quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Uma novela de Fernando Pessoa: O Banqueiro Anarquista

Fernando Pessoa: Estátua no café A Brasileira,
no Chiado, Lisboa
«Por anarquismo entendo aquela doutrina social extrema que contende que não deve haver entre os homens outras diferenças ou desigualdades senão as naturais, nem pesarem sobre os homens outras peias ou outros males senão os que a própria Natureza dá... A abolição, portanto, de todas as castas, de aristocracia, do dinheiro, de todas as convenções sociais que promovem a desigualdade. A abolição, também, de todas as convenções sociais contra a natureza - as pátrias, as religiões, o casamento... Não era isto que v. entendia por anarquismo?» (Fernando Pessoa, 27D - 6 e 7)

Quem conheça a obra de Fernando Pessoa sabe que ele fracassou quando tentou fazer filosofia de forma sistemática e não espontânea. Se há um pensamento filosófico que habita a obra de Fernando Pessoa, ele não deve ser procurado nos seus textos filosóficos mas na sua própria poesia e, sobretudo, na sua sátira dialéctica: O Banqueiro Anarquista. A sátira dialéctica de Fernando Pessoa foi publicada no nº. 1 da revista Contemporânea, em 1922. Em 1935, Fernando Pessoa transmite a Adolfo Casais Monteiro a sua intenção de remodelar inteiramente o Banqueiro Anarquista, de modo a torná-lo acessível ao público europeu numa tradução para o inglês que estava a realizar. Dessa intenção de revisão do texto original restam apenas rascunhos que ajudam a clarificar algumas ideias do original, sem no entanto permitir substituí-lo por uma nova versão susceptível de conquistar o público europeu: estranho não é a própria intenção de remodelar o texto, estranho é considerá-lo na sua versão original como impróprio para consumo europeu. Fernando Pessoa que sonhava com o Prémio Nobel da Literatura parece não estar seguro dos seus próprios conhecimentos sobre o mundo contemporâneo e as suas doutrinas sociais e políticas. Nós não podemos alterar o texto original de Fernando Pessoa, nem sequer devemos construir a nossa própria versão de revisão. Cabe-nos apenas a tarefa de o ler e de o interpretar, de modo a actualizá-lo. Apesar das suas inúmeras edições, o Banqueiro Anarquista ainda não mereceu uma análise séria por parte do seu público português: os livros vendem-se mas geralmente não são lidos e muito menos interpretados. O título indica desde logo um contra-senso: como se pode ser banqueiro e anarquista ao mesmo tempo? Mas não é este aparente contra-senso que merece a nossa atenção: o que está em causa é uma alternativa, isto é, uma "escolha" entre capitalismo e anarquismo. Ao elaborar esta alternativa, Fernando Pessoa exclui automaticamente o socialismo e o comunismo, definidos como «regimes de ódio», mas o expediente usado para expor a alternativa elimina um dos seus elementos, como se não houvesse alternativa ao sistema burguês. O expediente usado - as convenções sociais versus natureza - não é um procedimento adequado para expor o conflito entre capitalismo e anarquismo, e Fernando Pessoa sabia isso quando partilhou a intenção de reformular o texto para consumo do público culto da Europa. O Ou... Ou... pessoano é uma falsa alternativa, ele mais não é do que a apologia fatal do regime burguês: eis a hipótese que procurarei demonstrar num outro texto dedicado à análise filosófica do Banqueiro Anarquista. Afirmar que Fernando Pessoa previu a queda do comunismo não é suficiente para lhe atribuir a tese do primado da política sobre a economia, aliás elucidada por Lenine: Fernando Pessoa nunca esteve na posse dos conceitos necessários para pensar a política. E nem sequer suspeitou que o seu expediente remonta ao conflito entre sofistas e socráticos, e, o que é mais importante, às doutrinas do contrato social. O anarquismo como abolição das convenções sociais devolve o homem ao seu estado de natureza. Afinal, o banqueiro é precisamente o animal que segue os seus instintos, obrigando os outros a submeter-se à tirania do dinheiro: «Ora eu, tornando-me superior à força do dinheiro, isto é, libertando-me dela, consigo liberdade. Consigo liberdade só para mim, é certo; mas é que como já lhe provei, a liberdade para todos só pode vir com a destruição das ficções sociais, pela revolução social, e eu, só por mim, não posso fazer a revolução social» (Banqueiro anarquista). (Repare-se neste conceito-bloqueio: a tirania do dinheiro é definida como escassez de dinheiro: quem não tenha dinheiro está submetido à sua força tirânica, mas quem o tenha é livre. Enfim, o banqueiro anarquista é livre, no sentido da posse do dinheiro o libertar do reino da necessidade. Apologia ingénua do capitalismo! Ter dinheiro liberta o homem da sua tirania: a escassez de dinheiro que escraviza o homem. Capitalismo e anarquismo falam a mesma linguagem: a sátira dialéctica - afinal, o monólogo do banqueiro consigo mesmo! - converte o capitalismo numa fatalidade: o banqueiro anarquista liberta-se de modo egoísta da ditadura do dinheiro, não da tirania do capital, tornando-se capitalista, em virtude das suas qualidades naturais superiores. Fernando Pessoa que tanto lamentou as desigualdades sociais nunca chegou a compreender que o capital é uma relação social que produz a penúria de muitos e a fartura de poucos.) Outra forma de dizer que o contra-senso não reside no banqueiro anarquista que conseguiu conquistar de modo puramente egoísta a sua liberdade, subjugando - e não destruindo - a ficção do dinheiro, mas sim em opor o anarquismo ao capitalismo, como se o primeiro fosse um regime natural - sujeito à tirania das desigualdades naturais - e o segundo um regime de convenções e ficções sociais, cuja economia de mercado é, ela própria, anárquica ou, como diz o banqueiro anarquista, um "aglomerado de tiranias". As páginas escritas por Fernando Pessoa são de tal modo sedutoras que podem convencer plenamente o leitor, privando-o da capacidade de pensar e de criticar a construção do próprio texto na sua totalidade orgânica, que, quando meditado, traduz a falência da imaginação política de Fernando Pessoa. Infelizmente, sempre que procura pensar Fernando Pessoa perde-se, sem conseguir libertar-se da tirania do dinheiro tal como a define o banqueiro anarquista. (De certo modo, Fernando Pessoa descobriu à sua maneira a aporia fundamental do poder: a luta contra a dominação gera mais dominação. Este é o aspecto forte do seu pensamento, pelo menos nesta novela.)

