domingo, 3 de julho de 2011

O que é a antropologia imunitária?

Em 1971, J. Z. Young, professor de Anatomia da Universidade de Londres (University College), escreveu um volumoso tratado de antropologia física - Introdução ao Estudo do Homem, onde advoga uma abordagem unificada e plural do estudo científico do homem. O carácter enciclopédico da obra seduziu o meu espírito unificador que, na altura, procurava unificar o estudo do homem a partir de uma neurobiologia filosófica fundamental, fortemente marcada por outra obra de J. Z. Young - A Model of the Brain (1964). J. Z. Young foi sempre um herói científico para mim, que li todas as suas obras, sobretudo A Vida dos Vertebrados (1950) e A Vida dos Mamíferos (1957). Hoje, passados os anos da minha longa formação académica, regresso às obras deste fabuloso anatomista para encontrar inspiração para redefinir a antropologia imunitária. Qualquer tratado de antropologia biológica ou física integra, pelo menos os mais recentes, como o clássico de A. Portmann, o de André Langaney e sobretudo o de Steve Jones, Robert Martin & David Pilbeam, uma secção sobre os sistemas imunológicos do homem. Mas, como nunca utilizam a expressão antropologia imunitária, posso não só reclamar a sua autoria, como também a sua problemática teórica. O meu objectivo não é tanto estudar a variação química dos sistemas imunológicos no seio de uma mesma população, mas sobretudo utilizar os conhecimentos imunológicos para reformular a antropologia fundamental que é, como já tenho defendido, antropologia filosófica. Quando estabeleci as bases da neurobiologia filosófica, não só conhecia todo o corpo de conhecimentos da imunologia, como é evidente, como também tinha lido o artigo de Niels K. Jerne, onde este imunologista estabelece um paralelo entre o sistema imunitário e o sistema nervoso, paralelo que foi levado em conta por Jean-Pierre Changeux e Gerald M. Edelman na elaboração do darwinismo das sinapses. Porém, como J. Z. Young não prestou muita atenção ao sistema imunitário para além do seu papel na regulação homeostática da vida, acabei por «esquecer» a antropologia imunitária como peça fundamental e estruturante da antropologia fundamental. Foi preciso um encontro com os poetas para recuperar a noção de sem-abrigo, libertando-a da sua significação sociológica para a devolver à antropologia filosófica: o homem como ser-sem-abrigo arrancou subitamente a antropologia imunitária do esquecimento - e eis que revisito o meu ponto de partida, "assombrado-ofuscado-esclarecido" pela polémica entre Arnold Gehlen e Konrad Lorenz. O que procuro hoje para reformular a antropologia fundamental esteve sempre comigo e, curiosamente, esse elo perdido-hoje-achado - porque lhe dei um nome! - operou activamente em todas as teorias que formulei ao longo do tempo: chama-se antropologia imunitária. O conceito hegeliano de homem como morte adiada pode ser lido à luz dos actuais conhecimentos genéticos e imunológicos: a antropologia imunitária é basicamente uma imunologia da morte. Ou, se quiserem, a analítica da finitude assume hoje a forma de uma imuno-genética da morte. A genética do cancro retoma a noção hegeliana do homem como morte adiada quando afirma que o homem tem a tendência natural para se transformar em tumor. Ora, todo o programa científico de pesquisa do envelhecimento foi claramente esboçado-antecipado por Macfarlane Burnet. O facto de hoje estarmos rodeados de pessoas velhas - autênticos tumores ambulantes! - ajuda a tomar consciência deste aspecto nuclear da natureza humana que a geriatria instalada no Ocidente tentou sequestrar da atenção pública para poder exercer o seu domínio corrupto. A filosofia contemporânea que sofre de uma doença auto-imune cognitiva ajudou o poder estabelecido a sequestrar a morte. Porém, apesar de estarem dependentes do financiamento capitalista alheio, as ciências biológicas, biomédicas e médicas desequestraram a morte: a proliferação celular está sob controle genético, e, se mutações somáticas que ocorrem com maior frequência à medida que envelhecemos criarem uma variante que prolifere rapidamente, esse clone tenderá a tomar conta do organismo, transformando-o em tumor. O sistema imunitário declina com a idade e favorece assim a sobrevivência de qualquer infecção susceptível de levar à morte. (É certo que a teoria imunológica do envelhecimento não se aplica de igual modo a todos os seres vivos, sobretudo no caso de serem invertebrados, mas, como aqui só estou preocupado com o homem imunitário, não preciso recorrer à evolução da imunidade para acentuar o carácter sofisticado do sistema imunitário adaptativo dos mamíferos.) O homem é lançado no mundo para morrer depois de ter desempenhado o seu papel reprodutor: a vida que lhe é dada entre o nascimento e a morte não lhe pertence; é o homem que pertence à Vida que o usa para realizar o seu sonho: reproduzir-se.

