terça-feira, 29 de maio de 2012

Etologia: Agressão e Natureza Humana

Violência Encarnada no Futebol
«O homem gosta demasiadamente de se imaginar no centro do universo, não fazendo parte do resto da natureza, mas opondo-se a ela como um ser de essência diferente e superior. Perseverar neste erro é para muitos homens uma verdadeira necessidade. Fazem ouvidos de mercador ao mais inteligente conselho que um sábio alguma vez lhes deu: o famoso "Conhece-te a ti mesmo", atribuído a Sócrates, mas de facto pronunciado por Quílon. Que impede o homem de obedecer a esta ordem? (O orgulho impede-o de se conhecer a si próprio, escondendo-lhe o facto de que ele é um produto da evolução histórica.)» (Konrad Lorenz)

Primeiro a controvérsia evolucionista, no século XIX, depois a controvérsia etológica, e, por fim, a controvérsia sociobiológica, ambas no século XX: a Filosofia tem dedicado muita atenção às controvérsias científicas, nomeadamente à controvérsia entre Samuel Clarke e Leibniz, mas nunca se concentrou seriamente sobre estas três controvérsias biológicas. O que há de comum a estas controvérsias evolucionistas que fere o orgulho do homem? O facto delas desalojarem o homem da sua posição privilegiada na «criação», fazendo dele - tanto ao nível morfológico e fisiológico como ao nível comportamental - o resultado da evolução filogenética por selecção natural. As três revoluções evolucionistas - a revolução darwinista, a revolução etológica e a revolução sociobiológica - opõem-se ao antropocentrismo egoísta do homem. Desalojar o homem do lugar privilegiado que ocupa no universo tornou-se uma tarefa da ciência desde Copérnico: a revolução copernicana desalojou o homem do centro do universo e as revoluções evolucionistas privaram-no do seu lugar central na «criação» orgânica. A destruição do cosmos operada pela ciência moderna e a perda, pela Terra, da sua situação central e singular, levaram inevitavelmente à perda, pelo homem, da sua posição singular e privilegiada no drama teocósmico da «criação», da qual o homem era até então tanto a figura central como a cena. A revolução científica deixou-nos sozinhos no mundo mudo e aterrorizante de Pascal, um mundo desprovido de sentido, no qual o homem encontra o niilismo e o desespero. Nicolau de Cusa e Giordano Bruno não sentiram o deslocamento da Terra do centro do mundo como uma degradação: ambos ficaram satisfeitos com esse deslocamento, e Bruno vai além da afirmação de Cusa de que a imutabilidade não pode ser encontrada em parte alguma de todo o universo, para afirmar que o movimento e a mutação são sinais de perfeição e não de ausência de perfeição. Um universo imutável seria um universo morto; apenas um universo vivo é capaz de se mover e de se modificar. Encontramos aqui formulada a ideia fulcral do progresso: a ideia de aperfeiçoamento, o alvo da crítica protagonizada pela revolução ecológica. No decurso do século XX, a biologia foi a ciência natural que mais contribuiu para a modificação substancial da nossa imagem do mundo e do homem, e, no entanto, a Filosofia voltou-lhe as costas, como se as ciências sociais constituíssem uma plataforma paradigmática segura para conhecer o homem. A etologia, tal como foi elaborada pelo seu fundador, Konrad Lorenz, é menos «redutora» do que a sociobiologia criada por Edward Wilson. Ambas as disciplinas biológicas são contrárias ao antropocentrismo, segundo o qual «o homem é único entre os animais» (Tinbergen). Mas divergem de algum modo quanto à estratégia seguida para conhecer as «raízes animais» do comportamento humano. Ao contrário da estratégia seguida por Wilson, toda ela dirigida à busca das semelhanças e das bases genéticas do comportamento social, a estratégia etológica vacilou muito entre a busca das semelhanças e a busca das diferenças entre o animal e o homem. A conferência de Tinbergen, pronunciada no ciclo "Estudos Sociais e Biologia" na Universidade de Oxford, a 27 de Outubro de 1964, ajuda-nos a compreender esta diferença estratégica entre a etologia humana e a sociobiologia humana, de resto bem evidenciada na obra de John Tyler Bonner (1980) sobre a evolução da cultura nos animais e na obra de W. H. Thorpe (1974) sobre a natureza animal e a natureza humana, para já não referir a obra de I. Eibl-Eibesfeldt (1973) sobre o homem pré-programado.

Quando se diz que o homem é único entre os animais, a palavra "único" pode ter dois significados ligeiramente diferentes. Pode significar: o homem não é idêntico a nenhum animal. É verdade que o homem é notavelmente diferente dos animais, mas este sentido aplica-se igualmente a todos os animais, porque cada espécie, bem como cada indivíduo, é única neste sentido. Mas também pode ter um sentido absoluto: o homem é tão essencialmente diferente que existe uma lacuna entre ele e os animais, a qual não pode ser preenchida, dado o homem ser algo totalmente novo. A utilização da palavra "único" neste sentido absoluto implica a presunção - ou melhor, o juízo precipitado, o preconceito - de que é inútil procurar as raízes animais do comportamento humano. Ora, este divórcio entre a natureza animal e a natureza humana não é uma conclusão baseada numa análise objectiva do comportamento, mas um preconceito antropocêntrico que inviabiliza qualquer tipo de estudo comparado do comportamento. Tinbergen utiliza a palavra "único" no seu sentido relativo: o homem é único por ser notavelmente diferente dos animais, embora também ele seja um animal. E, usando uma frase orwelliana, afirma que «todos os animais são únicos, mas o homem é mais único do que os demais (animais)». Toda a conferência de Tinbergen é dedicada à descoberta daquilo que no homem é realmente único. O singular do homem não reside nas suas estruturas corporais, mas no seu comportamento: o seu corpo e as suas funções são em geral muito similares às dos demais mamíferos, razão pela qual a medicina pode estudar nos animais as funções orgânicas básicas e extrapolar para o homem com certo grau de confiança. Afirmar a singularidade do comportamento humano equivale a afirmar a singularidade do cérebro humano. O homem é único porque o seu cérebro é único e funciona de uma maneira única. Para apreender o que no homem é realmente único, o biólogo recorre ao processo evolutivo: o homem evoluiu, lenta e muito gradualmente, a partir de animais ancestrais que eram muito mais similares aos outros mamíferos do que o é o homem de hoje. Tudo o que o homem é e tudo o que faz agora desenvolveu-se, mediante uma série de pequenos passos evolutivos, a partir do que os seus antepassados foram e fizeram. O homem separou-se gradualmente do tronco dos macacos para se converter no que é hoje em dia, da mesma maneira que as espécies animais modernas intimamente relacionadas se desenvolveram a partir de um tronco comum. O estudo deste processo gradual de evolução divergente implica a utilização de métodos indirectos que permitem aos biólogos reconstruir uma série de processos, cada um dos quais foi único, e de distintas etapas da evolução biológica. As propriedades estruturais podem ser estudadas com base nos fósseis, os quais podem ser datados e colocados numa escala de tempo. O registo fóssil permite-nos dizer com segurança que as baleias procedem dos mamíferos ou que os morcegos transformaram em asas os seus membros anteriores. Estes exemplos mostram que a evolução nunca produz nada realmente novo, operando, em vez disso, mudanças graduais em algo que já existia. A evolução humana não escapa a este modo de actuação da selecção natural, ao qual François Jacob chamou bricolagem: «A evolução não tira do nada as suas novidades. Trabalha sobre o que já existe, quer transformando um sistema antigo para lhe dar uma nova função, quer combinando diversos sistemas para com eles arquitectar um outro mais complexo. O processo de selecção natural não se parece com nenhum aspecto do comportamento humano. Mas se quisermos lançar mão duma comparação, deverá afirmar-se que a selecção natural actua, não à maneira dum engenheiro, mas dum engenhoqueiro (bricoleur); um engenhoqueiro que ainda não sabe o que vai fazer, mas que recupera tudo o que lhe vem às mãos (...) para daí tirar algum objecto utilizável». Além do método paleontológico, o biólogo dispõe de um segundo método, menos directo do que o primeiro: a comparação. Assim, por exemplo, se não tivéssemos fósseis dos antecessores das baleias, poderíamos concluir que elas derivam dos mamíferos terrestres fazendo duas comparações: as baleias compartilham a maioria dos seus caracteres com os mamíferos, apesar da sua semelhança superficial com os peixes; e, como a maioria dos mamíferos são terrestres, concluímos que as baleias descendem de mamíferos terrestres. O método comparativo fornece os mesmos resultados que o estudo dos fósseis, sendo frequentemente utilizado nos casos onde os fósseis são escassos ou não existem. Como os fósseis carecem de comportamento, o estudo evolutivo do comportamento só pode ser realizado com recurso ao método comparativo, o qual é mais seguro quando as diferenças entre as espécies comparadas são pequenas, e menos seguro quando as diferenças são grandes. Quando procuramos as raízes animais do comportamento humano, devemos ter em atenção que as semelhanças entre espécies diferentes podem desenvolver-se de duas maneiras totalmente diferentes. Nas espécies aparentadas as semelhanças são frequentemente o resultado de uma ligeira divergência evolutiva a partir de caracteres ancestrais comuns. Mas noutros casos, sobretudo quando os grupos animais são diferentes, as semelhanças são o resultado de uma convergência por uma adaptação comum a uma função: os padrões específicos de comportamento desenvolvem-se neste caso de maneira convergente. No primeiro caso, as semelhanças (homologias) indicam uma origem comum, enquanto no segundo caso são superficiais (analogias). Tinbergen refere outras dificuldades com as quais se confronta o estudo comparado do comportamento animal e humano, em especial a terminologia, mas quando isola os traços típicos do comportamento humano, tais como por exemplo a aptidão para a cultura, a aptidão para aprender, a capacidade de raciocínio, a linguagem, o sentido da beleza, a ética e a religião, fá-lo de modo a compreender a herança animal do homem, dando exemplos de comportamentos animais que anunciam desde logo esses mesmos traços humanos. Aquilo que parece ser especificamente humano - o comportamento novo - já se encontra pré-figurado e elaborado de algum modo na cadeia da evolução filogenética, diminuindo assim a distância entre o animal e o homem. Lorenz utilizou repetidas vezes este argumento: «Se dizemos: o homem é um mamífero e, muito especialmente, um antropóide, temos razão. Mas se dissermos: o homem na realidade não é mais do que um mamífero, estamos a blasfemar». A etologia humana, cujo programa foi traçado nessa conferência de Tinbergen, rejeita o reducionismo ontológico, de resto já acusado de ser totalmente falso por Julian Huxley que forjou o conceito de evolução psico-social - a evolução cultural de Lorenz e Tinbergen - para explicar as mudanças adquiridas através da experiência individual e transmitidas à geração seguinte por tradição.

