo ignorando o discurso e a prática efectiva das ciências. Os cientistas ficam muito frustrados com estas duas reacções filosóficas às descobertas científicas: eles depositam muita confiança na Filosofia e desejam que a Filosofia seja algo mais do que uma mera epistemologia da ciência que praticam. Como cientista partilho este desejo legítimo da ciência, e como filósofo vou procurar satisfazê-lo. Não sei se repararam que, quando mencionei os desafios colocados pela ciência à filosofia, omiti o discurso dos "ismos", tais como monismo, dualismo ou interaccionismo, materialismo ou idealismo. Esta omissão filosófica não é inocente: antes de colocar desafios filosóficos ousados à ciência, prefiro pensar filosoficamente as suas teorias-paradigmas, procurando dar um contributo para a sua clarificação teórica e para o conhecimento da fábrica do mundo. No que se refere às relações entre filosofia e ciência, afasto-me das posições dos meus mestres que condenaram - talvez injustamente - a tentativa inacabada de Engels de elaborar uma «dialéctica da natureza». Assim, por exemplo, Althusser forjou a expressão filosofia espontânea dos cientistas para delimitar o espaço de intervenção da filosofia no discurso científico: o papel da filosofia é evitar que os cientistas se desviem da verdadeira filosofia da ciência - o materialismo, sem no entanto interferir com os seus conteúdos objectivos de conhecimento. Ora, se as considerarmos na sua dimensão estritamente cognitiva, filosofia e ciência não são distintas uma da outra: ambas tecem teorias e modelos que acrescentam à realidade-mundo as determinações do seu conhecimento. Porém, mesmo que essa fosse a sua principal função crítica, a filosofia poderia - e pode - ser obrigada - no decorrer do seu cumprimento-desempenho - a interferir com a interpretação da ciência e dos seus conteúdos objectivos de conhecimento, como o demonstra a polémica em torno da interpretação adequada da mecânica quântica. Para mostrar que a sua interpretação adequada é o materialismo, Althusser seria forçado a introduzir alterações substanciais no corpo teórico e empírico da física quântica, refutando a interpretação idealista como desvio-erro-padrão da filosofia espontânea dos físicos em relação ao programa materialista de investigação. Qualquer tentativa filosófica de sistematizar a filosofia espontânea dos cientistas, dando-lhe a forma ajustada e adequada, interfere com a prática científica na sua relação de conhecimento com o mundo ou o fragmento do mundo que tematiza. Filosofia e ciência devem unir os seus esforços na busca cooperativa da verdade. E será à luz dessa cooperação ciência-filosofia - aliás benéfica para ambas! - que tentarei esboçar as linhas gerais da filosofia do sistema imunitário.

Susan Sontag que foi salva do seu cancro pelos novos tratamentos médicos confrontou-se, pelo menos duas vezes, com o discurso imunológico, não para compreender a imensa revolução científica que se operou no seu seio quando Macfarlane Burnet substituiu os modelos instrutivos da imunidade (Paul Ehrlich, Karl Landsteiner, Linus Pauling) pela teoria da selecção clonal da imunidade, preparada e antecedida pelos modelos selectivos de Niels K. Jerne e de Joshua Lederberg, mas para o desconstruir, acusando-o de usar a metáfora militar para conceptualizar a doença e a saúde, e de desencadear assim a ideia de guerra total que faz do corpo um campo de batalha, onde o "outro alienígena" - o agente patogénico que provoca a doença - é visto como um invasor-inimigo que deve ser eliminado pelo exército próprio do organismo. O erro de Sontag está no facto de ter aplicado a noção de doença-metáfora ao próprio discurso médico-científico, como se a imunologia médica fosse - em si mesma - uma mera metaforização da doença, colocada sempre-já ao serviço do capitalismo para justificar o autoritarismo do Estado-Capitalista e o uso que faz da repressão violenta para silenciar ou eliminar as forças da oposição. A mente-cérebro de Sontag estava de tal modo ofuscada pelas imagens apocalípticas associadas à epidemia da Sida que foi impedida de distinguir o discurso e a prática da ciência médica que a salvou da morte precoce dos seus eventuais e reais usos ideológicos por parte do poder estabelecido. Apesar da sua valência pertinente de crítica da ideologia médica, a filosofia médica de Sontag - sim, é um contributo importante para a filosofia médica! - foi incapaz de desbravar o terreno para a elaboração da filosofia da imunologia que, dado ser uma criação de cérebros masculinos, utiliza naturalmente uma linguagem belicista bem-ajustada à compreensão da luta entre o "eu" e o "não-eu" - o outro - que se trava no nosso corpo para nos proteger dos invasores-inimigos que nos querem matar. Ao contrário do que pensava Susan Sontag, há mundo fora dos textos e de cada ser humano, considerado - neste caso - na sua individualidade biológica, e esse mundo é hostil: o dito de Heráclito - segundo o qual «a guerra é o pai de tudo, o soberano de todos: a alguns ela revelou como deuses, outros como homens; alguns ela faz escravos, outros homens livres» -, que choca a sensibilidade feminina de Sontag, continua a fornecer-nos a melhor imagem do mundo. A fenomenologia do sistema imunitário - isto é, a descrição dos fenómenos imunitários fundamentais, tais como imunidade celular, imunidade humoral, hipersensibilidade retardada, profilaxia, anafilaxia, respostas imunes primária e secundária, inflamação, memória imunológica, auto-reconhecimento, transplante de tecidos, enxertos, tolerância imunológica, vacinação, imunodeficiências primárias e secundárias, auto-imunidade e doenças auto-imunes - retoma essa imagem dialéctica de Heráclito para mostrar que a função primária do sistema imunitário é eliminar os agentes infecciosos e minimizar os danos que eles podem causar ao organismo, de modo a conservar a estabilidade própria do corpo, isto é, a sua própria homeostase. É certo que o homem é lançado «nu e desprotegido, fraco e necessitado, tímido e desarmado e, cúmulo da sua miséria, destituído de tudo o que pudesse guiar-lhe a vida» (Herder) num mundo hostil, mas não está completamente desprotegido: o cérebro e o sistema imunitário são duas das adaptações filogenéticas que lhe permitem proteger-se da hostilidade do mundo. (A imunologia lança desafios teóricos fascinantes à antropologia fundamental: todos os seus conceitos teóricos carregam no seu cerne o esboço de uma antropologia imunitária que, se for pensada até às suas últimas consequências, permite pensar o homem como ser programado para a morte. Não é por mero acaso que um imunologista do calibre de Burnet tenha escrito sobre a história natural da morte e da hereditariedade. Não resisto à tentação de voltar a criticar o poder geriátrico instalado nas sociedades europeias: a morte é um programa biológico e o estar-morto tem a mesma relação com a vida consciente que o estado de ainda-não-ter-nascido. Os velhos da Europa - e do mundo - devem pensar que o envelhecimento é essencialmente a perda de interesse da natureza pelos organismos que, tendo finalizado a sua tarefa reprodutora, já não estão submetidos à pressão evolutiva: a sua morte que é o fim do seu pequeno universo liberta o espaço para os novos organismos sujeitos à pressão evolutiva. Os velhos só têm direito à existência se a sociedade mentalmente activa assim o entender. Ora, velhos que quase não se reproduziram e que roubaram o futuro aos outros no decurso da sua existência egoísta e cruel não merecem a vida que inventaram à custa do sofrimento alheio. Sei que este é um pensamento "perigoso", mas, se não evitarmos o confronto estúpido com a biologia, ela terá a última palavra - e não será uma palavra amigável.)