Tal como as neurociências tiveram o seu Homem Neuronal, a imunologia merece ter o seu Homem Imunitário. Chegou a altura de sintetizar as analogias que Niels K. Jerne estabeleceu entre o sistema imunitário e o sistema nervoso: eles são os únicos órgãos do corpo capazes de responder adequadamente a uma enorme variedade de sinais. Ambos os sistemas revelam dicotomias: as suas células podem receber e transmitir sinais e os sinais podem ser excitatórios ou inibidores. Ambos os sistemas penetram na maioria dos tecidos do corpo, mas evitam o contacto de um com o outro: a barreira hematoencefálica impede que os linfócitos estabeleçam contacto com as células nervosas. As células nervosas - neurónios - estão fixas no cérebro, na medula espinal e nos gânglios, e os seus longos prolongamentos - axónios - conectam-se entre si, formando uma rede. A capacidade do axónio de um neurónio para formar sinapse com o grupo alvo-correcto de neurónios utiliza um mecanismo semelhante ao reconhecimento dos determinantes antigénicos. Os linfócitos são 100 vezes mais numerosos do que os neurónios e, ao contrário destes, podem mover-se livremente, interagindo, quer através de um encontro directo, quer através das moléculas de anticorpos que libertam. Estes elementos podem tanto reconhecer como ser reconhecidos e, quando isso acontece, formam uma rede. Como no caso do sistema nervoso, a modulação da rede mediante sinais alheios representa a sua adaptação ao meio. Deste modo, os dois sistemas biológicos aprendem com a experiência e constituem uma memória que se mantém por reforço sem poder ser transmitida à geração seguinte. Niels K. Jerne atribuiu estas analogias na expressão dos sistemas imunitário e nervoso às semelhanças nos conjuntos de genes que codificam a sua estrutura e controlam o seu desenvolvimento e a sua função. Como já analisei os conceitos fundamentais da imunologia no texto Filosofia Imunológica, prefiro - neste momento - seguir outro rumo: tanto o sistema imunitário (Macfarlane Burnet) como o sistema nervoso (Gene D. Cohen) envelhecem com a idade. Porém, a par da decadência física que caracteriza o envelhecimento tanto no animal como no homem, A. Portmann recorre às veneráveis figuras dos profetas e das sibilas, cujo poder intelectual continua vivo na convicção dos povos primitivos e dos povos civilizados, para mostrar alguns traços específicos do homem velho condenado à morte depois de ter cumprido a sua função reprodutiva: a pujança criadora dos homens de idade avançada, ilustrada pelas obras geniais de Tizian (pintor), Verdi (músico) e Gauss (matemático), é vista como a exteriorização da individualidade e da acentuação do tipo específico de personalidade que ocorrem durante o processo de envelhecimento. K. Wezler atribuiu este traço específico do homem velho à dominância relativa da actividade do cérebro que vivifica todas as restantes funções corporais, sem levar em conta os distúrbios mentais da idade avançada e o grande mistério da medicina moderna, a doença de Alzheimer. Admiro a bio-antropologia de A. Portmann, mas não posso aceitar que ela generalize e universalize a criatividade observada nalguns cérebros em idade avançada, como se todos os cérebros humanos que envelhecem fossem criativos, o que não é o caso. A referência ao nascimento da oligarquia dos homens idosos - gerusia - entre os aborígenes da Austrália, bem como em Esparta e no Império Japonês, que Portmann deriva deste traço específico do homem velho, parece justificar ideologicamente o egoísmo geriátrico que capturou o poder político na Europa contemporânea. Ora, a captura da política pela gerontologia traz a marca letal da anti-natalidade que bloqueia o futuro do Ocidente ou de qualquer outra cultura ou civilização. O prolongamento da vida realizado à custa da natalidade condena tudo à morte, tanto os homens como as suas culturas. É certo que as pesquisas científicas sobre o envelhecimento têm sido financiadas para prolongar a vida, mas os seus resultados apontam noutra direcção não desejada pelo poder estabelecido e pelo sonho ancestral do elixir da juventude. Hoje sabemos que a morte é um programa genético que não pode ser contornado sem gerar efeitos