O objectivo deste estudo é aflorar alguns aspectos da controvérsia etológica em torno da agressão. Os livros que foram alvo dos ataques brutais dos auto-intitulados humanistas foram os seguintes: A Agressão: Uma história natural do mal de Konrad Lorenz (1963), O Imperativo Territorial, O Contrato Social e African Genesis de Robert Ardrey (1966, 1970, 1961), Adventures with the Missing Link de Raymond A. Dart (1959), O Zoo Humano e O Macaco Nu de Desmond Morris (1969, 1967), A Agressividade Humana e A Destrutividade Humana de Anthony Storr (1968, 1972), e Sobre a guerra e a paz nos animais e no homem de Nico Tinbergen (1968). Estas obras são de valor científico desigual e, por isso, colocá-las ao mesmo nível é intelectualmente desonesto: as obras de divulgação de Ardrey e Morris, escritas numa linguagem jornalística, são «inferiores» - em termos científicos - às obras dos restantes autores que divulgam os resultados da sua própria prática científica. Os detractores da etologia humana - mais tarde desenvolvida por Irenäus Eibl-Eibesfeldt - usaram essa estratégia retórica para atribuir a todos os autores referidos a mesma concepção da natureza humana, a do homem como assassino. Ora, esta noção foi explicitada por Ardrey a partir dos trabalhos de Dart: «Os arquivos da história humana, salpicados de sangue e entranhas destroçadas, desde os testemunhos egípcios e sumérios mais antigos até às atrocidades da Segunda Guerra Mundial, coincidem com o universal canibalismo primitivo, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou os seus equivalentes nas religiões formalizadas, com os costumes estendidos por todo o mundo de arrancar o couro cabeludo, caçar cabeças, mutilar corpos e demais actos necrófilos da humanidade, coincidem, repetimos, em proclamar essa comum paixão sanguinária, esse hábito predador, essa marca de Caim que separa dieteticamente o homem dos seus antropóides afins e o alia melhor com os mais letais carnívoros». Ardrey expressou esta ideia com mais simplicidade dizendo que «o ser humano, nos aspectos mais fundamentais da sua alma e do seu corpo, é ainda hoje a última palavra da natureza enquanto predadores armados, e a história humana deve ler-se em tais termos». O homem emergiu do fundo antropóide por uma única razão: «porque era um assassino». Hoje, graças aos trabalhos de campo de Jane Goodall sobre os chimpanzés na Tanzânia, sabemos que o "fundo antropóide" do qual emergiu o homem não é tão inocente como julgava Ardrey: os chimpazés organizam caçadas de membros de outros grupos de primatas e da própria espécie, matam-nos e comem a sua carne. Entre os primatas, não são apenas os homens que são filhos de Caim: os nossos "irmãos menores", os chimpanzés, também são filhos de Caim. Trata-se de um modelo de antropogénese que foi desenvolvido por S. L. Washburn & Ruth Moore (1980) na sua obra Ape into Human: A study of Human Evolution, e por S. L. Washburn & C. Lancaster (1968) no artigo The evolution of hunting, bem como por outros primatólogos (Claud A. Bramblett, 1976; Craig B. Stanford, 1999) e antropólogos (Lionel Tiger & Robin Fox, 1971), cuja ideia fulcral é a seguinte: «Somos filhos de Caim. A união do cérebro grande e do sistema carnívoro produziu o homem como possibilidade genética» (Ardrey). Eibl-Eibesfeldt (1970) escreveu um livro, Amor e Ódio, para combater a perspectiva de Dart e Ardrey, segundo a qual o modo de vida predador foi a condição necessária para a evolução da agressividade no seio da espécie humana, de modo a demonstrar que o conceito de assembleia dos instintos de Lorenz não permite a redução de tudo ao instinto de agressividade. O que Eibl-Eibesfeldt parece não ter compreendido é que o modo de vida carnívoro desempenhou um papel importante na antropogénese. Os modelos de antropogénese de Lorenz e de Dart-Ardrey são diferentes, mas não são incompatíveis. Infelizmente, Eibl-Eibesfeldt que escreveu importantes obras sobre etologia humana nunca deu especial destaque nelas à antropogénese, uma das grandes preocupações do seu mestre. Lorenz esboçou o seu modelo de antropogénese em diálogo com a antropologia filosófica, em especial com a abordagem antropobiológica de Arnold Gehlen, em dois importantes estudos: O Todo e a Parte na sociedade animal e humana (1950) e Psicologia e Filogénese (1954). No entanto, tanto quanto me lembro, o conceito de mentalidade de carnívoro, retomado de Dart, a propósito dos australopitecos, só aparece reavaliado na sua opus magnum que é A Agressão, cujos últimos três capítulos são dedicados exclusivamente ao estudo biológico do comportamento agressivo do homem. Lorenz comete o erro de pensar que os carnívoros profissionais desenvolveram mecanismos de inibição da agressividade intra-específica que os impedem de matar membros da sua própria espécie: a sociobiologia dos leões demonstrou que eles são capazes de matar os seus rivais e os seus descendentes menores no seu próprio meio natural. A teoria da natureza humana de Lorenz é deveras complicada para ser exposta aqui, tendo sofrido diversas remodelações e aperfeiçoamentos ao longo da sua vida intelectual.

