quinta-feira, 16 de junho de 2011

Walter Benjamin: Filosofia da Linguagem e Dialéctica

«O místico descobre na linguagem uma dignidade, uma dimensão que lhe é imanente ou, como se diria hoje: algo que, na sua estrutura, não está orientado para a comunicação de um elemento comunicável, mas sim - e é precisamente nesse paradoxo que toda a simbólica se fundamenta - para a comunicação de algo não comunicável, que vive sem expressão na própria linguagem, e, mesmo que tivesse uma expressão, não teria, de qualquer forma, um significado, um "sentido" comunicável. /O mundo da linguagem é, portanto, o "verdadeiro mundo espiritual". A letra é o elemento da escritura do mundo. No acto contínuo da linguagem da Criação, que perpassa todas as coisas, está a divindade do único e infinito Orador, mas também o arquetípico Escrevente, que introduz a sua palavra nas obras por ele criadas». (Gershom Scholem)

O título engana, porque o texto que se segue trata fundamentalmente da apropriação da filosofia da linguagem de Walter Benjamin realizada por Max Horkheimer para redefinir a função social da filosofia num mundo indigente. Trata-se de um texto datado que pode ser lido no seu conjunto aqui. A sua separação desse texto mais vasto dedicado à crítica da racionalidade instrumental visa clarificar as linhas gerais da filosofia da linguagem de Walter Benjamin. Todos os conceitos filosóficos tradicionais estavam enraizados no conceito do universalmente humano da espécie humana, mas a sua formalização levada a cabo pelo cientismo separou-os desse conteúdo humano. Neste sentido, a formalização da razão significa desumanização do pensamento: o ataque positivista à contemplação e o louvor da perícia técnica expressam o triunfo dos meios sobre os fins, ou seja, o triunfo pragmatista da fábrica como protótipo da existência humana, mediante o qual todos os sectores da cultura superior são modelados segundo a produção na linha de montagem ou segundo o escritório executivo racionalizado. A Filosofia torna-se assim alvo da perseguição totalitária movida pela mentalidade de engenheiro contra os intelectuais que recusam reduzir a razão a um mero instrumento: «Um homem inteligente não é aquele que pode simplesmente raciocinar com correcção, mas aquele cuja mente está aberta à percepção de conteúdos objectivos, que está apto a receber o impacto das suas estruturas essenciais e a transformá-las em linguagem humana; isto também se aplica à natureza do pensamento como tal e do seu conteúdo objectivo. A neutralização da razão, que a despoja de qualquer relação com o conteúdo objectivo e do seu poder de julgar este último, e que a reduz ao papel de uma agência executiva mais preocupada com o "como" do que com o "porquê", transforma-a cada vez mais num simples mecanismo enfadonho de registar factos. A razão subjectiva perde toda a espontaneidade, produtividade e poder para descobrir e afirmar novas espécies de conteúdo - perde a própria subjectividade. Como uma lâmina de barbear frequentemente afiada, esse "instrumento" torna-se demasiado ténue e, afinal, inadequado até mesmo para dominar as suas tarefas formais» (Horkheimer). A emancipação do intelecto da vida instintiva não o livra do seu conteúdo concreto. Ao reduzir as suas ligações com este conteúdo, a razão subjectiva atrofia o intelecto e contribui para a crescente estupidificação do mundo.
Horkheimer opõe ao princípio da dominação da natureza a ideia marxista de reconciliação do homem com a natureza, mas rejeita toda a filosofia que procure afirmar a unidade da natureza e do espírito: o monismo filosófico é censurado pelo facto de servir para entrincheirar e fortificar a ideia de dominação da natureza pelo homem. A dialéctica rejeita tanto o monismo como o dualismo e, nesta dupla-rejeição, resiste à sua própria imobilização: hipostasiar um dos pólos ou dos momentos do processo ou ansiar desesperadamente pela sua resolução final é abdicar da própria dialéctica. Horkheimer reitera a dicotomia metodológica das ciências naturais e das ciências sociais reabsorvidas na e pela Filosofia: as ciências naturais trabalham com fórmulas, enquanto a filosofia reexamina significados. O filósofo, que recusa o temor de que a capacidade de pensar possa ser tolhida de alguma maneira pelo sistema dominante, «não pode falar sobre o homem, o animal, a sociedade, o mundo, a mente, o pensamento, tal como o cientista da natureza fala sobre uma substância química qualquer: o filósofo não possui uma fórmula. Não existe fórmula. A descrição adequada, revelando o significado de qualquer desses conceitos, com todas as suas sombras e interligações com outros conceitos, é ainda uma tarefa prioritária. Aqui, a palavra, com os seus estratos semi-esquecidos de significado e associações, é o princípio director». Estas conexões devem ser repensadas e preservadas nos conceitos, que, longe de saírem limpos e novos em folha das oficinas da produção teórica, são fragmentos de uma verdade total em que se encontra o seu significado: a preocupação fundamental da filosofia é construir a verdade a partir desses fragmentos. Assim, a definição de liberdade é, segundo Horkheimer, a teoria da História e vice-versa. Na sua polémica com o neopositivismo lógico, Horkheimer repudia a lógica formal, em nome da lógica hegeliana, que «é tanto a lógica do objecto como a lógica do sujeito», portanto, «uma teoria abrangente das categorias básicas e das relações entre a sociedade, a natureza e a história». Horkheimer atribui à linguagem um papel determinante na compreensão dos fenómenos