Quando o organismo é invadido por substâncias ou micro-organismos estranhos, ele defende-se através do desenvolvimento da imunidade, o processo biológico pelo qual o organismo, a partir da experiência de ofensas passadas, aprende a afrontar de modo eficaz e específico as ofensas presentes e futuras. Há dois tipos de imunidade: a imunidade celular e a imunidade humoral. A descoberta de que o soro de sangue mata frequentemente determinadas bactérias levou à formulação da teoria humoral da imunidade (Edward Jenner, Louis Pasteur), segundo a qual os anticorpos - solúveis no sangue - são a base da imunidade que se desenvolve para com a infecção. Porém, no decurso do mesmo período entre 1880 e 1890, a descoberta de que certas células do baço, do fígado, dos gânglios linfáticos, da medula óssea e do sangue - tais como leucócitos polimorfonucleados, monócitos e outras células do corpo que formam o sistema reticuloendotelial (RES) - são capazes de bloquear e ingerir bactérias ou outras substâncias estranhas - através do processo conhecido como fagocitose - levou o grupo de Metchnikoff a formular a teoria celular da imunidade. As duas teorias da imunidade não são opostas, e os estudos de Paul Ehrlich sobre a toxina e a antitoxina diftérica permitiram elaborar uma teoria unificada da imunidade. As experiências realizadas depois de 1890 evidenciaram muitas outras substâncias, para além das bactérias e das toxinas bactéricas, que provocam a formação de anticorpos. Os antigenes são as substâncias químicas capazes de induzir uma resposta imune específica. Os anticorpos são aquelas globulinas plasmáticas conhecidas no seu conjunto como imunoglobulinas, e cada um deles pertence a uma das cinco classes principais de imunoglobulinas: IgG, IgA, IgM, IgD e IgE. A imunidade baseia-se em mecanismos celulares e humorais. Em termos gerais, o mecanismo da imunidade celular diz respeito aos antigenes incapazes de atingir os tecidos linfóides, dado estarem imobilizados na periferia do corpo, ao passo que o mecanismo da imunidade humoral compreende as respostas imunitárias que dependem do transporte do antigene para os tecidos linfóides e que se traduzem na síntese de anticorpos. A imunidade celular compreende o comportamento fagocítico do sistema reticuloendotelial que elimina do organismo uma extensa gama de materiais estranhos, tais como produtos da demolição de tecidos, bactérias e outros agentes, e outro tipo mais específico de imunidade celular que se observa no fenómeno da hipersensibilidade retardada, ilustrado pela reacção à tuberculina. Em qualquer um destes casos, a imunidade celular não apresenta a elevada especificidade da imunidade humoral que, envolvendo anticorpos e antigenes, representa a mais avançada adaptação evolutiva a um ambiente hostil. A imunidade humoral tem sido pensada como podendo ser adquirida - no sentido de derivar da exposição directa a um antigene - ou natural - no sentido de prescindir dessa exposição, mas a convicção crescente de que todos os anticorpos aparecem como resposta aos antigenes reforça a ideia da imunidade humoral ser basicamente adquirida. A imunidade humoral adquirida pode ser activa ou passiva: a imunidade activa é aquela em que os anticorpos se formam nos tecidos do corpo depois deste ter sido exposto a um antigene, ao passo que a imunidade passiva é produzida num organismo por transferência deliberada de soro de um outro organismo que está imune. Além desta forma artificial de conferir imunidade a um organismo injectando-lhe soro contendo anticorpos de um outro organismo humano ou animal, a imunidade passiva pode ser natural, como sucede na transmissão de anticorpos maternos para o feto, através da placenta ou saco-vitelino ou do primeiro leite, o chamado colostro, que o recém-nascido recebe do peito da mãe. Porém, como os tecidos do indivíduo imunizado passivamente não participam na produção de anticorpos, a sua imunidade é temporária e desaparece no decurso de poucas semanas. Até aqui expliquei o sistema de resposta imunitária que é activado pela intrusão, no organismo, de substâncias estranhas, mas, por vezes, os constituintes do próprio corpo actuam como substâncias estranhas, tornando-se assim antigénicos. A forma mais interessante como isso pode acontecer - mas não a única, como é evidente! - é a doença auto-imune. No sistema imunitário, o repertório de especificidades exibidas pelas populações de células T e B é gerado ao acaso e, por isso, há sempre a possibilidade de muitas especificidades serem dirigidas contra constituintes do próprio corpo. Para evitar a auto-reactividade, o organismo deve estabelecer mecanismos de auto-tolerância que lhe permitam distinguir entre os determinantes próprios e os determinantes não-próprios ou, para usar a terminologia de Niels K. Jerne, decidir - através da consulta do dicionário - qual é a palavra alheia que não pertence à sua própria linguagem. Porém, tal como todos os outros mecanismos biológicos, os mecanismos de auto-reconhecimento podem ser rompidos, e, apesar de ser rara, a auto-imunidade manifesta-se num vasto espectro de doenças auto-imunes, desde a doença de Hashimoto (tiroidite auto-imune) até à miastenia grave (paralisia que se assemelha à paralisia provocada pelo curare), passando pela esclerose múltipla, perturbações neurológicas debilitantes (panencefalomielite subaguda esclerosante, por exemplo), colite ulcerosa, oftalmia do nervo simpático, infertilidade masculina, anemia perniciosa, síndrome de Goodpasture, distúrbios sanguíneos, doenças de receptores e artrite reumatóide. Por causa do seu carácter auto-progressivo, as doenças auto-imunes são particularmente difíceis de tratar: o seu tratamento inclui o uso de drogas anti-inflamatórias e de agentes imunossupressores.