O que estava em causa neste debate entre etólogos e "cientistas sociais" - entre os quais destaco Ashley Montagu (The Nature of Human Aggression, 1976) e Erich Fromm (Anatomia da Destrutividade Humana, 1973) - era saber se a agressão é inata ou adquirida. A teoria da agressão de Lorenz assenta em dois pilares fundamentais: o conceito hidráulico de agressão e a ideia de que a agressão está ao serviço da vida. Ninguém pode duvidar seriamente do carácter instintivo da agressividade humana: o homem não aprende o comportamento agressivo, como sugere Montagu; o homem é, por natureza, um ser agressivo, capaz de matar não só os outros animais (agressividade interespecífica) como também os seus congéneres (agressividade intra-específica), tanto os do seu grupo (agressividade intragrupal) como os dos outros grupos estranhos (agressividade intergrupal). Li A Agressão de Lorenz pouco depois de ter entrado no curso de Medicina, e, logo nessa altura, constatei que estava diante da obra-prima da literatura etológica, que fez estremecer os débeis alicerces das ciências sociais, em particular da psicologia behaviorista americana. É de todas as obras de Lorenz aquela que avança no caminho certo para integrar as ciências sociais, de orientação filosófica, no seio das ciências naturais, mediante um conceito que, sendo usado pelos dois campos disciplinares, permite unificá-los: o conceito de ritualização que Julian Huxley utilizou pela primeira vez, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando realizava os seus estudos pioneiros sobre o comportamento do mergulhão de crista, para designar certos modos de movimento que perderam no decurso da filogénese a sua função primitiva para se tornarem cerimónias puramente simbólicas. Graças a este conceito, no seu duplo sentido de ritualização filogenética e de ritualização cultural, Lorenz não só estabeleceu uma analogia produtiva entre a evolução biológica, cujos grandes construtores são a mutação e a selecção natural, e a evolução cultural, como também esboçou uma teoria natural da cultura e da sociedade - Lorenz distingue quatro grandes sistemas sociais: o bando anónimo, livre de qualquer agressividade, mas cujos membros não se conhecem individualmente e não mostram qualquer solidariedade social (1); a vida social e familiar das garças-gorazes e de outras aves que fazem ninho em colónias, vida inteiramente fundada na estrutura local do território a defender (2); a superfamília dos ratos, cujos membros se não reconhecem enquanto indivíduos mas pelo seu cheiro tribal, de tal modo que o seu comportamento social para com os membros da própria tribo é exemplar, enquanto combatem com ódio e persistência os congéneres que pertencem a outra tribo (3); e as sociedades, cujos membros não se combatem nem ferem mutuamente, porque há, entre indivíduos, laços de amizade e de amor que a isso se opõem (4) - que permite pensar o seu confronto perigoso com a «biologia». Eibl-Eibesfeldt, W. John Smith e Wolfgang Wickler deram contributos importantes no domínio das ritualizações, mas uma das obras mais interessantes é a de Pietro Scarduelli que compara os sistemas rituais humanos a partir da sua base filogenética. Apercebendo-se da ameaça que a etologia representava para o domínio dos letrados nas ciências sociais, cujo paradigma mais não é do que a teoria ambientalista, como lhe chama Eibl-Eibesfeldt, Fromm lamentou o facto de Lorenz ter escolhido como seu herói Darwin: «Para Lorenz, e para muitos outros, a ideia de evolução tornou-se a essência de todo um sistema de orientação e de devoção. Darwin tinha revelado a verdade derradeira quanto à origem do homem; todos os fenómenos humanos que pudessem ser explicados e abordados por considerações económicas, religiosas, éticas ou políticas tinham de ser entendidos do ponto de vista da evolução. Essa atitude quase religiosa em relação ao darwinismo é evidente no emprego que Lorenz faz da expressão "os grandes construtores", referindo-se à selecção e à mutação. Fala dos métodos e dos objectivos dos "grandes construtores" de modo muito parecido com a maneira como um cristão falaria dos actos de Deus. Emprega até mesmo o singular, o "grande construtor", chegando, dessa forma, mais perto da analogia com o conceito de Deus». Aqui está um exemplo da estratégia retórica seguida pelos detractores da etologia: acusar a qualidade idolatra do pensamento do seu fundador, em vez de discutir a própria teoria da agressão de uma forma séria e objectiva. E o mais engraçado é verificar que acusam Lorenz daquilo que eles próprios não conseguem explicar, em função da teoria do meio ambiente, que Lorenz demoliu em poucas frases: «Julgavam eles que as crianças a quem se poupasse todas as frustrações e a quem se fizesse sempre a vontade seriam menos neuróticas, mais bem adaptadas ao seu meio social e sobretudo menos agressivas. Mas um método de educação americano fundado nesta hipótese limitou-se apenas a mostrar que a pulsão agressiva, como muitos outros instintos, surge "espontaneamente" do coração do homem; o resultado desse método de educação foram crianças insuportáveis, insolentes e tudo menos não agressivas. O lado trágico desta tragicomédia revelou-se quando, depois de grandes, essas crianças abandonaram a família e se encontraram, já não frente a pais indulgentes, mas à opinião pública impiedosa, por exemplo ao entrarem para as universidades. Alguns psicanalistas americanos contaram-me que, sob a pressão de uma integração social duramente conquistada, muitos desses jovens se tornaram realmente neuróticos». Com o carácter espontâneo da agressividade encontramo-nos já no âmbito do conceito hidráulico de agressão, um dos pilares da teoria de Lorenz: «A ideia totalmente errada de que o comportamento animal e humano é, em primeiro lugar, reactivo e, portanto, mesmo que contenha também certos elementos inatos, modificável pela aprendizagem, é uma ideia que tem raízes profundas, difíceis de extirpar, no nosso conhecimento defeituoso dos princípios democráticos. Esses princípios, válidos em si mesmos, impedem-nos de admitir que os seres humanos não nasceram todos iguais e que nem todos têm idênticas probabilidades de se tornar cidadãos ideais. Além disso, durante vários decénios, a reacção, o "reflexo", é o único factor de comportamento que os psicólogos sérios estudaram, ao passo que abandonavam tudo o que é "espontaneidade" do comportamento aos vitalistas e à sua interpretação sempre um tanto mística da natureza». Para Lorenz, a agressividade humana é um instinto alimentado por uma fonte de fluxo ininterrupto de energia, e não - como pensam os amigos do reflexo - o resultado de uma reacção a estímulos externos, susceptível de ser modificada pela aprendizagem: Adrian, Paul Weiss, K. Roeder e sobretudo E. von Holst «revelaram-nos que o sistema nervoso central não precisa, para responder, de esperar pelos estímulos, tal como uma campainha precisa que lhe carreguem no botão. Ele pode produzir por si próprio os estímulos, o que na verdade dá uma explicação natural fisiológica do comportamento espontâneo dos animais e dos seres humanos». A energia específica destinada ao acto agressivo acumula-se continuamente nos centros nervosos responsáveis por este padrão de comportamento. Quando se acumula energia suficiente, de modo a aumentar a prontidão para a sua descarga, pode ocorrer um disparo, mesmo sem a presença de um estímulo externo. As experiências com casais de pombos realizadas por Wallace Craig «mostram que quando um comportamento instintivo - neste caso a dança de amor - é interrompido durante um tempo prolongado, o limiar dos estímulos que o provocam diminui. É um facto tão geral e que se produz com tal regularidade que a sabedoria popular o exprime dizendo: "À falta de melhor, come-se do que há". (...) A diminuição do limiar dos estímulos pode, em certos casos, aproximar-se de zero, ou seja, o movimento instintivo em questão pode iniciar-se sem ter havido qualquer estímulo exterior». Geralmente, o animal e o homem encontram estímulos que libertam a energia contida e recalcada do impulso, sem terem de aguardar passivamente pelo aparecimento dos estímulos adequados que o provocam. Eles procuram e até podem produzir os estímulos que libertam a energia armazenada, mediante o comportamento apetitivo (W. Craig): «O recalcamento de um movimento instintivo, produzido pela supressão durante tempo prolongado dos estímulos que o determinam, não tem apenas como resultado tornar o organismo mais pronto a reagir, mas provoca transformações muito profundas que o afectam no seu conjunto. Em princípio, todo o verdadeiro movimento instintivo a que se recusa a possibilidade de ab-reacção, tal como acabamos de descrever, pode ter como efeito pôr o animal num estado de agitação e fazê-lo procurar estímulos aptos a provocá-la». Assim, quando não encontram nenhum estímulo externo, a energia do impulso agressivo acaba por explodir, sendo posta em acção in vacuo, sem estimulação externa demonstrável (actividade no vazio). A agressão é, antes de tudo, uma excitação elaborada internamente que procura ser libertada sob a forma de um acto motor, independentemente da adequação dos estímulos externos: «O que dissemos basta já para fazer compreender que o recalcamento da agressão se torna tanto mais perigoso quanto mais intimamente os membros do grupo se conhecem, e quanto mais se compreendem e gostam uns dos outros. Posso confirmar por experiência que, em tal situação, todos os estímulos que podem desencadear a agressão e o comportamento combativo intra-específico sofrem um forte abaixamento do seu limiar. Coisa que se exprime subjectivamente pelo facto de se reagir contra os pequenos movimentos dos melhores amigos, o seu pigarro ou a maneira de se assoarem, como se se tivesse recebido uma bofetada dum brutamontes bêbedo. Entender o mecanismo fisiológico deste fenómeno extremamente penoso impede-nos de assassinarmos o nosso amigo, mas não minora o nosso sofrimento. A única solução para uma pessoa razoável é, no fundo, abandonar pé ante pé a barraca e, dirigindo-se a qualquer objecto, fazê-lo voar em estilhas com o maior barulho possível. Isto ajuda sempre um bocado e é aquilo a que se chama, na linguagem da fisiologia do comportamento, redirected activity, segundo Tinbergen». O modelo psico-hidráulico de Lorenz (1950) é uma construção teórica brilhante que nos permite explicar os comportamentos instintivos, entendidos como padrões específicos, estereotipados e herdados de comportamento. Lorenz (1981) reformulou-o mais tarde quando escreveu a sua grande síntese etológica, Os Fundamentos da Etologia, articulando-o com os modelos hierárquicos, para se aproximar do parlamento dos instintos, mas nunca ninguém - incluindo Thorpe (1956) - conseguiu traduzi-lo em linguagem neuronal adequada à neurobiologia (Cf. Gordon M. Shepherd, 1983; K. Roeder, 1955; Erich von Holst, 1969-70). O carácter a-fisiológico do modelo justifica-se pelo facto dele não implicar a existência de depósitos de líquido no sistema nervoso central: o seu objectivo era apenas fornecer uma maneira conveniente de descrever as propriedades gerais que deve ter o verdadeiro mecanismo neural, o qual já pode ser interpretado em termos aceitáveis pela actual neurofisiologia do sistema nervoso central. D. S. Lehrman (1953), R. A. Hinde (1970) e, em menor grau, Peter H. Klopfer (1985) criticaram a teoria do instinto de Lorenz e Tinbergen, desvirtuando o sentido dos conceitos e da sua relação estrutural no seio do sistema teórico: o primeiro procurando mostrar que o comportamento não pode ser separado em componentes inatos e aprendidos, distintos um do outro, de modo a rejeitar completamente a ideia de um comportamento inato, inscrito no genoma e não afectado por quaisquer factores ambientais; o segundo movendo um ataque contra os conceitos de accionador e de energia, de modo a rejeitar a ideia de comportamento instintivo, com os seus componentes congénito e accionado internamente; e o terceiro deslocando a etologia para o campo da ecologia do comportamento. No entanto, apesar destas críticas, Lorenz e Tinbergen não alteraram substancialmente a sua teoria.