catastróficos. No campo das ciências biomédicas, dispomos de diversas teorias biológicas do envelhecimento que obedecem ao princípio dos seres vivos - animais ou plantas - envelhecerem de acordo com padrões específicos da espécie a que pertencem. Destaco oito grupos de teorias, cada um dos quais pode compreender versões ligeiramente diferentes: teoria da entropia /teoria da exaustão /teoria do desgaste (1), teorias da morte celular /programação genética ou teoria de perpetração (2), teoria da mutação genética /teoria do erro (3), teoria calórica /teoria do colagénio /teoria da ligação cruzada (4), teoria do radical livre (5), teoria da lipofuscina (6), teoria imunológica (7), e teoria dos relógios do envelhecimento /teoria das hormonas da morte - a testosterona é uma delas em determinados quadros clínicos, como por exemplo o cancro da próstata! - e do sistema endócrino (8). Cada uma destas teorias configura arranjos estruturais entre factores intrínsecos e factores extrínsecos ao organismo para explicar o envelhecimento e a morte programada do organismo. Muitas destas teorias são complementares e penso que a genética molecular das doenças e dos distúrbios neurológicos será no futuro capaz de articular - com a ajuda preciosa da imunologia que chama a atenção para as doenças degenerativas dos homens velhos, tais como as doenças cardiovasculares e a doença de Alzheimer, bem como para duas doenças frequentes no decurso da senescência: a leucemia linfóide e o mieloma múltiplo - uma teoria unificada do envelhecimento. De momento, o que podemos dizer é que as teorias biológicas não permitem ao homem continuar a sonhar com uma vida além-túmulo. O homem enquanto ser-sem-abrigo, nascido de um parto prematuro e obrigado por isso a permanecer no ninho, pelo menos durante o período neonatal do seu desenvolvimento, não tem morada definitiva nem aqui na terra nem noutro não-lugar qualquer. Alex Comfort defendeu a ideia de que o envelhecimento é essencialmente uma perda de interesse da Natureza pelos organismos que, tendo finalizado a sua tarefa reprodutora, deixaram de estar submetidos à pressão evolutiva. Depois de terem criado uma família até à idade adulta, os homens e as mulheres deixam de ter importância biológica para a espécie humana e, a partir de determinada idade - 60 anos?, ficam intrinsecamente à deriva. É certo que os mecanismos de controle e de reparação continuam a funcionar, mas falta-lhes a capacidade de renovação da juventude. As mutações somáticas conduzem a defeitos enzimáticos e, num ou noutro lugar, produzem-se "avarias" com efeitos desastrosos noutras partes do mecanismo vital, com uma tendência variável mas inexorável para a decrepitude e uma vulnerabilidade cada vez maior aos ataques e às agressões do meio. A morte que o homem tanto teme, a ponto de imaginar como consolação ilusória um tipo de experiência consciente depois da morte, é, portanto, uma necessidade biológica: o pensamento, a consciência, a linguagem, a capacidade sensorial, a capacidade motora e tudo aquilo que deriva destas capacidades, sobretudo o nosso mundo subjectivo que se afirma através da luta no mundo comum que partilhamos com outras subjectividades, dependem totalmente da disposição e do funcionamento metabólico normal das nossas células nervosas. Assim, quando um homem morre, o seu universo mental finaliza com a sua morte cerebral. Ó, amigos das ilusões, não há vida para além da morte!

J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ai, vou prolongar mais o texto mas não queria fazê-lo. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, pelo menos tenho duas audiências que puxam por mim - a americana e a alemã. Faço ciência e filosofia para estrangeiros - afinal os meus pares-amigos! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, afinal ser velho é, de certo modo, uma doença. É triste mas a vida termina assim... :(

Florêncio disse...

"A duração da nossa vida é de Setenta anos, e se alguns pela sua robustez, chegarem a Oitenta anos, o melhor deles é canseira e enfado, pois passa rapidamente, e nós voamos" Salmos 90:10

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado, Florêncio!

Os Salmos dizem muitas verdades. :)