Qualquer teoria imunológica debate-se com duas questões fundamentais: Como aprende o plasma da célula a sintetizar as moléculas globulínicas dos anticorpos que trazem um específico local de combinação, complementar ao determinante antigénico de uma substância completamente estranha? Como conseguem as células formadoras de anticorpos distinguir os componentes corpóreos não-antigénicos - o eu - das substâncias estranhas antigénicas - o não-eu? Como é evidente, as defesas imunológicas erguidas contra as substâncias estranhas não podem voltar-se contra o próprio corpo. As diversas experiências com o enxerto cutâneo são suficientes para mostrar que o organismo sabe distinguir as configurações químicas exteriores das configurações que lhe são próprias. Com excepção do auto-enxerto e dos enxertos trocados entre gémeos idênticos que se desenvolvem a partir de um único ovo, o corpo-hospedeiro-receptor rejeita o tecido cutâneo transplantado do corpo-dador de outra pessoa (homoenxerto) que reconhece como estranho. Destas experiências simples resulta o ideia de que os indivíduos possuem não só os genes que caracterizam a espécie a que pertencem, mas também complexos conjuntos de determinantes alotípicos responsáveis pela unicidade individual. A resposta às questões que preocupam as teorias imunológicas foi proporcionada pelas experiências nas quais um organismo é induzido artificialmente a aceitar como parte de si próprio substâncias ou células que, do ponto de vista genético, não deviam permanecer nele: os gémeos humanos diferentes - fraternos ou biovulares - partilham no útero uma circulação placentária comum, circunstância que permite a cada gémeo receber continuamente do outro uma ampla variedade de células, entre as quais os precursores de glóbulos vermelhos capazes de fundar uma colónia na medula óssea, multiplicando-se e produzindo eritrócitos. Estes gémeos tornam-se quimeras e assim permanecem durante toda a vida: cada um deles tem dois grupos sanguíneos, o próprio e o geneticamente próprio do outro gémeo. Ao contrário dos gémeos biovulares que se desenvolveram a partir de placentas separadas, estes gémeos fraternos com duplo grupo sanguíneo aceitam os transplantes cutâneos, como se fossem gémeos monozigóticos. Com base nesta observação, Macfarlane Burnet elaborou a hipótese de que um antigene estranho introduzido precocemente na vida embrionária não só desencadeia a formação de anticorpos, como também será - a partir desse momento - considerado parte integrante de si próprio - parte não antigénica - pelos sistemas formadores de anticorpos do organismo. As experiências de enxerto cutâneo realizadas em ratos que, graças à endogamia, adquiriram semelhanças genéticas formidáveis, permitiram confirmar as ideias de Burnet sobre o auto-reconhecimento e sobre os mecanismos da tolerância imunológica. Num determinado momento da vida embrionária ou neonatal, as células formadoras de anticorpos realizam uma espécie de inventário das células e das substâncias presentes - incluindo todos os materiais estranhos que foram introduzidos acidental ou experimentalmente - no organismo e classificam-nas como si próprias. Ora, a partir do momento em que se realiza este inventário, todos os outros materiais são classificados como estranhos ao organismo, desencadeando mais tarde as respostas imunitárias. A investidura da tolerância imunológica recebida pelo si próprio impede uma eventual reacção do corpo contra os seus próprios constituintes. As reacções auto-imunitárias só ocorrem nas circunstâncias onde não se verifica a investidura assegurada pela tolerância imunológica. Peter B. Medawar considera que o conceito de tolerância imunológica - usado para designar um estado de não-reactividade imunologicamente específico, em relação a uma substância que teria normalmente sido antigénica - é inapropriado para a imunologia, mas, apesar disso, ele continua a ser usado, promovendo novas investigações que procuram clarificar o seu mecanismo: os organismos dos vertebrados superiores são tolerantes aos seus próprios constituintes corporais e a falha em estabelecer ou manter essa tolerância provoca a doença auto-imune. Até meados de 1950, as teorias da imunidade eram classificadas em instrutivas e selectivas, como já referimos anteriormente. As teorias instrutivas postulavam que o antigene actuava como um molde sobre o qual as moléculas de anticorpos se dobravam, de modo a adquirir uma configuração complementar adequada. Mas, quando se descobriu que os anticorpos de diferentes especificidades tinham diferentes sequências de aminoácidos nos seus sítios específicos de combinação, as teorias instrutivas foram abandonadas e substituídas pelas teorias selectivas que postulam que os anticorpos de todas as especificidades são produzidos em baixas concentrações antes da administração dos antigenes e que a própria molécula do anticorpo actua seleccionando o antigene. Segundo as teorias selectivas, a função de um antigene consiste em escolher e estimular a síntese de um anticorpo cuja especificidade preexiste numa forma determinada pela informação genética, sendo o sistema imunitário impermeável às informações exteriores. Para cada um dos milhares de possíveis antigenes estranhos, o corpo contém já uma célula ou um grupo de células geneticamente capazes de sintetizar um anticorpo complementar: quer dizer que cada célula ou grupo de células sabe antecipadamente como fabricar um anticorpo específico sem que o antigene correspondente tenha sido introduzido no organismo. Imaginando a selecção ao nível celular, Macfarlane Burnet propôs a teoria da selecção clonal da imunidade, segundo a qual os linfócitos imunocompetentes possuem anticorpos como receptores na sua membrana celular, e cada um desses linfócitos imunocompetentes possui anticorpos como receptores dotados de especificidade particular. A teoria da selecção clonal, tal como a estabeleceu Burnet, preconiza que, nos primeiros estádios da vida embrionária, os precursores dos portadores das palavras estrangeiras ou dos modelos dos anticorpos - os linfócitos - são notavelmente mutáveis: o seu material genético sofre mutações espontâneas e ao acaso, criando assim todos os possíveis modelos de anticorpos. Cada célula que sofreu mutação torna-se - através de uma simples divisão - o precursor de um pequeno grupo ou clone de células idênticas, cada um dos quais dotado de uma configuração para um ou para alguns anticorpos específicos. Dado as mutações serem o resultado de um processo aleatório, surgem espontaneamente modelos de anticorpos contra os auto-antigenes que estão dentro do corpo, mas estas células que contêm auto-configurações são destruídas pelo contacto com os seus respectivos antigenes, até porque elevadas doses ou concentrações de um antigene inibem a formação dos anticorpos num adulto (paralisia imunológica). Durante uma fase precoce da vida embrionária, os clones inviáveis ou proibidos que se opõem aos antigenes próprios são eliminados à nascença. Normalmente, os antigenes estranhos não podem atingir o embrião, mas, quando o fazem, são aceites como próprios. Se os antigenes estranhos não atingem o embrião, este conserva todas as configurações casuais não dirigidas contra os próprios constituintes. A teoria da selecção clonal explica como o corpo cria o seu próprio dicionário de termos estrangeiros (Niels K. Jerne), isto é, a sua lista de configurações imunológicas correspondentes a determinantes antigénicos não representados entre os constituintes do corpo, obedecendo aos três requisitos prévios: a produção de cada anticorpo ocorre em clones de células e a progenitura desenvolve-se com base em acontecimentos de maturação e divisão a partir de um único linfócito sensível ao antigene sem permuta de material genético com outras células (1); todas as células - e sua descendência - fabricam moléculas de anticorpos com uma única especificidade (2); o grande número de sequências variáveis de aminoácidos deve adaptar-se aos actuais conhecimentos sobre a síntese proteica com controlo genético (3). Quando escolheu o discurso imunológico como alvo preferencial da sua crítica, Susan Sontag captou - sem disso ter consciência - o âmago da ciência médica contemporânea: a imunologia é hoje uma disciplina biomédica tão importante - ou talvez mais importante! - como a microbiologia ou a hematologia. A passagem da noção inicial da imunidade como resistência dos indivíduos contra as infecções microbianas para a noção de imunidade como o conjunto de factores humorais e celulares, específicos ou não da substância introduzida, que protegem o organismo contra as agressões infecciosas e parasitárias e as proliferações malignas - esta passagem assinala o fim da imunologia clássica e o nascimento da imunologia moderna que abre novos rumos à medicina. A Filosofia Médica não pode continuar indiferente à imunologia que lhe permite elaborar uma teoria geral da medicina, tendo como fio condutor a antropologia fundamental enriquecida pela antropologia imunitária. (A fatalidade letal de ser português não me permite sonhar com a elaboração deste projecto: os malditos saloios fagocitam tudo o que tenha mérito, reduzindo o conhecimento a mero excremento seu. Portugal é lixo que produz continuamente mais lixo!)

Anexo: Tinha a intenção de terminar este texto-introdutório com duas extensões conceptuais com relevância para o desenvolvimento da própria teoria filosófica: a vacinação e as doenças auto-imunes. Mas não posso cumprir esta promessa, a menos que prolongasse ainda mais este texto. Posso fazer tudo isto noutros textos porque sou conceptual designer! Mas neste país maldito o conceptual designer que sou é movido pela fúria destrutiva e, por isso, nunca perde de vista o fenómeno da morte. Porém, como não sou mau por natureza, avanço desde já com um conceito demolidor: a hermenêutica do texto filosófico e a desconstrução são doenças auto-imunes da filosofia contemporânea, contra as quais elaboro vacinas. (Uma área de pesquisa é a interface entre o sistema imunitário e o sistema nervoso: Niels K. Jerne deu-lhe início num artigo seminal.)

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 28 de junho de 2011

Prós e Contras: Política do Medicamento

«Não obstante, das três actividades - o labor, o trabalho e a acção, a acção é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as actividades humanas possuem um elemento de acção e, portanto, de natalidade. Além disso, como a acção é a actividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico. /Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita no meio da natureza selvagem, é possível sem um mundo que, directa ou indirectamente, testemunhe a presença de outros seres humanos». (Hannah Arendt)

