domingo, 12 de fevereiro de 2012

Três Sonetos de António Nobre

Cidade do Porto: Ribeira
Estamos em Portugal, onde de vez em quando surge uma figura de génio que a mediocridade nacional se apressa a sepultar em vida. Nesta terra amaldiçoada pela Senhora Inveja, todas as figuras de génio foram sepultadas em vida, e, depois de mortas, as suas obras são encerradas em encadernações tumulares que invadem as livrarias a preços verdadeiramente proibitivos, como que a não incentivar a sua leitura. A cultura superior não é bem-vinda em Portugal, onde a cunha ou qualquer outro esquema corrupto valem mais do que todo o mérito de um homem nascido com a estrela da redenção. Não admira portanto que António Nobre tenha escrito estes versos: «Não me importas, País! seja meu Amo /O Carlos ou o Zé da T'resa... Amigos, /Que desgraça nascer em Portugal!» Sim, é uma desgraça, uma terrível desgraça, uma terrível fatalidade nascer em Portugal: o fatalismo que é atribuído a António Nobre não tem outro sentido a não ser o de um grito de desespero - o grito não escutado pelos carrascos! - daquele que é sepultado em vida por um corcel de alienados mentais. Portugal é o país maldito que sepulta em vida todos os que nasceram com a estrela da redenção: a figura de génio que tenha nascido nesta terra maldita é sempre-já exilada e enclausurada. O exílio interior é o destino de todos os portugueses de génio: «Que triste fado! /Antes fosse aleijadinho, /Antes doido, antes cego.../Ai do Lusíada, coitado!». O sepultamento em vida que é o exílio interior assume muitas formas, uma das quais é a negação do mérito. Em Portugal, todos são iguais, de modo terrivelmente nivelador, sobretudo depois desse fatídico dia que foi o 25 de Abril de 1974: os vizinhos - os malditos vizinhos! - da figura de génio não lhe reconhecem publicamente o mérito; roubam-lhe o mérito, apropriando-se das suas ideias como se elas lhes pertencessem: os portugueses são macacos de imitação que simulam ser e pensar aquilo que efectivamente não são e não pensam. Figuras absolutamente planas e superficiais que tomam emprestada uma profundidade que não lhes pertence. Quando um homem de génio como António Nobre se sente assaltado na sua essência única, no seu núcleo existencial, reage enaltecendo o seu próprio ego, o Eu-Virgílio: o carácter autobiográfico da poesia de António Nobre só pode ser compreendido como uma defesa do seu próprio eu num mundo que não tolera a diferença que se destaca da mediocridade nacional. Os portugueses comportam-se como zombies, mortos-vivos, que, para alimentar os seus corpos desabitados, precisam de sacar o sangue dos outros que são habitados por estrelas da redenção. O fatalismo dos portugueses de génio mais não é do que a filosofia que lhes permite conservar e proteger a autenticidade do seu núcleo existencial dos ataques da turba de medíocres. A afirmação do eu contra um mundo de corpos desalmados - a tirania da maioria desalmada! - constitui um acto de extrema coragem, cujo preço é a própria solidão. António Nobre (Porto: 1867-1900) publicou em vida uma única obra - , da qual assistiu a duas edições (1892, 1898), sendo as outras duas obras póstumas: Despedidas, que inclui um fragmento d' O Desejado (1902), e Primeiros Versos (1921). Hannah Arendt traçou uma distinção muito importante entre o estar isolado e o estar solitário: o indivíduo está isolado quando se encontra numa situação em que não pode agir porque não há ninguém para agir consigo, e está solitário quando se encontra numa situação em que, como pessoa, se sente completamente abandonado por toda a companhia humana. Deste modo, ao isolamento na esfera pública corresponde a solidão na esfera dos contactos sociais, sendo o primeiro um conceito político e o segundo um conceito existencial. Mas os dois conceitos não se excluem em certas situações distantes do governo totalitário, como o demonstra a condição de estar só de António Nobre. Epicteto ajuda a compreender esta condição do poeta portuense quando distingue entre o homem solitário, aquele que, apesar de estar rodeado por outros, não pode estabelecer contactos com eles, estando exposto à sua hostilidade, e o homem só, aquele que, estando sem companhia, pode desfrutar a companhia de si mesmo, já que tem a capacidade de falar consigo mesmo. A poesia de António Nobre é, toda ela, um diálogo de dois-em-um: o poeta aproveita a ocasião de não ter no mundo português um lugar reconhecido e garantido pelos outros concidadãos para estar consigo mesmo, na companhia do seu próprio eu, sendo assim dois-em-um, não só o Eu-António mas também o Eu-Portugal. A minha leitura do de António Nobre pretende apenas resgatar a sua poesia, dando resposta ao seu anseio tumular no reino da paz: «O tempo tudo põe no seu lugar e faz justiça a quem na tem». Ora, referindo-se à recepção da primeira edição do , António Nobre confessa em Janeiro de 1896: «Quando eu publiquei o meu livro, saíram-me ao encontro meia dúzia de bandidos que nos jornais me caíram em cima». A caricatura que Rafael Bordalo Pinheiro fez dele em 1892 mereceu-lhe este comentário, talvez o seu grande testamento: «Não devo ao meu país glorioso e lindo senão o acaso do nascimento. E com o parto do mais uma vez vi que a literatura portuguesa é uma Costa de África de penas, lutas, horrores». António Nobre não deve nada a Portugal, a não ser o acaso do nascimento e o seu próprio exílio. Portugal é um túmulo, Portugal é um ermo, no qual os portugueses não deixam germinar o génio. Buscar a companhia de si mesmo, em resposta à hostilidade dos outros, num diálogo interminável do eu consigo mesmo, é um acto que se abriga desde logo na proximidade da morte: «Toda a dor pode suportar-se, toda! (...) /Mas uma não: a dor do pensamento! /Ai quem me dera entrar nesse convento /Que há além da Morte e que se chama A Paz!» O acto de pensar implica um afastamento do mundo, de modo a que aquele que pensa possa estar a sós consigo mesmo, mas o pensamento que se pensa a sós visa sempre encontrar o seu caminho num mundo comum, através do seu reconhecimento pelos outros. Porém, quando se perde o mundo, a garantia recíproca e a esperança de modificar o mundo real na companhia dos outros, como sucedeu com António Nobre, cujo mundo já não é o mundo real mas o mundo-desejo do Eu-António, aquele a quem os portugueses negaram todas as suas tentativas de renascimento, corre-se o risco de perder o próprio eu, desejando a sua aniquilação: o Eu-Saudade, o Eu-Portugal mais não são do que desejos - ou configurações do desejo - do Eu-António que pensa na vizinhança da morte. Mas o suicídio é também a possibilidade virtual de um assassinato colectivo: a morte de Portugal tumular e dos bandidos que o povoam. A poesia de António Nobre vacila entre o suicídio e o homicídio, ambos figuras do desejo, sem fechar a porta a um eventual resgate futuro, o qual implica a morte de Portugal e o seu renascimento periódico, duplo-movimento inscrito na terrível dialéctica entre o colectivo aniquilador e o individual criativo. Eis o legado de António Nobre que transita de génio em génio, longe dos zombies assassinos que se apoderaram do destino de Portugal, o país quase-totalitário que obriga os seus génios a "serem infelizes para serem grandes", para parafrasear uma frase de António Nobre escrita em 1888.