Anexo: O banqueiro anarquista traça uma distinção entre anarquismo lúcido, o seu próprio anarquismo que lhe permitiu subjugar a ficção do dinheiro, e anarquismo estúpido, o dos anarquistas destituídos de dons naturais que matam a tiro os capitalistas sem destruir a tirania do capital, tarefa que atribui à revolução social. Ora, esta distinção é fundamental para compreender as contradições de todo o seu discurso, aparentemente dirigido contra a organização leninista do partido comunista. (A ditadura do proletariado é condenada!) Porém, ela mostra que o anarquismo não é uma alternativa ao capitalismo, na medida em que partilha com o seu suposto inimigo a mesma linguagem do egoísmo, dada como linguagem natural. Fernando Pessoa retoma muitas ideias pertencentes a grandes pensadores, mas parece que não as compreende, a menos que esteja a ridicularizar a sua recepção portuguesa. O interlocutor do banqueiro anarquista resigna-se facilmente, dando a sua anuência, sem conseguir elaborar um contra-discurso. Os rascunhos da versão ampliada procuram dar mais protagonismo ao interlocutor do banqueiro anarquista, mas não são suficientemente claros para possibilitar a reconstrução do contra-discurso.

J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Repare: Eu não pretendi criticar por criticar a novela de Fernando Pessoa, até porque compreendo o seu desespero de viver em Portugal. O que lamento é a sua falta de coragem... que se evidencia nesta novela, de resto uma obra literária deveras interessante.