Com esta imagem de fundo do Hospital CUF do Porto, introduzo o debate Prós e Contras (27 de Junho) sobre a política do medicamento: o capitalismo financeiro que nos mergulhou na actual crise financeira, económica, social e política quer privatizar a saúde. Fátima Campos Ferreira organizou um debate entre burocratas-tecnocratas-corporações, nem cientistas, nem filósofos. A aliança fatal entre a medicina e a economia - o saber-fazer dos economistas-donas-de-casa que querem mandar no mundo - coloca a Medicina contra a Biologia. Justificar esta tese é mais importante do que desconstruir os discursos-fora-de-prazo de Augusto Mateus, Pedro Lopes, João Cordeiro, Jorge Torgal, Carlos Maurício Barbosa e José Manuel Silva: a geração de Maio de 68 governou para garantir os seus privilégios - fraudulentamente adquiridos e embrulhados no papel da velha ideologia dos direitos humanos - até à morte, a sua própria morte e a do Ocidente. A política do envelhecimento garantido monopoliza de tal modo todo o espaço-agenda da política social europeia que a política da natalidade - o verdadeiro núcleo da Grande Política - foi sacrificada para prolongar a vida dos velhos que lançaram o mundo no abismo, e garantir as suas reformas-privilégios-direitos-adquiridos. O sacrifício da renovação da sociedade para dar uma vida confortável às gerações idosas revela não só a irracionalidade do modelo social europeu, como também o carácter necrófilo do Capital Financeiro e do sistema de saúde que os economistas querem "reformar-privatizar" de modo a garantir a velhice instalada. Que futuro pode ter a Europa neste cenário macabro de adiamento da morte dos velhos que sobrecarregam a segurança social? Que futuro pode ter a Europa quando a sociedade está de tal modo organizada que recusa a chegada ao mundo dos ainda-não-nascidos? Não há ética neste mundo mortal e caduco que possa justificar o sacrifício da natalidade: a velhice não é futuro, tanto no plano da vida individual como no plano da vida colectiva. Um país que esteja a envelhecer, uma civilização que esteja a envelhecer, não têm futuro: caminham inexoravelmente para a morte. O chamado progresso da medicina no quadro do capitalismo está a colocar problemas éticos que não têm solução ética: o egoísmo das gerações grisalhas da Europa aboliu há muito tempo a ética filosófica e, por isso, nesta hora de verdade e de conflito entre gerações, não pode recorrer àquilo que exterminou quando conquistou e capturou o poder. Se exceptuarmos as éticas do discurso de Jürgen Habermas e de Karl-Otto Apel que nasceram já mortas para o espírito indigente do nosso tempo, os filósofos continentais evitaram sistematizar uma ética filosófica: a única ética que merece alguma atenção filosófica é a de Ernst Tugendhat. Mas o mesmo já não pode ser dito em relação à filosofia anglo-saxónica: Bernard Williams, Ronald Dworkin e Heidi M. Hurd - entre tantos outros - dedicaram muitas obras à ética nas suas relações com outra normatividade-positividade-formalidade repressiva - o Direito. As éticas anglo-saxónicas devem ser estudadas, se quisermos tentar melhorar as condições de vida neste mundo ameaçado pelas forças do caos: a sua crítica constitui um excelente modelo de exercício dialéctico. É evidente que devemos procurar fugir do utilitarismo, mas o que me choca nestas éticas é a sua subserviência - ora mais envergonhada, ora menos envergonhada - em relação à deontologia: eis aqui a sede-prisão do pensamento burocrático-profissional que bloqueia a imaginação dialéctica. Os conflitos - sejam eles quais forem - não podem ser redimidos pela via da moral. A moral ajuda mais a conservar do que a mudar-transformar o mundo: uma teoria moral tão simples como a de Hurd - o êxito moral de uma pessoa não pode depender do fracasso moral de outra - carece de força-poder para travar o êxito fraudulento da geração grisalha que, para garantir a sua estadia-vital no Grande Hotel do Conforto Moderno (Lukács), hipotecou o futuro das gerações mais novas e dos deserdados da terra. Precisamos mais da política do que da ética para derrubar o poder geriátrico que nos roubou o futuro: a Grande Política deve quebrar a argamassa com que a ética procurou unir-prender as vítimas ao seu destino fatal, fazendo delas cúmplices do grande crime geriátrico. (Repare-se: Não defendo a solução esquimó - abandonar os velhos à morte, mas o que vejo no horizonte é algo semelhante a essa solução, se não soubermos ganhar tempo para desfazer os erros cometidos: ou as gerações novas conquistam o poder e expulsam os malditos velhos ou serão elas próprias a ser expulsas e liquidadas pelos jovens vindos doutras zonas do planeta!)

Na Europa, o pensamento geriátrico é, neste momento, o grande inimigo do pensamento dialéctico. Com esta formulação do problema que ameaça o destino da Europa, procuro suavizar a situação iminente de conflito radical entre as gerações gerado pela construção de um Estado Social que, acreditando magicamente na benevolência do capitalismo, se fechou ao futuro, como se vivêssemos numa espécie de eternidade: o Estado Social foi criado como se a geração que está no poder fosse a última geração de homens a viver na terra. Quando estudou a estrutura das revoluções científicas, Thomas S. Kuhn verificou que as revoluções científicas são realizadas geralmente por cientistas jovens, explicando isso pela sua falta de familiaridade com o paradigma científico reinante. Augusto Mateus pode ser visto como a encarnação viva do pensamento geriátrico que seca a imaginação política. Com efeito, quando introduziu a noção-programa de baixar as despesas dos medicamentos, Augusto Mateus esboçou uma breve análise das contradições do mundo europeu, chamando a atenção para a questão demográfica, mas, como faz parte integrante da velha ordem social que urge transformar radicalmente, foi incapaz de avançar com um projecto político de mudança social qualitativa. O pensamento geriátrico é incapaz de resolver as contradições sociais que produziu: a "receita" que prescreve mata mais do que cura o doente. O pensamento geriátrico que ontem foi social-democrata, é hoje neoliberal. Foi "social-democrata" quando - no início da vida social e profissional - era necessário conquistar o poder e moldar a sociedade de modo a garantir a sua posição e o seu lugar na hierarquia social. Mas, com o estalar da crise financeira de 2007-08, a geração grisalha privilegiada - há velhos e velhos, claro! - adere ao neoliberalismo para salvaguardar as regalias sociais que se auto-atribuiu no decorrer destes últimos trinta anos. As figuras que personificam o sistema estabelecido já não precisam do Estado Social tal como o formularam no passado: os "reformistas" de ontem são os vencedores de hoje que procuram salvaguardar os seus interesses e os seus privilégios à custa do sacrifício atroz dos mais desfavorecidos. A privatização da saúde visa precisamente criar dois serviços de saúde: um para os "pobres" - o serviço público de saúde - e outro para os "ricos" - o serviço privado de saúde. A comercialização da saúde-doença e da morte é movida por um impulso assassino: o serviço privado de saúde precisa de um serviço público de saúde que funcione como escola de aprendizagem e de teste dos novos tratamentos e das habilidades dos aprendizes da arte médica. Para garantir a saúde dos "ricos" e prolongar estupidamente a sua vida, é necessário converter os "pobres" em cobaias. A exploração do homem pelo homem ganha assim uma dimensão metabólica que, na Europa, implica roubar a vida aos mais jovens para prolongar a vida dos mais velhos - fraudulentamente privilegiados. (Basta pensar na organização da indústria da morte e nos sonhos de vida eterna nos USA para nos convencermos desta terrível realidade em andamento: os ricos não só compram órgãos para conservar em bom-estado a sua carcaça corporal, como também se "congelam" na esperança de encontrar no futuro a vida eterna.) O conflito social é hoje conflito entre gerações. Os velhos que engordaram o Estado querem hoje emagrecê-lo, mas a gordura do Estado é - em grande parte - a sua própria existência prolongada no tempo. Em Portugal, a situação é muito mais complexa: a "caça às bruxas" assume nesta terra maldita a forma de eliminação do mérito. A captura do poder por parte de uma rede de mediocridade roubou-nos o futuro, com a cumplicidade de quase todos os cidadãos portugueses. A geração grisalha destruiu completamente o sistema de educação, nivelando-o por baixo: o resultado é que hoje não temos novas gerações suficientemente preparadas para assumir a governação do país. O serviço nacional de saúde foi a única coisa boa realizada depois do 25 de Abril, mas hoje o sector da saúde é cobiçado pelo mesmo capital financeiro que liquidou o tecido produtivo. É muito difícil vislumbrar um futuro para Portugal.