O conceito hidráulico da agressão diz respeito ao mecanismo (causal) através do qual se produz a agressão: falta agora analisar o carácter adaptativo dos comportamentos agressivos: «Na natureza, a guerra está omnipresente. Os comportamentos e as armas ofensivas ou defensivas postas ao seu serviço atingiram tal perfeição que parece natural atribuí-los à pressão da selecção natural, agindo no interesse da espécie». A agressão está ao serviço da sobrevivência do indivíduo e da espécie: a agressividade que se manifesta por comportamentos programados geneticamente aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio, com a atitude belicosa do adversário, com a provocação de percepções dolorosas e com a época do cio. A agressão intra-específica favorece a sobrevivência da espécie de três modos, as suas três funções: «a repartição de seres vivos semelhantes no espaço vital disponível, a selecção efectuada pelos combates entre rivais e a defesa da prole». Na época do acasalamento, a agressividade incrementa-se e leva a que sejam os machos mais fortes a procriar, transmitindo-se assim aos descendentes as melhores variações qualitativas da espécie. A agressividade que aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio e que diminui com o seu afastamento, estimula a distribuição territorial e impede a superpopulação de um espaço reduzido, a qual - a densidade demográfica elevada - constitui um factor desencadeante de stress que prejudica as qualidades individuais. Quando despertada por percepções dolorosas, a agressividade fomenta a defesa contra agentes agressores passíveis de causarem danos consideráveis. Reduzindo-se ou anulando-se com a submissão do adversário, a agressividade não provoca destruições maciças nos indivíduos mais fracos das diversas espécies animais. Além disso, a agressão intra-específica permite estabelecer uma ordem social hierárquica que atenua os seus efeitos lesivos. A agressão assume esta função de conservação da espécie tanto mais efectivamente quanto mais a agressão mortal foi transformada em comportamentos, tais como ameaças simbólicas, rituais e comportamentos de submissão ou de apaziguamento, que preenchem a mesma função sem danificar a espécie ou mesmo sem a levar à auto-destruição. Pierre Karli (1987) procura desembaraçar-se das ideias de Lorenz tentando sublinhar algumas ambiguidades, contradições e lacunas que motivam a tomada de posição de Lorenz, duas das quais seriam a sua noção de comportamento agressivo e a confusão entre a função da agressão e a função da pulsão agressiva. Não vale a pena mostrar que a confusão não reside na obra de Lorenz, mas sim na obra do próprio Karli. Lorenz define a agressividade como sendo o instinto de combate do animal e do homem - o comportamento de rivalidade - dirigido contra os seus próprios congéneres. A agressão intra-específica está no centro da obra de Lorenz: os grandes arquitectos da evolução criaram mecanismos fisiológicos de comportamento, cuja função é impedir que os indivíduos da mesma espécie se lesem ou se matem uns aos outros. A solução mais engenhosa inventada pela evolução foi canalizar a agressão para vias mais inofensivas, através da reorientação do ataque graças ao processo de ritualização. A vinculação social que se desenvolveu sobre a base do comportamento de intimidação desvia a agressividade, sem no entanto a extinguir. Nas espécies armadas, a agressividade teria conduzido à sua destruição se não fosse o desenvolvimento de programas instintivos, as inibições instintivas, cujos mecanismos desencadeadores inatos se localizam no sistema nervoso central, que impedem a concretização da destruição da espécie. Geralmente, as lutas entre machos armados - meros combates rituais - não acabam com a morte do adversário, mas com uma atitude simbólica de derrota, anunciada por determinados gestos de submissão ou de humilhação. Ora, as espécies não armadas, como é o nosso caso, não desenvolveram inibições contra matar. É nesta passagem da agressão animal à agressão humana que a tese de Lorenz adquire toda a sua pertinência: «É a espontaneidade do instinto que o torna tão perigoso», sobretudo quando a sociedade não dá oportunidades - válvulas de escape - ao homem para descarregar a sua agressividade, a não ser talvez o futebol. A inteligência do homem - o ser desprovido de armas naturais - inventou armas mortíferas, desde os machados de pedra lascada dos tempos mais remotos até ao arsenal bélico sofisticado de hoje: a bomba H como expressão inteligente do instinto agressivo! Com a fabricação de armas, utilizadas nas guerras intertribais, a agressividade humana tornou-se maligna ou, se preferirem, patológica: os três últimos capítulos da obra de Lorenz são dedicados ao homem enquanto ser-em-perigo (Gehlen), isto é, enquanto ser ameaçado pelo perigo do fratricídio generalizado: «A única esperança está em que os actos especificamente humanos do pensamento racional e da moral responsável derivada dele possam salvar a Humanidade». Mas a reavaliação da sua teoria da agressividade humana implica levar em conta pelo menos dois outros estudos, Sobre o acto de matar o semelhante (1955) e Agressividade: Propriedade tendente à conservação da espécie ou fenómeno patológico? (1977), onde Lorenz afina a sua teoria da história natural da agressão, fazendo emergir os instintos sociais, resultantes do processo de ritualização, e estabelecendo novos princípios. A extensão deste estudo preparatório não permite levar a cabo essa reavaliação: a construção de Lorenz é extremamente complexa, englobando todos os aspectos das interacções sociais e repousando sobre a existência de uma pulsão agressiva geneticamente programada. Estou convencido de que podemos melhorar substancialmente a teoria de Lorenz, mas sem descartar os seus postulados fundamentais. Ler A Agressão é um bom título para um ensaio alargado sobre a teoria da agressão de Lorenz.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A Imagem do Homem na Sociobiologia de E. Wilson

Insectos Sociais: Abelhas
«On Human Nature (1978) é o último livro de uma trilogia que se integrou sem que eu tivesse consciência da sequência lógica até que esteve quase terminada. O capítulo final de The Insect Societies (1971) tinha por título "O prospecto de uma sociobiologia unificada". Nele sugeri que os mesmos princípios da biologia da população e da zoologia comparada que têm funcionado satisfatoriamente para explicar os rígidos sistemas dos insectos sociais poderiam ser aplicados ponto por ponto aos animais vertebrados. Com o tempo, disse, poderemos explicar tanto as colónias de térmitas como os bandos de macacos rhesus com um simples conjunto de parâmetros e uma teoria quantitativa. Incapaz de resistir à retórica da minha própria abordagem, dediquei-me a consultar a ampla e excelente bibliografia sobre o comportamento social dos vertebrados e escrevi Sociobiology: The New Synthesis (1975). No seu capítulo final, "O Homem: da sociobiologia à sociologia", expressei que os princípios biológicos que agora parecem funcionar razoavelmente bem para os animais em geral podem estender-se satisfatoriamente às ciências sociais. Esta sugestão criou um insólito interesse e uma grande controvérsia.» (Edward O. Wilson)