Eis os três sonetos de António Nobre:

Em certo Reino, à esquina do Planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Pais,
Há quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fora não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais,
À má-fé, numa traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reais!

E, embora eu seja descendente, um ramo
Dessa árvore de Heróis que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo Ideal:

Nada me importas, País! seja meu Amo
O Carlos ou o Zé da T'resa... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal! (Coimbra, 1889)

Longe de ti, na cela do meu quarto,
Meu corpo cheio de agoirentas fezes,
Sinto que rezas do Outro-Mundo, harto,
Pelo teu filho. Minha mãe, não rezes!

Para falar, assim, vê tu! já farto,
Para me ouvires blasfemar, às vezes,
Sofres por mim as dores cruéis do parto
E trazes-me no ventre nove meses!

Nunca me houvesses dado à luz, Senhora!
Nunca eu mamasse o leite aureolado
Que me fez homem, mágica bebida!

Fora melhor não ter nascido, fora,
Do que andar, como eu ando, degredado
Por esta Costa d'África da Vida. (Coimbra, 1889)

Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos!
Torres por terra! As árvores sem ramos!
Ó meus amigos! todos nós falhamos...
Nada nos resta. Somos uns perdidos.

Choremos, abracemo-nos, unidos!
Que fazer? Porque não nos suicidamos?
Jesus! Jesus! Resignação... Formamos
No Mundo, o Claustro-Pleno dos Vencidos.

Troquemos o burel por esta capa!
Ao longe, os sinos místicos da Trapa
Clamam por nós, convidam-nos a entrar:

Vamos semear pão, podar as uvas,
Pegai na enxada, descalçai as luvas,
Tendes bom corpo, Irmãos! Vamos cavar! (Coimbra, 1889)

J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O maior exílio de António Nobre foi a Universidade de Coimbra, aliás aquela que contribuiu durante séculos para o atraso do país. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A foto é gira mas ocupa muito espaço. Vou ver se fica ou se vai ser removida! :)