A bioética surgiu da aliança-cópula fatal entre medicina e economia. Infelizmente, apesar do carácter antropológico da medicina, as Faculdades de Medicina nunca introduziram nos seus currículos as chamadas "ciências sociais e humanas" e, sobretudo, a Filosofia. A verdade é que não temos uma Filosofia Médica e uma teoria geral da medicina: a bioética e a gestão da saúde não preenchem esse vazio filosófico que se instalou no seio das ciências biomédicas e médicas; pelo contrário, elas evidenciam a incapacidade da medicina para dirigir o seu próprio destino num mundo capturado pela economia. A psiquiatria, a antropologia médica, a sociologia médica, a psicologia médica, a medicina psicossomática e a história da medicina não substituem a Filosofia Médica: sou demasiado racionalista - dialéctico, é claro! - para ceder aos falsos encantos das práticas relativistas. A necessidade de elaborar uma nova Filosofia Médica levou-me ao encontro da Utopia Médica, tal como a definiu Ernst Bloch. Mas, quando mergulhei a fundo no espírito da utopia médica, fiquei assustado e recuei: «L'existence privée de souffrances, longue, s'épanouissant jusqu'à un âge avancé, l'existence qui se hisse finalement jusqu'à une mort repue de vie, ne se trouve encore nulle part, mais n'a cessé d'être projetée. Renâitre à une vie nouvelle: tel est, en ce qui concerne le corps, l'objectif en vue duquel s'élaborent les plans d'un monde meilleur. Or les hommes ne peuvent se tenir droits si l'existence sociale elle-même est encore à redresser» (Bloch). As belas e densas páginas onde Bloch descreve os sonhos diurnos de luta pela saúde facultam uma Filosofia Médica esboçada-elaborada no âmbito do pensamento-esperança. Bloch é suficientemente marxista para saber que a realização das utopias médicas depende da realização da utopia social, mas, quando analisa os três projectos da utopia médica - a saber, a luta contra a doença e o sofrimento-dor, onde se inclui a política do medicamento, a reprodução racionalizada e a determinação do sexo, e a luta contra o envelhecimento, não se apercebe que eles podem ser concretizados pelo capitalismo sem alterar substancialmente a existência social dos homens. O meu amor filosófico pelo pensamento-esperança de Ernst Bloch não me permite romper cabalmente com as linhas gerais da sua utopia médica. Porém, para contornar amigavelmente alguns dos seus perigos, prefiro recordar uma afirmação de Marcuse: o progresso tecnológico - e o progresso médico é basicamente progresso tecnológico! - permite realizar o imaginário revolucionário da humanidade sem pacificar a sua existência. Quem conheça as linhas gerais da concepção apocalíptica da história capta facilmente o sentido da minha posição teórica e política: é preciso reinventar a utopia de modo a garantir a continuidade da aventura humana sobre a terra e a adiar a catástrofe final. O prolongamento da vida humana gera egoísmo geriátrico que bloqueia a renovação da vida e da sociedade; pelo menos, enquanto projecto de luta contra o envelhecimento, a realização da utopia médica tem efeitos anti-utópicos catastróficos. Basta pensar no uso egoísta e narcisista da clonagem para verificar que a geração grisalha se blindou contra a natalidade: os velhos organizaram-se contra as gerações mais novas e contra os desfavorecidos e o seu sonho necrófilo é reproduzirem cópias de si próprios. Muitos dos avanços técnicos da medicina foram realizados não só para prolongar a vida dos velhos instalados, mas também para lhes emprestar uma juventude que já não é a deles. Até o viagra foi inventado para garantir a erecção das velhas carcaças que se submetem a uma série de cirurgias plásticas para conservar um aspecto juvenil! Não satisfeitos com o prolongamento artificial da sua vida sexual activa e da sua falsa-juventude, os velhos instalados que sacaram a estética à Filosofia, para a converter na "arte" de dar um aspecto jovem e sensual a velhas e feias carcaças corporais, querem agora apoderar-se da ética para garantir os seus direitos à vida eterna. É claro que as velhas donas-de-casa-mandonas que são os economistas já inventaram outro expediente económico para garantir a velhice instalada: a economia social. Os poucos jovens que restam na Europa vão passar a sua triste vida - isto se não se revoltarem contra o poder geriátrico! - a cuidar de cadáveres adiados num ciclo vicioso que nos mergulha no ocaso civilizacional! É evidente que não posso explicitar aqui as linhas-mestras de uma nova Filosofia Médica, capaz de responder às nossas angústias e aos nossos receios, mas o que foi dito é suficiente para mostrar que ela não precisa das ciências sociais e humanas como ciências auxiliares: o império das ciências sociais bloqueou o futuro e lançou-nos num caminho que conduz directamente à catástrofe civilizacional. A luta pela saúde não pode colocar a medicina contra a biologia. A história da filosofia oferece-nos diversos esboços da Filosofia Médica ou IatroFilosofia, mas nenhum deles é capaz de dar conta da realidade da medicina tal como é praticada nos nossos dias. Não estou a excluir o seu contributo que ultrapassa a mera humanização dos cuidados médicos; o que estou a sugerir é uma revisão-reforma profunda desses conceitos filosóficos à luz dos avanços científicos e tecnológicos da medicina contemporânea. Ivan Illich foi provavelmente o último filósofo que tentou elaborar de modo sistemático uma Filosofia Médica, mas, como não se confrontou directamente com os pilares não-organizacionais da medicina contemporânea, deixou escapar em parte a sua novidade radical. Mais recentemente, Hans Jonas retomou esse projecto, dando-lhe a forma de uma ontologia da vida que, através da articulação entre organismo e liberdade, lhe permitiu criticar os abusos da bioética. Porém, apesar das virtudes da biologia filosófica de Hans Jonas, não podemos aceitar os seus pressupostos metafísicos: a leitura filosófica do texto biológico não pode iludir o diálogo produtivo com as ciências biomédicas e médicas. (Por exemplo, temos uma genética molecular e evolutiva fabulosa, mas ainda não temos uma filosofia da genética! Temos uma bela neuro-endocrinologia e os filósofos ainda tecem teorias sobre o comportamento humano, sem levar em conta o seu controle neuro-hormonal! E o que dizer do optimismo médico subjacente à Historia Natural das Doenças Infecciosas de Macfarlane Burnet & David O. White confrontado com o calafrio da História da Sida!) Em relação à Utopia Médica de Ernst Bloch, estas duas filosofias médicas têm o mérito de colocar no centro da reflexão filosófica a morte que ameaça a vida insegura e paradoxal do homem. Dada a sua clara valência política, manifesta na crítica da invasão e da colonização médicas, a iatrofilosofia de Ivan Illich é superior à filosofia biológica de Hans Jonas que, apesar das suas reservas justas em relação à bioética, acaba por transformar perigosamente a biologia em ética. O que dificulta a elaboração sistemática da Filosofia Médica é a articulação interna de todas as teorias regionais que a formam: penso que só a antropologia fundamental - filosófica, como é evidente! - permite operar essa articulação teórica. (A Filosofia Médica que tenho em vista deve ser suficientemente forte para gerar programas de investigação científica - sector a sector!) Entretanto, se articularmos estas três filosofias médicas à luz da crítica da racionalidade instrumental de Horkheimer & Adorno, obtemos desde logo o esboço-forte da nova Filosofia Médica, que permite definir a política do medicamento sem dar voz aos burocratas-invasores-colonizadores que reduzem a saúde a uma mercadoria. A "racionalização" do serviço nacional de saúde exige a sua desburocratização e o fim dos monopólios médicos e farmacêuticos. Se as Faculdades de Medicina tivessem investido na criação de um Departamento de Filosofia Médica, não estaríamos hoje a discutir a redução das despesas irracionais dos serviços de saúde que, como sabemos, irá privar os mais desfavorecidos dos cuidados médicos de qualidade. O Ocidente é uma criação filosófica e política e, sem a Filosofia que traçou o seu rumo, não há Ocidente.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Ao São Francisco Portuense

A minha amiga Letícia Valle Cavalcante, a Florbela Espanca do Brasil, dedicou-me este poema, com a seguinte nota prévia: «Ô São Francisco, Francisco Sousa! Vão para ti uns versos de privilégio. Decidi-me por fazê-los após tua ideia do S. João. Veio-me inspiração hoje de manhã. Please, não te surpreendas comigo, ri, porque esse é inédito! Só para ti.» E, depois do poema, a Letícia termina com estas palavras dignas de uma poetisa: «Porque tu não precisas que Apolo te venha e diga a célebre frase Tu Vate Eris. Foi o que o Arthur Rimbaud sonhou, e a partir daí tornou-se poeta. Eu não sonhei assim, mas por ser apaixonada por ele, peguei. Bom dia!»

"Ao São Francisco Portuense

São Francisco,
O poeta que canta
E vê o Porto
Com mais maestria.
O som de Portugal tem melodia,
E a nenhum se assemelha.

Ó meu São Francisco,
Diz-me quem nesse país
Tem mais amor
Pela Cidade Invicta!"

Ontem, na véspera da noite de São João, a Letícia tinha dedicado uma quadra ao santo padroeiro da Cidade Invicta:

"João pregou tanto
Que virou santo.
Ó João,
Torna-me São (Francisco)!"

Muito obrigado, Letícia - "Mensageira da primavera, rouxinol de voz de encantar" (Safo)! Continua a fazer poesia, porque herdaste a veia poética de Rimbaud e, dado seres mulher, da divina Safo, cujos versos Te dizem:

"Há um murmúrio de águas frescas, através
dos ramos das macieiras, as rosas ensombram
todo o solo, e das folhas trémulas
escorre o sonho". (Um jardim)

"As estrelas, em volta da formosa Lua,
de novo ocultam a sua vista esplendente,
quando a Lua cheia brilha mais, argêntea,
sobre toda a terra". (A Lua)

Mas, quando escreveu estes outros versos, Safo sonhou-me e selou o meu destino:

"Quando morreres, hás-de jazer sem que haja no futuro
memória de ti nem saudade. É que não tiveste parte
nas rosas de Piéria. Invisível, andarás a esvoaçar
no Hades, entre os mortos impotentes". (A glória literária)

(Photo: Ribeira, OPorto.)