sociais e na desocultação da verdade, definida como adequação entre o nome e a coisa: «A filosofia é o esforço consciente para unir todo o nosso conhecimento e compreensão numa estrutura linguística em que as coisas são chamadas pelos seus nomes exactos». Walter Benjamin - o místico da linguagem, como lhe chamou Scholem - já tinha elaborado uma teoria da linguagem, na base da qual estava a crença de que o mundo tinha sido criado pela palavra de Deus: o acto de criação de Deus é aqui visto como uma concessão ou doação de nomes e o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o dom de nomear. Porém, os nomes do homem e os nomes de Deus não são exactamente os mesmos, porque, com a separação entre o homem e a coisa, se perdeu a adequação absoluta do discurso divino: o discurso humano traz a marca da corrupção que é a lógica formal, mediante a qual o homem nomeia as coisas por meio de abstracções e de generalizações. A tarefa do crítico redentor é precisamente libertar e recuperar essa linguagem de Deus, aprisionada e perdida nos textos humanos, através da descodificação hermenêutica das diversas aproximações inferiores do homem. Embora evite a fundamentação teológica da teoria da linguagem de Benjamin, Horkheimer aceita a noção de corrupção da linguagem «pura» (Karl Krauss): o discurso humano, produzido e difundido pela cultura de massas, tornou-se unidimensional e afirmativo (Marcuse), instrumental e ideológico, e, por isso, na sua condição de instrumento das forças dominantes e obscuras na sociedade administrada, incapaz de expressar a negação, isto é, de escutar a voz de protesto dos oprimidos. Cabe à filosofia chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes, sondando os testemunhos mudos da linguagem e os estratos da experiência que neles se preservam: «A linguagem reflecte os anseios dos oprimidos e a condição da natureza».
A dialéctica é filosofia-mundo e filosofia-mundo negativa, no sentido em que todos os seus conceitos se referem à negação da totalidade antagónica da ordem existente: «O todo é, como escreve Adorno, o não-verdadeiro». Os grandes ideais da civilização ocidental - liberdade, justiça plena, igualdade, fraternidade - são os protestos da natureza contra a sua condição humilhada, perante os quais a filosofia assume duas atitudes: a renúncia à exigência de ser considerada como verdade definitiva e absoluta (1) e a admissão de que as ideias culturais fundamentais têm valores de verdade, que a filosofia pode avaliar, levando em conta o meio social antagónico onde se originam (2). Ao assumir estas duas atitudes, a filosofia opõe-se à ruptura entre as ideias e a realidade: «A filosofia confronta o existente, no seu contexto histórico, com a exigência dos seus princípios conceptuais, a fim de criticar a relação entre ambos e, assim, transcendê-los. A filosofia saca o seu carácter positivo precisamente da acção recíproca destes dois procedimentos negativos». A teoria crítica é geralmente caracterizada como crítica imanente, um procedimento dialéctico que Horkheimer, Benjamin, Adorno e Marcuse usaram de modo ligeiramente distinto. A negação, que exerce um papel fundamental na dialéctica, tem duas faces: (1) negação das pretensões absolutas da ideologia dominante - crítica da ideologia - e (2) negação das exigências imperiosas da realidade estabelecida. A dialéctica debruça-se sobre os valores existentes e insere-os num conjunto teórico que revela a sua relatividade. E, visto que sujeito e objecto, palavra e coisa, não podem ser conciliados nas actuais circunstâncias sociais e económicas, a dialéctica usa o princípio de negação para tentar salvar as verdades relativas do naufrágio dos falsos princípios fundamentais. A essência do pensamento dialéctico reside na compreensão da negatividade e da relatividade da ordem estabelecida e da sua cultura de auto-preservação. Mas a posse desse conhecimento não constitui - por si só - a superação da totalidade antagónica existente. A dialéctica marxista é completamente distinta da dialéctica hegeliana, na medida em recusa o princípio de identidade, em nome da diferença entre o ideal e o real e entre a teoria e a praxis. O que está em jogo na situação presente é saber se no futuro irá predominar a tendência barbarizante ou a visão humanista: «A lógica da história é tão destruidora como os homens que produz: onde quer que penda a sua força de gravidade, reproduz o equivalente do infortúnio passado. O normal é a morte». Ou, como Adorno esclarece mais adiante, «a enfermidade actual consiste justamente na normalidade». A filosofia não pode determinar o rumo da história e muito menos garantir de antemão o triunfo da visão humanista, mas, ao «fazer justiça àquelas imagens e ideias que, em determinadas épocas, dominaram a realidade, exercendo o papel de absolutos, e que foram abandonadas no curso da História», pode funcionar como um correctivo da História. Como memória e consciência da espécie humana, a filosofia pode ajudar a evitar que a marcha da humanidade mergulhe na catástrofe: a sua função consiste em auxiliar as pessoas a reconhecer a desproporção entre o peso do mecanismo esmagador do poder social e o das massas atomizadas. A negação determinada, a denúncia da racionalidade instrumental que mutila a humanidade e impede o seu livre desenvolvimento, repousa, como diz Horkheimer, na confiança no homem. (Photo: Viela do Buraco, Centro Histórico, OPorto.)

J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Clique sobre a imagem para a ampliar! OPorto: Viela do Buraco, Centro Histórico.