A sociobiologia é-me familiar desde que comecei a pensar pela minha própria cabeça, mas só comecei a ler a trilogia de Edward O. Wilson quando ingressei no curso de Medicina. Em Portugal, o hospício dos atrasados mentais, se quisermos estar a par do desenvolvimento das ciências, precisamos de aprender a ler em outras línguas, porque as editoras portuguesas não estão ao serviço da divulgação das grandes obras científicas. Passaram-se mais de quarenta anos desde a publicação da primeira obra da trilogia de Wilson e ainda não há tradução portuguesa de nenhuma das obras que a compõem. Não há neste triste e feio país uma política para a ciência: os políticos portugueses estão mais preocupados com a sua própria sobrevivência pessoal e familiar do que com o desenvolvimento integrado do país. Portugal é merda de burros, cheira mal e não merece mais a nossa atenção. A trilogia de Wilson é constituída por três obras: As Sociedades dos Insectos (1971), Sociobiologia: A Nova Síntese (1975) e Sobre a Natureza Humana (1978). Quando li a trilogia eu era marxista - à minha maneira, claro!, mas este facto não me levou a reagir negativamente ao nascimento da sociobiologia, como sucedeu com o Grupo de Boston - Grupo de Estudos Sociobiológicos da Ciência para o Povo, encabeçado por duas grandes figuras da moderna biologia das populações, Richard Lewontin e Richard Lewis. Devo confessar que a primeira obra da trilogia, As Sociedades dos Insectos, me seduziu completamente, fazendo-me reviver experiências da infância relacionadas com as colónias de térmitas africanas e as sociedades de certas espécies de formigas. Além disso, via anunciado no seu último capítulo uma espécie de projecto kafkiano de pesquisa das sociedades humanas. Wilson iniciou-me na entomologia: a minha curiosidade pelas sociedades dos insectos levou-me a estudar com algum detalhe a vida das abelhas e a sua linguagem (Karl von Frisch), a vida social das formigas (Wilhelm Goetsch) e, em especial, a organização social das abelhas Apis mellifera (John B. Free). Os verdadeiros insectos sociais distinguem-se como um grupo pela posse comum de três traços fundamentais: 1) os indivíduos da mesma espécie cooperam nos cuidados das crias; 2) há uma divisão reprodutiva do trabalho, com indivíduos mais ou menos estéreis a trabalhar em benefício dos companheiros de ninho fecundos; e 3) há um solapamento de pelo menos duas gerações nas etapas da vida em que são capazes de contribuir para o trabalho da colónia, pelo que a prole ajuda os progenitores durante algum tempo da sua vida. Estes três traços permitem definir a eusociabilidade como uma forma de vida em comum em formações sociais, que se estende por gerações e de carácter cooperativo, nas quais apenas um ou poucos indivíduos se reproduzem, enquanto os outros membros assumem várias tarefas auxiliares. A eusociabilidade surgiu - filogeneticamente - na linha principal dos insectos, quer entre os insectos de asas membranosas (Himenópteros), a que pertencem formigas, abelhas, abelhões e vespas, quer entre as térmitas (Isópteros), com base na constituição de castas funcionalmente diferenciadas, formações sociais muito complexas, algumas delas com um número enorme de indivíduos. O facto de apenas as rainhas se reproduzirem, sendo as obreiras obrigatoriamente estéreis, desafiava a força demonstrativa da teoria da selecção natural de Darwin, como ele próprio reconheceu em 1859: «Quero deter-me numa dificuldade particular que, a princípio, se me afigurou insuportável e verdadeiramente perniciosa para toda a minha teoria. Quero referir-me aos indivíduos sem sexo ou às fêmeas infecundas das colónias de insectos; pois estes seres sem sexo diferem muitas vezes consideravelmente tanto dos machos como das fêmeas férteis no que diz respeito à estrutura corporal e ao instinto, e, no entanto, por serem estéreis, não podem eles próprios transmitir a sua constituição característica através da reprodução. Podemos, pois, perguntar-nos como será possível harmonizar este caso com a teoria da selecção natural?» Esta "constituição característica" das obreiras é conhecida como altruísmo fenotípico: o conjunto de modos de comportamento cujo efeito consiste no aumento da aptidão de outros indivíduos. As obreiras das sociedade de insectos são altruístas no sentido em que, através da renúncia à reprodução própria, ajudam a respectiva mãe, a rainha, no seu trabalho reprodutivo. A harmonização tão desejada por Darwin foi realizada em 1964 por W. D. Hamilton, segundo o qual o altruísmo fenotípico obedece a um egoísmo genotípico. Este fenómeno é, nos himenópteros, uma consequência inevitável da sua haplodiploidia. Assim, por exemplo, nas abelhas, uma única fêmea por colmeia, a rainha, assegura a reprodução. As restantes fêmeas, aproximadamente 50 000 abelhas, que se atarefam na colmeia - alimentando as larvas, guardando a colmeia e indo buscar o néctar e o pólen - são obreiras estéreis. Alguns dos machos existentes nas colmeias fecundam a rainha, quando chega a altura, durante o voo nupcial. A rainha põe 1000 a 3000 ovos por dia e as larvas que se desenvolvem são mais do que irmãs das obreiras que renunciaram à reprodução. O pai das larvas é haplóide, isto é, possui um único conjunto de cromossomas em todas as células do seu corpo. Nos organismos diplóides, no momento da concepção, o pai fornece um conjunto de cromossomas e a mãe outro. Nas abelhas, os ovos postos pela rainha, que vão desenvolver-se para darem machos, não foram fecundados, recebendo um único conjunto de cromossomas fornecido pela mãe. Daqui resulta que em todos os espermatozóides que os machos adultos produzirem figurará um único conjunto de cromossomas, o que quer dizer que todos os machos haplóides transmitem à sua descendência a totalidade dos seus genes. Nos organismos diplóides, como é o caso da rainha, um progenitor só transmite aos seus filhos metade dos seus genes, sendo a outra metade fornecida pelo outro progenitor. É por isso que as obreiras não são simples irmãs das lavras que criam, ligadas a estas por um coeficiente de parentesco de r = 1/2; são antes as suas "super-irmãs", ligadas a elas por um coeficiente de parentesco de r = 3/4. Ou seja: as obreiras são, em média, mais estreitamente aparentadas umas com as outras (r = 0,75) do que o seriam com os próprios filhos (r = 0,5). Deste modo, segundo o princípio da selecção de parentesco, o altruísmo das obreiras estéreis contribui para o êxito reprodutivo, obedecendo ao princípio da maximização da aptidão assente nos genes egoístas. O fenómeno da haplodiploidia remete-nos para outro aspecto interessante: a rainha deposita em cada célula germinativa cópias de metade do seu património hereditário, pelo que é aparentada por igual com todos os seus descendentes, sejam eles filhas ou filhos (r = 0,5). Mas, se a rainha investe em igual proporção em ambos os sexos, o mesmo não se passa com as irmãs, que têm em comum 75% do seu património hereditário, compartilhando apenas 25% deste com os seus irmãos haplóides. Assim, as obreiras podem aumentar mais a sua aptidão indirecta, se ajudarem a produzir mais irmãs do que irmãos, devendo o seu investimento ocorrer numa relação de 3 para 1 a favor das irmãs. Tivers & Hare (1976) mediram as prestações de cuidados dispensados às posturas por parte de obreiras de diferentes espécies de himenópteros e concluíram que elas investem quase três vezes mais na descendência feminina do que na descendência masculina. Estes resultados corroboram a hipótese de Hamilton, segundo a qual as colónias de heminópteros surgiram através da selecção de parentesco: as obreiras perseguem os seus próprios interesses reprodutivos, sendo a selecção de parentesco o mecanismo evolutivo que conduz ao êxito a sua estratégia singular de investimento exclusivamente indirecto. Convém dizer que a haplodiploidia não é o único factor que contribui para a evolução de castas de insectos estéreis, mas no caso relatado o sistema "rainha + casta de obreiras estéreis" surge acompanhado por um sistema genético haplodiplóide, factor suficiente para explicar a complexidade do seu sistema social.

Edward O. Wilson utiliza a selecção de parentesco para explicar o surgimento da homossexualidade humana, sobretudo da homossexualidade masculina, que, como sabemos hoje, é determinada geneticamente: «Há uma forte possibilidade de que a homossexualidade seja normal no sentido biológico. Que seja uma conduta claramente benéfica que surgiu como um elemento importante na organização social humana primitiva. Os homossexuais podem ser os portadores genéticos de alguns dos raros impulsos altruístas da humanidade». Wilson destaca sobretudo o carácter homófilo da atracção sexual por pessoas do mesmo sexo: «Esta especial propriedade sexual homófila pode ser a chave da importância biológica da homossexualidade humana. A homossexualidade é sobretudo uma forma de estabelecer vínculos. É congruente com a maior parte do comportamento homossexual como mecanismo que consolida relações. A predisposição para ser homófilo poderá ter (e tem) uma base genética, e os genes poderão ter-se difundido nas sociedades primitivas de caçadores-colectores por causa da vantagem que conferiam a quem os possuísse». A questão que fica por resolver é a seguinte: Como podem os genes que predispõem para a homossexualidade difundir-se através da população, se os homossexuais não têm filhos? Wilson avança com a hipótese de selecção de parentesco para explicar a origem da homossexualidade, segundo a qual os parentes mais próximos dos homossexuais podem ter mais filhos como resultado da sua presença: «Os membros homossexuais das sociedades primitivas ajudavam os membros do mesmo sexo, quer a caçar e a colectar, quer em ocupações mais domésticas nas povoações humanas. Livres das obrigações especiais dos deveres paternos, estavam em posição de operar com especial eficiência para ajudar os seus parentes mais próximos. Talvez tenham adoptado papéis de adivinhos, xamãs, artistas e conservadores do conhecimento tribal. Se os parentes - irmãos, irmãs, sobrinhas, sobrinhos e outros - foram beneficiados por taxas mais elevadas de sobrevivência e reprodução, os genes que estes indivíduos partilhavam com os especialistas homossexuais aumentaram a expensas dos genes alternativos. Inevitavelmente, alguns desses genes foram aqueles que predispunham os indivíduos para a homossexualidade. Uma minoria da população adquiriu consequentemente o potencial para desenvolver preferências homofílicas, pelo que foi possível que os genes homossexuais continuassem a difundir-se através das linhagens de descendência colateral, ainda que os próprios homossexuais não tivessem filhos». Utilizei esta explicação da origem da homossexualidade masculina para exemplificar o conceito fulcral da sociobiologia: a selecção de parentesco. O primeiro capítulo de Sociobiology intitula-se A Moralidade do Gene e encontramos nele a definição do princípio do egoísmo genético: «No sentido darwinista, o organismo não vive para si próprio. A sua função primordial nem sequer é reproduzir outros organismos; reproduz genes e serve-lhes de veículo temporário. Cada organismo gerado por reprodução sexual é único, um subconjunto acidental de todos os genes que constituem a espécie. A selecção natural é o processo através do qual alguns genes obtêm nas gerações seguintes uma representação superior à dos outros genes situados na mesma posição do cromossoma. Quando em cada geração se produzem novas células sexuais, os genes vitoriosos separam-se e voltam a juntar-se para produzir novos organismos que, em média, contêm uma proporção mais elevada desses mesmos genes. Mas o organismo individual é apenas o seu veículo, um elemento com recursos engendrados para os preservar e propagar com o mínimo possível de perturbações bioquímicas. O famoso aforismo de Samuel Butler, segundo o qual uma galinha não é mais do que o meio utilizado pelo ovo para pôr outro ovo, foi modificado: o organismo é o sistema que possui ADN para fabricar mais ADN. Mais ainda, o hipotálamo e o sistema límbico estão desenhados para perpetuar o ADN». Wilson recupera o aforismo de Butler substituindo o ovo pelos genes ou ADN, de modo a definir o organismo como o meio utilizado ou inventado pelos genes para se multiplicarem. Esta ideia de organismo como veículo dos seus genes - atribuída geralmente a Richard Dawkins - já se encontra explicitada na obra de Wilson. As bases essenciais da sociobiologia que Wilson expõe de forma sistemática já tinham sido lançadas por outros biólogos, dos quais se destacam W. D. Hamilton, John Maynard-Smith, Robert Trivers, R. D. Alexander e Michael Ghiselin. Esta alteração da noção de organismo permite a Wilson clarificar o conceito de selecção de parentesco: «Assim, no processo de selecção natural, qualquer mecanismo que insira uma proporção maior de certos genes nas gerações seguintes chegará a caracterizar as espécies. Uma classe de tais mecanismos favorece o prolongamento da sobrevivência individual. A outra favorece superiores condições de acasalamento e de cuidados da prole resultante. Quando um organismo acrescenta um comportamento social mais complexo às técnicas de reprodução dos genes, o altruísmo aumenta-se e aparece, a prazo, de forma exagerada. Isto leva-nos ao centro do problema teórico da Sociobiologia: como pode o altruísmo, que por definição diminui o êxito individual, desenvolver-se por selecção natural? A resposta é por parentesco: se os genes causantes do altruísmo são compartilhados por dois organismos por causa de uma ascendência comum e se o acto altruísta de um organismo aumenta a contribuição conjunta destes genes à próxima geração, a propensão para o altruísmo propaga-se ao substrato de genes».