J Francisco Saraiva de Sousa

A Fenomenologia revisitada

«Eu não sou o resultado ou a encruzilhada de múltiplas causalidades que determinam o meu corpo ou o meu "psiquismo", eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objecto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu sei-o a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e, se quisermos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exactamente o seu sentido e o seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. /O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável. "Há um mundo", ou antes, "há o mundo". /Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história.» (Maurice Merleau-Ponty)

Com esta fotografia do Jardim do Palácio de Cristal do Porto (OPorto), proponho a revisitação de alguns textos dedicados à fenomenologia, com o objectivo de preparar o terreno para novos voos teóricos e políticos. Nesta Introdução, vou definir a Fenomenologia de Husserl como o projecto filosófico de pensar a crise europeia - um tema actual - ou de descobrir as suas raízes profundas e de formular as condições que deve cumprir qualquer uma das soluções propostas desta crise para que possa ser verdadeira solução. A problemática da crise europeia aparece claramente formulada na última obra de Husserl, mas ela não é estranha às suas obras fundamentais, até porque a fenomenologia se iniciou com a tentativa de pensar e de superar a crise das ciências formais. A raiz da crise das ciências europeias reside na redução de tudo a factos. Ora, uma ciência de factos produz uma humanidade de factos, ou seja, como esclarece Husserl, uma humanidade que depende de tal modo de outros factos que deixou de ser dona do seu destino. A originalidade da abordagem de Husserl consiste em ter ligado a crise de fundamentação das ciências formais com a crise das ciências europeias em geral e esta última com a crise mais profunda da humanidade. Tomarei como fio condutor desta breve análise da intenção fenomenológica a crise da física. Segundo Husserl, a crise da física e das ciências europeias em geral não é uma crise de cientificidade ou de metodologia, mas sim uma crise de significado. Quando olhou para a natureza a partir da geometria, Galileu eliminou da ciência física todo o significado humano para reter unicamente um mundo material submetido a uma metodologia matemática. A física matemática constituiu-se quando se conseguiu abstrair ou eliminar o mundo humano, imbuído de significados e de valores, da estrutura do mundo que tematiza em linguagem matemática: o mundo da física é, portanto, um mundo desumanizado, submetido a um tratamento de violência matemática, que lhe permite inferir consequências prevendo acontecimentos futuros. Ora, o êxito teórico e técnico da física converteu-a em ciência-modelo para todas as outras ciências que estudam o mundo. A atenção de Husserl dirige-se para as consequências de aplicar o método da física nas restantes áreas do conhecimento humano. A redução do verdadeiro mundo humano a um mundo sem significados e sem valores, a um mundo puramente fáctico, conduz ao dualismo entre uma natureza física causalmente fechada e um espírito alheio à natureza. Porém, como o dualismo não satisfaz o espírito científico, a psicologia apressa-se a naturalizar e a coisificar a consciência e o mundo humano, dissolvendo-se assim na fisiologia do sistema nervoso ou na neurologia. Ao proceder à maneira da física, eliminando o anímico do seu próprio campo de estudo, como se a alma fosse uma tábua-rasa (Locke), a psicologia completa a redução do mundo a factos destituídos de significação humana: o mundo humano é literalmente reduzido pelo psicologismo a factos neurofisiológicos. Para Husserl, a crise de significado da física, a crise de verdade das ciências formais e a crise de objecto que destrói a psicologia são - todas elas - expressão da crise do homem como ser racional. A articulação da crise das ciências europeias com a crise antropológica não é realizada pela mediação da sociologia: a psicologia, a ciência do especificamente humano, reduziu o homem a um feixe de factos naturais, partindo de uma interpretação falsa da prática científica. A redução psicológica converteu fatalmente o mundo desumanizado pela metodologia científica em realidade única. Deste modo, a psicologia que pretende ser a base da verdade das ciências formais reduziu o homem e os produtos da sua praxis vital a meros factos do mundo, destituídos de significados e de valores. Privada do seu destino pela ciência natural e pela técnica, a humanidade olha com temor e angústia para esse mundo desumano que a mergulha cada vez mais na pura facticidade. Afinal, para que serve a ciência? Para dominar-devastar a natureza e lançar-nos - a nós mortais que procuramos um abrigo-seguro, dotado de sentido, para compensar as nossas deficiências morfológicas e funcionais - num mundo que nos é profundamente estranho e hostil? Não admira que Marcuse tenha sido levado a questionar a suposta neutralidade da ciência-tecnologia, propondo a necessidade de inventar uma nova ciência, cuja imaginação possa ser o a priori da reconstrução e do redireccionamento do aparelho de produção para uma existência pacificada e uma vida sem angústia, libertas das imagens da dominação e da morte! A solução fenomenológica de Husserl não é tão radical como a de Marcuse: a solução husserliana leva em conta o sentido da actividade teórica que constitui o núcleo da ciência, ou seja, o sentido de fundar a independência da humanidade que nasceu na Grécia Antiga. Ao contrário da humanidade arcaica que fundava a sua teoria e a sua praxis no saber-fazer dos seus antepassados ou dos seus deuses, a humanidade civilizada funda-as na razão humana, cujo objectivo teórico e prático é a autonomia. A solução da crise das ciências europeias encontra-se na própria humanidade que faz ciência e filosofia para viver a sua autonomia como comunidade transcendental. Lukács tem razão quando critica o idealismo subjacente à fenomenologia de Husserl, mas, quando lhe opõe a teoria do conhecimento-reflexo de Lenine, priva-se do seu núcleo crítico - o núcleo que a sua filosofia de juventude ajudou a elaborar sem a hipoteca do pensamento transcendental.

Apesar da crítica contundente de Theodor W. Adorno e de Georg Lukács, o programa fenomenológico de Husserl exerceu uma poderosa influência teórica sobre a teoria crítica, tal como foi formulada pela Escola de Frankfurt, em especial por Herbert Marcuse que foi inicialmente discípulo de Heidegger. Mas, em vez de voltar a analisar esse jogo complexo de influências recíprocas, prefiro seguir outro caminho que me leva ao encontro de Walter Benjamin. A teoria crítica elaborou-se contra o positivismo, isto é, contra o culto fetichista dos factos que ameaça menosprezar ou mesmo abolir o poder da utopia. A crítica do positivismo aproxima a teoria crítica não só da fenomenologia - tal como a defini anteriormente, mas também das filosofias vitalistas que condenavam a civilização técnica. Benjamin retoma a crítica do positivismo dando-lhe a forma dialéctica de um confronto entre o crescente poder dos factos e o poder das convicções. Na sociedade capitalista, as condições de vida estão de tal modo sob a alçada do crescente poder dos factos que as pessoas abdicam das suas próprias convicções, em nome do fetiche da objectividade. Porém, em vez de instaurar uma verdadeira objectividade, a supressão da subjectividade permite a algumas subjectividades que actuam clandestinamente - os economistas neoliberais e os gestores - adaptar violentamente a realidade a um modelo económico prévio que apresentam numa linguagem matemática para reforçar a sua falsa objectividade. Ora, para evitar a reificação de um modelo económico que condena as pessoas à miséria, é preciso que as forças sociais empenhadas na promoção de mudanças históricas assumam os juízos subjectivos e manifestem as suas opiniões, de modo a discernir a hora e o lugar para desencadear na sociedade as transformações sociais desejadas. A política enquanto espaço de pluralidade não pode sujeitar-se ao poder da economia de mercado e dos discursos pseudo-técnicos dos seus porta-vozes neoliberais. Deste modo, tal como estou a actualizar a perspectiva de Benjamin, a crítica do psicologismo de Husserl converte-se neste nosso tempo indigente - entregue aos caprichos dos mercados financeiros - em crítica do economicismo. O problema fundamental das ciências formais - a matemática e a lógica - diz respeito ao valor de verdade dos juízos que formulam: a "realidade" dos objectos matemáticos e das verdades lógicas deriva da acção humana. Ora, na perspectiva psicologista, se os objectos matemáticos e as verdades lógicas não existem fora das formulações que os expressam, então eles podem ser reduzidos às operações psíquicas ou mentais que os produzem. Com esta redução psicológica, o psicologismo procura fundar a verdade das ciências formais na constituição morfológica e funcional do cérebro humano, como se todos os problemas colocados por estas ciências pudessem ser resolvidos pelo conhecimento neuro-fisiológico do cérebro. Porém, ao ignorar o problema do valor de verdade dos juízos formulados pelas ciências formais, o psicologismo reenvia-nos para o relativismo que já tinha sido o alvo da crítica racional de Platão: «O homem é a medida de todas as coisas», no sentido em que os nossos juízos e as nossas asserções se limitam a ser o reflexo do homem que somos, com as nossas paixões e as nossas motivações psicológicas. Para legitimar a verdade das suas asserções, o psicologismo, que recusa a ideia de verdade e a autonomia da esfera lógico-racional, é obrigado a subtraí-las à redução psicológica que impõe aos juízos feitos pelos outros. Os juízos do psicólogo só podem ter pretensões à verdade quando proclamam a sua autonomia em relação à tentativa de os explicar em termos psicológicos: a verdade da psicologia exclui - paradoxalmente - a existência de uma psicologia da verdade. No nosso mundo global, a redução psicológica assume - como já vimos - a forma de redução económica: o discurso económico neoliberal predominante capturou e colonizou todas as esferas da sociedade e do mundo da vida, negando a sua autonomia em relação aos valores da economia de mercado, ao mesmo tempo que bloqueia todas as tentativas académicas de pensar novas alternativas económicas. A teologia do mercado está a corromper tudo à sua volta, embrutecendo os homens e a sua arte de conversar: o dinheiro-fetiche está no centro das conversas entre cidadãos, obrigando-os a falar dos preços das mercadorias, do desemprego e dos diversos modos de ganhar dinheiro para sobreviver neste mundo inumano. O economicismo empobrece brutalmente a arte de conversar, subjuga a política, devasta a natureza, atrofia a inteligência, enfraquece os instintos vitais e mutila a sensibilidade. Tal como o psicologismo, o economicismo subtrai as suas asserções económicas à redução económica que impõe a todas as esferas da sociedade e do mundo da vida e aos seus discursos, justificando e fundando a autonomia absoluta da economia na objectividade fáctica que se expressa na linguagem dos números-fetiches-manipulados. Mas, como vimos na peugada de Benjamin, o poder objectivo dos factos económicos encobre a subjectividade dos agentes que actuam clandestinamente nos mercados financeiros: o mundo económico que eles apresentam como uma fatalidade incontornável é o produto histórico de uma subjectividade clandestina que usa os cálculos económicos e financeiros para moldar a realidade à imagem de um modelo económico prévio que garante a sua perpetuação e a sua dominação. (Afinal, a redução económica é, na sua essência, redução psicológica!) Para combater a facticidade económica conspirada nos mercados financeiros por agentes clandestinos, as forças sociais e políticas que protagonizam a mudança social qualitativa devem assumir o poder das suas convicções e injectar as suas opiniões no tempo e no lugar adequados. No entanto, não basta injectar opiniões; é preciso que essas opiniões mobilizem energias. Cativo do pensamento transcendental, Husserl elaborou o conceito de comunidade transcendental como sujeito da ciência para «salvar» a humanidade empírica da encruzilhada dos poderes fácticos. Mas a humanidade empírica opõe resistência à tarefa de viver a ideia de uma humanidade livre e emancipada, o sentido da ciência e da filosofia. Num mundo carente de valores comunitários e afastado-alienado do cosmos, a mobilização de energias para a tarefa de libertar o destino dos poderes fácticos torna-se demasiado problemática: afastados uns dos outros e afastados do cosmos, os homens encontram-se enfraquecidos e, apesar de sentirem falta da dimensão comunitária da vida e de ansiarem pela integração no cosmos, não sabem como libertar o seu futuro e como recuperar o que perderam. Benjamin viu na embriaguez a realização da relação desejada com o cosmos, mas foi a experiência do haxixe que o levou a captar o núcleo essencial daquilo a que chamou iluminação profana, em articulação com a visão límpida da aura das coisas: a razão instrumental - tal como o haxixe - habitua-nos a conviver com um amplo universo de fantasmagorias-ilusões-fetiches-alucinações-adições que a ideologia dominante apresenta como representação-imagem-corpo fiel da realidade. Os homens precisam aprender a romper este véu ideológico que encobre a verdadeira natureza das coisas. Neste momento, os jovens árabes e europeus - unidos em contactos corporais - protestam nas ruas e nas praças do velho mundo civilizado. Será que desta vez conseguiremos quebrar o feitiço da história dos vencedores? Será que podemos continuar a confiar no homem e na sua capacidade para assumir o seu próprio destino? Será que a humanidade é digna das tarefas nobres que a Filosofia lhe atribui? Ou será que andamos todos enganados?

Infelizmente, após o declínio do programa positivista, a Filosofia não escapou ao campo gravitacional do poder dos factos. O império hermenêutico (Hans-Georg Gadamer) - bem como a sua contrapartida retórica (Chaïm Perelman) - fecha a filosofia em si mesma e na sua própria história, como se a filosofia nada mais fosse do que um mero género literário (Richard Rorty, Derrida, Paul de Man). Vou socorrer-me de uma afirmação de Stephen W. Hawking para elucidar as linhas gerais desta minha tese filosófica: «Até agora, a maior parte dos cientistas tem estado demasiado ocupada com o desenvolvimento de novas teorias que descrevam o que é o Universo para fazer a pergunta porquê? Por outro lado, as pessoas que deviam perguntar porquê?, os filósofos, não foram capazes de acompanhar o avanço das teorias científicas. No século XVIII, os filósofos consideravam todo o conhecimento humano, incluindo a ciência, como campo seu e discutiam questões como: terá o Universo tido um começo? No entanto, nos séculos XIX e XX, a ciência tornou-se demasiado técnica e matemática para os filósofos ou para qualquer outra pessoa, à excepção de alguns especialistas. Os filósofos reduziram o objectivo das suas pesquisas de tal modo que Wittgenstein, o filósofo mais famoso deste século (sic), afirmou: «A única tarefa que resta à filosofia é a análise da linguagem». Que queda para a grande tradição da filosofia desde Aristóteles a Kant!» Bem, seria demasiado fácil desmentir certas afirmações pontuais de Hawking que revelam a verdadeira dimensão da sua miséria cognitiva, mas, em vez disso, prefiro reter o conceito de queda da grande tradição da Filosofia, operada não só pelo recuo da terapia da linguagem de Wittgenstein, mas também e sobretudo pela universalização da Hermenêutica. Hawking explica esta queda da Filosofia pelo facto dos filósofos se sentirem intimidados com o carácter técnico e matemático da ciência, mas a verdade é que os filósofos tomaram consciência do carácter instrumental da ciência que ajudaram a criar e a crescer: eles afastaram-se da ciência para a poder criticar à distância no âmbito mais geral da crítica do poder e da dominação. A crítica da racionalidade científica e tecnológica é uma das poucas tarefas que todos os filósofos continentais partilham entre si: a epistemologia enquanto teoria do conhecimento científico converteu-se em crítica do poder-fetiche-domínio. A queda da grande tradição da Filosofia não reside numa suposta redução do seu objectivo, como supõe Hawking, porque a crítica radical do poder que caracteriza a filosofia contemporânea permanece fiel ao ideal que move a Filosofia desde Aristóteles a Kant: viver a ideia de uma humanidade livre e emancipada. A queda da Filosofia ocorre quando a crítica do poder abdica da sua dimensão cognitiva e política, e, sem disso se aperceber, aceita a imposição da organização social e técnica da ciência que se descarta da Filosofia "arrumando-a" como "ciência humana": a crítica do poder converte-se assim - pelo menos na filosofia académica - em desconstrução da história da filosofia. O discurso pós-moderno do fim das grandes narrativas, tal como o elaboraram Daniel Bell e Jean-François Lyotard, que se entrega embriagadamente à destruição da grande tradição da Filosofia, capitula perante o triunfo da grande narrativa vencedora, traindo o ideal filosófico da vida justa: o neoliberalismo. A dupla-redução da Filosofia à História da Filosofia e da História da Filosofia a uma mera ciência humana permite definir a queda da grande tradição filosófica e a sua cedência ao feitiço do poder dos factos: o vector desta dupla-redução implica tomar a Filosofia e a sua história como um facto que pode ser explicado em chave filológica (história filológica da filosofia) ou em chave sociológica ou psicológica (história sociológica ou psicológica da filosofia). De um modo geral, como demonstram as análises sociológicas dos sistemas filosóficos de Lucien Goldmann, a história filológica da filosofia tende a prolongar-se numa história sociológica da filosofia. No entanto, cada uma destas chaves de leitura desempenha uma determinada função em relação à história da filosofia: a história filológica procura apropriar-se de um sentido para reconstruir um sentido disperso através dos numerosos textos filosóficos, enquanto a história sociológica tenta ir mais além do sentido para descobrir a realidade social que se expressa em tal sentido de modo disfarçado. A diferença entre as duas «metodologias» reside no facto da sociologia dissolver o sentido que o método filológico procura decifrar e reter como meio interpretativo da filosofia: a sociologia do conhecimento dissolve a filosofia e a sua história, transformando a história da filosofia em história da sociedade. A história sociológica da filosofia trata claramente a filosofia como um facto que deve ser explicado por outros factos, esquecendo a dimensão cognitiva da Filosofia - os seus paradigmas e os seus modelos explicativos. Para evitar os malefícios da redução sociológica, a história filosófica da Filosofia (Martial Guéroult, por exemplo) procura reconstruir o crescimento dos conhecimentos filosóficos. Deste modo, sem negar os condicionalismos sócio-ideológicos dos sistemas filosóficos e de todo o conhecimento humano, a história da filosofia é restituída ao seu verdadeiro sujeito - a própria Filosofia. Fazer da história da filosofia uma "ciência humana" implica o abandono do cultivo directo da Filosofia que sempre-foi um discurso universal. A radicalização da suspeita (Paul Ricoeur) - a atitude subjacente à redução sociológica - privou a Filosofia da sua dimensão cognitiva e, com o movimento da desconstrução, levou à liquidação e à destruição da grande tradição filosófica. Como lembrava constantemente Althusser, a Filosofia tem um exterior - há mundo fora dos textos! - que procura conhecer antes de propor e orientar a sua transformação social. Para evitar a queda e participar no diálogo produtivo com as ciências especializadas em fragmentos da realidade, conforme o desejo de Hawking, a Filosofia deve a cada momento actualizar - o método-procedimento que tenho utilizado para me apropriar da história da filosofia - a sua tradição e os seus conteúdos conceptuais, de modo a estar à altura dos desafios do mundo presente. Mas a grande preocupação da Filosofia não é cosmológica, como supõe erradamente Hawking: a Filosofia enquanto campo de batalha ou, segundo a feliz expressão de Althusser, enquanto luta de classes na teoria, tem uma relação privilegiada com a Política. A sua conexão estrutural com a ciência não pode eclipsar a sua vocação política, porque é esta relação privilegiada com a Política que faz da Filosofia a forma superior do conhecimento humano.