O que me seduziu nesta hipótese da selecção de parentesco? Precisamente aquilo que chocou a comunidade científica: a possibilidade da sociedade humana ser determinada pelas mesmas leis que regem as sociedades dos insectos. A imagem do homem como um insecto, já presente no universo de Kafka, adquiria assim um estatuto científico. É preciso compreender bem esta analogia: Wilson não está a sugerir que as sociedades humanas são formigueiros e que o homem é um mero insecto. O pai da sociobiologia é um homem dotado de um grande potencial filosófico, que se revela, em toda a sua força, em quatro das suas obras mais recentes, Biophilia (1984), The Diversity of Life (1992), In Search of Nature (1996) e Consilience (1998): Wilson forjou o conceito de biofobia para designar o temor e o receio que os cientistas sociais, humanistas e alguns filósofos nutrem pela biologia. Para debelar esta doença do espírito científico que perturba a caminhada triunfal para a unificação do conhecimento científico, isto é, para a fusão das duas culturas, a cultura científica e a cultura humanista, Wilson elaborou o conceito de antidisciplina, em conformidade com a problemática do materialismo científico, cuja estratégia fundamental de investigação é reducionista. Um cientista completo é aquele que estuda três matérias: a sua disciplina, a antidisciplina do nível inferior e a matéria para a qual a sua especialidade funciona como antidisciplina. A noção de antidisciplina pressupõe a estratificação da realidade - o labirinto do mundo real entendido como emaranhado borgiano de possibilidades quase infinitas! - em níveis de organização de complexidade crescente, a qual pode ser analisada - global ou ao nível de cada estrato, a célula por exemplo, em termos de consiliência por redução (dissecar a célula nos seus elementos: organelas e moléculas) ou de consiliência por síntese (reconstituição da célula). Assim, por exemplo, no caso do químico, a sua disciplina é a química, a antidisciplina de nível inferior é a física e a matéria para a qual a sua especialidade funciona como antidisciplina são os aspectos físicos da biologia. A unificação da ciência perseguida por Wilson implica necessariamente o estudo da natureza humana como parte integrante das ciências naturais, na tentativa de integrar as ciências naturais com as ciências sociais e as humanidades. A noção de antidisciplina acentua a relação antagónica que existe entre os campos de estudo de níveis contíguos de organização que são os primeiros a interagir: a biofobia dos cientistas sociais justifica-se pelo facto da biologia ser a antidisciplina das ciências sociais, cujo futuro depende da sua integração na unidade do conhecimento científico. A trilogia de Wilson mais não é do que a inscrição da sua caminhada nessa direcção, cuja sequência lógica vai das sociedades dos insectos às sociedades dos vertebrados e das sociedades animais às sociedades humanas. O momento crucial dessa caminhada rumo à unidade da ciência é a criação da sociobiologia em 1975: «A Sociobiologia define-se como o estudo sistemático das bases biológicas de todo o comportamento social». A sua função primordial é estruturar os fundamentos das ciências sociais, de modo a incluí-las na Síntese Moderna, cujos pilares são formados pela ecologia, biologia das populações e sociobiologia. Wilson codificou a sociobiologia como um ramo da biologia evolutiva e, particularmente, da biologia das populações: a unificação da teoria da sociobiologia ocorreu quando se uniram os mesmos parâmetros e as mesmas teorias quantitativas para analisar ao mesmo tempo as colónias de térmitas e os grupos de macacos rhesus. A estratégia adoptada por Wilson para consumar o seu projecto da sociobiologia unificada consistiu em privilegiar mais as semelhanças do que as diferenças entre as sociedades de invertebrados e as sociedades de vertebrados. Assim, por exemplo, comparando as térmitas com os macacos, detectou as seguintes semelhanças: «Ambos os grupos cooperativos ocupam territórios. Os membros comunicam uns aos outros a fome, o alarme, a hostilidade, a consciência de casta e o status reprodutivo, por meio de sinais não sintácticos da ordem de 10 a 100. Os indivíduos têm consciência intensa da diferença entre membros do grupo e forasteiros. O parentesco desempenha um papel importante na estrutura do grupo e, provavelmente, serviu, em princípio, de principal força geradora da sociedade. Em ambas as sociedades há uma divisão do trabalho bem delimitada, embora nos insectos tenha uma maior componente de reprodução. Os detalhes da organização desenvolveram-se através de um processo de optimização evolutiva de precisão desconhecida, durante o qual se conferiu uma quantidade adicional de aptidão aos indivíduos com tendências cooperativas, pelo menos em relação aos parentes». Esta estratégia científica de privilegiar as semelhanças em vez das diferenças foi de tal modo produtiva que as previsões de Wilson se confirmaram: a formulação da teoria sociobiológica acabou por absorver a biologia do comportamento, com a qual tinha no passado uma relação filial. Ou melhor, tanto a biologia do comportamento como a etologia foram absorvidas pela neurofisiologia e pela fisiologia sensorial, por um lado, e pela sociobiologia e pela ecologia do comportamento, por outro lado. A revolução sociobiológica já estava em marcha em 1975, faltando-lhe conquistar plenamente o território das ciências sociais, cuja estratégia era privilegiar mais as diferenças do que as semelhanças entre as sociedades humanas e as sociedades animais. E eis que em 1978 surge On Human Nature, onde Wilson desenvolve os conceitos já esboçados no último capítulo de Sociobiology. A passagem da sociologia à sociobiologia segue um caminho que ainda não foi verdadeiramente pensado, embora Wilson o tenha indicado: «Estas são as perguntas centrais que o grande filósofo David Hume considerou de indiscutível importância: Como trabalha a mente?, e, ainda mais importante, Por que trabalha dessa maneira e não de outra?, e, a partir destas considerações, Qual é a natureza do homem?» Wilson afirma logo no prefácio que o seu livro - On Human Nature - não é «uma obra científica», mas «uma obra sobre ciência». A integração das ciências sociais na sociobiologia parece ter exigido uma longa incursão filosófica: a elaboração de uma teoria da natureza humana. Mas logo nas primeiras páginas aparecem frases que revelam a ideia directora dessa teoria: «somos biológicos e as nossas almas não podem voar livremente», ou então: «o intelecto não foi construído para compreender os átomos ou ainda para se compreender a si próprio, mas para fomentar a sobrevivência dos genes humanos». Wilson segue dois caminhos para resolver as questões formuladas por David Hume. Ambos os caminhos visam estabelecer o biograma humano ou a biogramática do homem, isto é, fazer o inventário dos comportamentos sociais geneticamente programados, graças aos quais os seres humanos aumentam a sua aptidão darwiniana. O primeiro caminho consiste em comparar o homem com as outras espécies de primatas e em registar os comportamentos com elas compartilhados a título permanente. Este caminho levou Wilson a identificar o comportamento dominante como sendo um comportamento geneticamente programado, partilhado pelo homem e pelos restantes primatas: os grupos de primatas - bem como os mamíferos e as aves - tendem a estabelecer uma hierarquia. Os indivíduos lutam uns com os outros para se apropriarem de uma fonte de alimento, de uma zona de repouso ou de um parceiro sexual. Os machos mais fortes tendem a ganhar, como é evidente, estabelecendo-se assim uma hierarquia mais ou menos estável, em função da qual o indivíduo dominante - o chamado macho alfa - tem, em geral, prioridade sem que haja novos combates, em todas as circunstâncias em que estejam em jogo recursos alimentares ou parceiros sexuais. Porém, o macho alfa é periodicamente desafiado por jovens machos que chegam à maturidade e um destes machos acaba por lhe roubar a posição dominante. O segundo caminho consiste em examinar quais são as características humanas universais que se encontram em todas as sociedades humanas, em todas as latitudes e em todas as épocas, desde a pré-história. Este caminho permite-lhe identificar alguns traços humanos universais, tais como por exemplo a aptidão para o intercâmbio de bens materiais, a tendência para a formação da família nuclear, no seio da qual a mulher está geneticamente programada para ficar em casa e o homem para ir à caça, a importância dos sistemas de parentesco, graças aos quais os parentes podem entreajudar-se em caso de fome ou de dificuldades, enfim a territorialidade e o tribalismo, programas genéticos pelos quais os grupos humanos se apropriam de um território que defendem contra grupos concorrentes, definindo-se assim como tribos rivais, donde decorrem a guerra e a xenofobia. Outro traço característico da espécie humana que merece especial destaque é a sua aptidão para a cultura. Charles Lumsden e Edward Wilson elaboraram em 1983 - Promethean Fire - uma teoria da cultura, denominada teoria da co-evolução gene-cultura, encarada desde logo como uma extensão do processo mais geral de evolução por selecção natural, cujos princípios fundamentais são os seguintes: «A cultura é criada pela mente colectiva, e cada mente por sua vez é o produto do cérebro humano geneticamente estruturado (e programado). Mas a ligação é flexível, num grau ainda na maior parte não medido. A ligação também é tortuosa: os genes prescrevem regras epigenéticas, que são as vias e regularidades neurais no desenvolvimento cognitivo pelas quais a mente individual se constitui. A mente cresce do nascimento à morte absorvendo partes da cultura existente disponíveis para ela, com selecções guiadas por regras epigenéticas herdadas pelo cérebro individual. Como parte da co-evolução gene-cultura, a cultura é reconstruída em cada geração colectivamente nas mentes dos indivíduos. Quando a tradição oral é suplementada pela escrita e arte, a cultura consegue crescer indefinidamente e pode até cobrir gerações. Mas a influência determinante fundamental das regras epigenéticas, sendo genética e inextirpável, permanece constante.  Alguns indivíduos herdam regras epigenéticas que lhes permitem sobreviver e reproduzir-se melhor no ambiente e cultura circundantes do que indivíduos que carecem dessas regras, ou que pelo menos as possuem em menor grau. Mas isso significa, através de várias gerações, que as regras epigenéticas mais bem-sucedidas se disseminaram pela população juntamente com os genes que prescrevem as regras. Em consequência, a espécie humana evoluiu geneticamente por selecção natural tanto no comportamento como na anatomia e fisiologia do cérebro. A natureza da corrente genética e o papel da cultura podem agora ser melhor compreendidos nos seguintes termos: Certas normas culturais também sobrevivem e se reproduzem melhor do que normas concorrentes, fazendo a cultura evoluir numa trilha paralela à evolução genética e geralmente muito mais rápida. Quanto mais rápido o ritmo da evolução cultural, mais frágil a conexão entre gene e cultura, embora nunca se rompa totalmente. A cultura permite um rápido ajustamento a mudanças no ambiente através de adaptações sintonizadas, inventadas e transmitidas sem uma prescrição genética precisa correspondente. Neste aspecto, os seres humanos diferem fundamentalmente de todas as outras espécies animais».

A teoria da sociobiologia formulada por Wilson foi aplaudida por alguns antropólogos, como por exemplo Lionel Tiger, Robin Fox, Irven de Vore e Napoléon Chagnon, que associaram os seus nomes ao desenvolvimento da sociobiologia. Wilson elabora a sua teoria da natureza humana aproximando o homem do animal, através de dois enunciados. O primeiro afirma que «as espécies foram criadas pelo acaso genético e pelas necessidades ambientais», e o segundo nega toda a finalidade aos seres vivos, a não ser a finalidade puramente biológica de se perpetuarem: «A espécie (humana) carece de qualquer objectivo externo à sua própria natureza biológica. (...) Nenhuma espécie, incluindo a nossa, possui um propósito mais além dos imperativos criados pela sua história genética». Daqui resulta que tanto o cérebro como a mente mais não são do que mecanismos que promovem a sobrevivência e a multiplicação dos genes. Estes dois enunciados não permitem outorgar ao homem uma posição singular e privilegiada na hierarquia zoológica: «Nenhum vício intelectual é mais lesivo do que o desafiante antropocentrismo egoísta». O homem é, portanto, um produto predominantemente genético, cujo biograma é constituído de comportamentos sociais determinados pelos genes: «a conduta social do homem descansa sobre bases genéticas», isto é, «a conduta humana está organizada por certos genes que compartilhamos com as espécies estreitamente relacionadas com a nossa», embora haja outros que «são únicos da espécie humana». As formas mais estereotipadas dos comportamentos humanos «são de carácter mamífero e, ainda mais especificamente, primata»: «Não estamos sozinhos (no universo), temos uma espécie de irmãos menores. (...) Os chimpanzés estão suficientemente próximos de nós nos detalhes da sua vida social e propriedades mentais». Esta proximidade homem-chimpanzé leva-nos a considerar os nossos "irmãos menores" como seres «quase humanos em certos domínios onde antes se julgava inadequado fazer qualquer comparação». A integração da natureza humana no seio das ciências naturais não deixa de lado nenhuma ciência social: a ética e a religião podem ser - e foram - explicadas biologicamente por Wilson. A sua teoria biológica da moral destaca sobretudo o comportamento altruísta, o qual é explicado como uma forma sofisticada de egoísmo genético: o homem que defende, inclusivamente com o sacrifício da sua vida, o bem-estar, a honra, ou o território, da sua tribo, da sua família ou da sua nação, «é um homem que se defende a si próprio», mais precisamente os seus genes egoístas, de modo a garantir as condições óptimas da sua multiplicação. Wilson não se atrapalha diante da figura da madre Teresa de Calcutá, cujos comportamentos altruístas obedecem a imperativos biológicos: «a santidade não é tanto a hipertrofia do altruísmo humano mas sobretudo a sua coisificação». As práticas religiosas constituem traços universais da cultura humana: os homens têm a predisposição para acreditar em mitos religiosos. A razão de ser darwiniana desta «necessidade de acreditar» geneticamente programada na espécie humana parece ser a seguinte: a sua função é a de preparar o indivíduo para se sacrificar pela fé, a qual mais não é do que a fé numa ideia elaborada pelo seu grupo. O sacrifício do indivíduo possuidor de fé ajuda o seu grupo, ou melhor, os genes do seu grupo, a sobreviver e a multiplicar-se. Além disso, a prática religiosa confirma a sua própria identidade, descreve a realidade com imagens e definições facilmente compreensíveis, e dá-lhe razões para viver. As religiões, bem como as outras instituições humanas, evoluíram no sentido de aumentar o bem-estar daqueles que as praticam. Mas se a biologia é destino, «o que sucede com o livre arbítrio?» É provável que a liberdade humana seja apenas uma ilusão, mas Wilson justifica-a dizendo que o cérebro humano é uma estrutura demasiado complexa e afectada por muitas variáveis para que se possa predizer as suas decisões. Na impossibilidade técnica de uma predição do comportamento humano, podemos afirmar que o homem é livre e responsável, no sentido em que é dotado de um reportório muito vasto e complicado de movimentos, reacções e gestos que fazem dele um ser livre em comparação com a moeda lançada ao ar e com o insecto lançado pela mão. A imagem do homem dada pela sociobiologia chocou a sensibilidade dos agentes da cultura humanista, provocando controvérsias por toda a parte. A despeito de todas as suas particularidades específicas, o homem tem mais de animal do que se possa pensar. O que os detractores de Wilson que o acusam de ser um "darwinista social" esquecem é que lembrar que o homem é um animal sujeito às leis da evolução não implica negar que o homem é mais do que um animal. Wilson não nega as propriedades emergentes e as diferenças, embora a sua estratégia tenha sido apreender as similitudes em vez das diferenças, para poder integrar as ciências sociais no quadro da teoria sintética da evolução. A publicação de Sociobiology em 1975 desencadeou vagas de protesto que fazem recordar as tempestades do século XIX contra Darwin. Os dois movimentos de indignação a respeito das teorias evolucionistas partilham uma semelhança: ambos foram provocados pela afirmação da proximidade entre o homem e o animal. Darwin afirmava que «o homem descende do macaco», e Wilson defende que a sociedade humana é determinada pelas mesmas leis que regem as sociedades animais. Mas há duas diferenças entre Darwin e Wilson, pelo menos na perspectiva dos críticos ferozes deste último. A primeira diferença apontada é a seguinte: Darwin foi confrontado pelos seus adversários com a autoridade do Verbo revelado, enquanto Wilson que procede como se o homem não fosse senão um animal é desmentido pela afirmação de que o homem não é irrevogavelmente determinado pela sua biologia. A segunda diferença apontada situa-se ao nível das consequências: a afirmação de Darwin de que o homem surgiu na Terra por causa do mecanismo da evolução colocava uma questão susceptível de diversas respostas: Donde vem a sua consciência moral, se não foi criado por Deus? Como foram elaboradas diversas soluções, umas materialistas, outras teológicas, a concepção darwinista da origem do homem parece não colocar limites à sua natureza, mas o mesmo não pode ser dito em relação às concepções sociobiológicas que reduzem o homem a uma «máquina para a sobrevivência dos genes» (Richard Dawkins). Ora, não basta apresentar a sociobiologia como uma espécie de caução científica da ordem social existente, para refutar a sua teoria. Quase todos os conceitos sociobiológicos que feriram a sensibilidade dos reformadores sociais apontam no sentido da fragilidade das reformas sociais operadas nas sociedades ocidentais. A obra científica de Wilson, bem como a sua luta contra a destruição da biodiversidade, quebra o consenso instalado em torno do pensamento único ou do "politicamente correcto", e nisso ela consegue ser mais revolucionária do que as teorias dos seus adversários de Esquerda. A natureza humana, a biogramática do homem, tem efectivamente limites, que quando ultrapassados pela acção irracional do homem podem gerar uma terrível revolta da natureza. Direi a título de provocação que os conceitos sociobiológicos funcionam de modo materialista, denunciado o carácter ilusório de certas ideias que moldaram as sociedades modernas. A actual crise financeira e económica coloca à luz do dia as mentiras do grande consenso. A igualdade entre os sexos resultante do movimento de libertação das mulheres é a primeira grande mentira da conspiração do silêncio: ela viola o princípio sociobiológico da dominação dos homens relativamente às mulheres inscrita no nosso património genético. Wilson não diz que o homem não pode tentar ir além das leis da sua biogramática: o homem pode violar a sua biogramática mas paga um preço. O preço que estamos a pagar pela igualdade bizarra dos sexos - reparem nesta sequência de equações absurdas: Homem = Mulher, Anatomia Masculina = Anatomia Feminina, Fisiologia Masculina = Fisiologia Feminina, Psicologia Masculina = Psicologia Feminina, Sociabilidade Masculina = Sociabilidade Feminina, e no seu resultado fatal: liquidificação da sócio-sexualidade, promiscuidade sexual, desemprego, queda fatal da natalidade, violência doméstica, etc. - pode ser avaliado e medido em todos os seus aspectos. As guerras não se deixaram de fazer porque os reformadores sociais resolveram negar que elas são a consequência inevitável de um instinto tribal de apropriação de um território e de um instinto guerreiro ao serviço da propagação dos genes. A invasão da Líbia e a gula imperial da Alemanha estão aí para reforçar este conceito sociobiológico. Mas o alvo da crítica é o conceito fulcral da sociobiologia: a selecção de parentesco entendida como «a selecção natural de genes baseada nos seus efeitos sobre os seus portadores mais os efeitos de presença dos genes em todos os seus parentes genéticos, inclusive pais, filhos, irmãos, primos e outros ainda vivos e capazes de se reproduzir ou de afectar a reprodução de parentes consanguíneos». Este conceito que está na base do altruísmo permite explicar os comportamentos que visam assegurar a propagação dos genes comuns aos parentes consanguíneos: o homem sacrifica-se pelos seus parentes próximos. Ora, a crítica dos radical scientists viu no altruísmo de parentesco a justificação ideológica do "racismo científico", na medida em que o seu corolário é o "ódio" por quem não se parece connosco. Explicar o receio pelo forasteiro não é a mesma coisa que defender o "racismo", assim como explicar a guerra ou as diferenças sexuais não é a mesma coisa que fazer a apologia da guerra ou do "sexismo". A sociobiologia limita-se a apontar os limites da natureza humana e a mostrar os perigos que resultam da sua violação. Estes três exemplos são suficientes para mostrar que a crítica dirigida à sociobiologia pelo pensamento de Esquerda (lunática) lhe pode ser devolvida: ao realizar reformas que ultrapassaram os limites biológicos da natureza humana, o pensamento reformista restituiu o homem à sua mais terrível animalidade, em vez de melhorar a sua humanidade e de contribuir para a construção de um mundo melhor. O pensamento de Esquerda tem alimentado estupidamente o preconceito anti-biológico e anti-genético. A verdade é que esta biofobia afastou-o das grandes descobertas científicas: o pensamento de Esquerda tornou-se nas últimas décadas avesso à ciência e à modernidade; ele é actualmente o lugar da grande mentira que ameaça mergulhar o mundo na catástrofe. A ilimitação que promoveu é hoje a nossa maior limitação: a filosofia de Marx precisa urgentemente de uma nova antropologia fundamental que faça coincidir os limites do seu projecto político com os limites da natureza humana. O impulso nivelador não só não resolveu o problema das desigualdades sociais como também privou o animal humano da sua humanidade. A resistência à mudança encontra-se na própria natureza humana: é bom pensar nisto antes de sonhar com mundos melhores. A sociobiologia é uma espécie de antídoto contra o totalitarismo subjacente às utopias que pressupõem a maleabilidade infinita da natureza humana, as quais, em nome de um mundo melhor, promovem a programação mais terrível do homem, incluindo a sua programação neuro-química e neuro-farmacológica. 