Eis os textos:


J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Antropologia do Antigo Testamento revisitada

«A crença no além é, portanto, a crença na libertação das limitações da natureza por parte da subjectividade - portanto, a crença do homem em si próprio. Mas a crença no reino celestial é idêntica à crença em Deus - existe o mesmo conteúdo em ambas as crenças - Deus é a personalidade pura, absoluta, livre de todas as limitações naturais: ele é exclusivamente o que os indivíduos humanos devem ser ou serão - a crença em Deus é, portanto, a crença do homem na infinitude e na verdade da sua própria essência - a essência divina é a essência humana, ou melhor, a essência humana subjectiva na sua liberdade e na sua ilimitação absoluta. O nosso propósito mais essencial foi realizado aqui. Reduzimos a essência extramundana, sobrenatural e sobre-humana de Deus às partes componentes da essência humana como as suas partes componentes fundamentais. No fim voltámos ao início. O homem é o início da religião, o homem é o meio da religião, o homem é o fim da religião». (Ludwig Feuerbach)

«A crítica da religião conclui com a doutrina de que o homem é para o homem o ser supremo. Conclui, por conseguinte, com o imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem surge como ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível - condições que dificilmente se exprimirão melhor que na exclamação de um francês por altura da proposta de imposto sobre cães: "Malditos cães! Já vos querem tratar como homens!"». (Karl Marx)

Ao mostrar que o céu cristão é a imagem-desejo de tudo aquilo que o homem anseia e espera, Feuerbach revelou e desvelou o núcleo antropológico da teologia, o que permitiu mais tarde acentuar o carácter antropológico da teologia (D. A. Pailin) no decurso da recepção teológica da crítica da religião levada a cabo por Feuerbach e Marx, por um lado, e por Nietzsche e Freud, por outro, aliás claramente esboçada pelo adversário comum a todos, o grande Hegel. Para fazer frente à crítica da religião, sem abdicar dos dogmas fundamentais da sua fé, a teologia cristã - protestante e católica - foi obrigada a integrar no seu seio conceitos nucleares dessa crítica: todas as grandes teologias do século XX foram elaboradas em diálogo produtivo com as grandes tendências do pensamento filosófico contemporâneo, bastando referir as articulações entre a teologia da esperança de Jürgen Moltmann e a filosofia marxista de Ernst Bloch, a teologia política de Johannes B. Metz e a teoria crítica, a teologia da libertação de Gustavo Gutiérrez e o marxismo, a teologia secular de Harvey Cox e o neopositivismo lógico e a teologia do Novo Testamento de Rudolf Bultmann e a ontologia de Heidegger, para comprovar essa espécie de parasitagem conceptual ou anexação teológico-filosófica. Ao contrário do que se pensa, a teologia enquanto "racionalização do dogma" (Max Weber) não é um empreendimento estranho à Filosofia, podendo ser definida como discurso filosófico sobre Deus. O facto das novas teologias terem optado preferencial e predominantemente pelo diálogo aprofundado com a filosofia de Marx é deveras sintomático: cristianismo e marxismo não são dois "corpos teóricos" estranhos um ao outro, como demonstrou Ernst Bloch ao explicitar com recurso às correntes quentes do misticismo hebraico-cristão e aos entre-mundos da própria filosofia a emergência do ateísmo no seio teórico e histórico do próprio cristianismo, convertendo assim a famosa inversão de Feuerbach numa tese política revolucionária. (A teologia cristã não pode rejeitar em bloco o marxismo sem se rejeitar a si mesma: o marxismo é, de certo modo, cristianismo politicamente pensado!) A viragem antropológica da Filosofia posterior a Hegel (W. Pannenberg) marcou profundamente a teologia: a ideia de Deus como forma alienada da auto-consciência humana, explicada por Feuerbach como a projecção num céu imaginário da representação que o homem tem da sua própria essência humana - verdadeira e infinita, teve como efeito teórico a explicitação dos conteúdos antropológicos da teologia, a partir da figura humana-divina de Jesus Cristo. Que a cristologia seja antropologia fundamental não levanta dúvidas a quem leu atentamente as obras de J. Moltmann, Karl Rahner, Karl Barth, Paul Tillich, Bruno Forte, Juan Alfaro, W. Kasper, E. Schillebeeckx, W. Pannenberg, ou Hans Küng, para só referir estes teólogos. Mas o impacto da antropologia sobre a teologia ultrapassa o próprio domínio da cristologia. Enquanto religião da esperança o cristianismo é estruturalmente antropológico: «A teologia cristã funda a sua relevância na esperança no reino do Crucificado, tomando parte activa nos "sofrimentos deste mundo", fazendo seu o grito dos oprimidos e enchendo-o de esperança na libertação e na salvação» (J. Moltmann). A theologia crucis (estaurologia) esboçada por Lutero converte-se com Moltmann em teologia da libertação que rejeita qualquer conhecimento de Deus que não tenha como seu fundamento Jesus Cristo Crucificado. Arrancar a Cruz - o Deus Crucificado - ao esquecimento é despertar para a tarefa política urgente de quebrar a continuidade repressiva da história dos vencedores.

Para iluminar as antropologias subjacentes aos textos bíblicos, reconduzo para estes dois textos que elucidam as estruturas antropológicas fundamentais do Antigo Testamento (Walther Eichrodt, G. von Rad), a saber o homem como ser necessitado, o homem como ser efémero, o homem como ser fortalecido e o homem como ser pensante:

2. Antropologia do Antigo Testamento: o Ser do Homem (2). (Photo: Sé-Catedral do Porto.)

J Francisco Saraiva de Sousa