Adenda. Resolvi realizar uma pesquisa sobre as controvérsias sociobiológicas: estou a estudar o material que me foi facultado e sobre o qual tenho a intenção de escrever um texto, A Sociologia - ou Guerra - da Sociobiologia. Tal como a Filosofia, a ciência é um campo de batalha, onde os novos paradigmas são discutidos não em função dos seus efeitos de conhecimento mas dos seus efeitos políticos. Não sou completamente contra este tipo de debate, mas no caso da sociobiologia penso que os radical scientists foram demasiado longe nas suas acusações contra a sociobiologia e contra Wilson, ao ponto de terem realizado simpósios e um filme - Sociobiology: doing what comes naturally - que tem por objectivo caricaturar e falsificar os pontos de vista sociobiológicos. A sociobiologia não é, efectivamente, uma teoria fascista, racista e sexista. O simpósio sobre sociobiologia mais sombrio realizou-se em 1978 (14 e 15 de Fevereiro), sendo organizado pela American Association for the Advancement of Science (AAAS). Quando Wilson se aproximava da tribuna para apresentar a sua comunicação, quinze membros do Comité International contre le Racisme, entre os quais a feminista Linda Green, atiraram-se contra ele, insultaram-no, lançaram-no por terra e depois despejaram-lhe um balde de água fria sobre a cabeça, colocando à sua frente uma faixa que lhe conferia a qualificação de «sábio fascista e racista do ano». Um comportamento animalesco que confirma uma das teses da sociobiologia! (Um dia será necessário fazer um balanço final do feminismo e do seu impacto nocivo sobre a ciência e a filosofia: o feminismo é pura ideologia que propaga a mentira! A degradação acelerada do ensino está associada a ideologias deste tipo.) Reconheço o aproveitamento político e ideológico que foi feito da sociobiologia, em prol do status quo, com o aparecimento de uma teoria bioeconómica - difundida por Business Week na edição de 10 de Abril de 1978 - que procurava mostrar a inviabilidade da vitória dos regimes marxistas. Condeno-o, mas isto não me impede de reconhecer a novidade da sociobiologia. 

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Entrei em Depressão

Cidade do Porto: Caves do Vinho do Porto em Gaia
Cidade do Porto numa noite radiante e calma
Cidade do Porto vista da Serra do Pilar

Nem o Vinho do Porto me livra deste vazio existencial que sou neste momento. Sempre que sonho com cenários sobrenaturais a minha alma fica vazia quando acorda. Anseio pela noite estrelada do Porto. Nada melhor do que mergulhar nas luzes nocturnas do Porto ou mesmo nas águas iluminadas do Rio Douro, para encontrar a serenidade.

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Materialismo Emergentista e o Problema Mente/Cérebro

Cidade do Porto e Rio Douro à noite
«É sabido que nos últimos tempos da Idade Média, quando um novo mestre assumia a sua cátedra, os estudantes começavam formulando-lhe a mais embaraçosa das perguntas: "O que é a alma?" As respostas, na sua maioria, eram espiritualistas, como convinha ao dogma oficial. Algumas, porém, eram evasivas, o que já era arriscado; e às vezes, raramente, ouvia-se a resposta herética: "A alma é uma forma (propriedade) do corpo". (Tal heresia já tinha sido formulada por Aristóteles.)» (Mario Bunge)

Utilizei esta citação de Mario Bunge para indicar que a sua obra - The Mind-Body Problem: A Psychobiological Approach (1980) - estará no centro deste estudo. A neurofilosofia, tal como a entendo, ocupa o espaço de intersecção entre os campos disciplinares da filosofia e das neurociências. A partir do momento em que, graças ao desenvolvimento das neurociências, o problema alma/corpo foi traduzido na linguagem neurocientífica como problema mente/cérebro, a filosofia da mente perdeu terreno em relação à neurofilosofia, que, além de absorver no seu próprio campo o domínio objectual tradicional da filosofia da mente, a reduziu ao seu papel insignificante de filosofia da psicologia. Os recentes desenvolvimentos das neurociências, nomeadamente o aparecimento das neurociências sociais, em torno da hipótese do cérebro social, fazem da neurofilosofia uma disciplina nuclear da Filosofia, permitindo-lhe alargar o seu domínio de investigação a quase todas as áreas da Filosofia, sobretudo à teoria da sociedade, à filosofia da linguagem ou mesmo à filosofia da cultura. Trata-se aqui, efectivamente, do triunfo de Karl Marx no campo unificado das neurociências contra a filosofia da mente de orientação analítica praticada pelos filósofos do mundo anglo-saxónico. A nossa questão orientadora, pelo menos neste estudo, consiste em apreender a imagem do homem dada pelas neurociências, de modo a confrontá-la criticamente com o humanismo tal como surge nas grandes filosofias de Adam Schaff e de Ernst Bloch, por exemplo. Jean-Pierre Changeux captou-a na bela expressão o Homem Neuronal: «As operações com objectos mentais e sobretudo os resultados obtidos serão "percebidos" por um sistema de vigilância constituído por neurónios muito divergentes, como os do tronco cerebral, e pelas respectivas reentradas. Estes encadeamentos e encaixes, estas "teias de aranha", este sistema de regulações, funcionarão como um todo. Será lícito afirmar que a consciência "emerge" de tudo isto? Sim, se tomarmos a palavra "emerge" no sentido literal, tal como quando dizemos que o iceberg emerge da água. Mas basta-nos afirmar que a consciência é este sistema de regulações em funcionamento. O Homem não tem, portanto, nada mais a esperar do "Espírito", basta-lhe ser um Homem Neuronal». Ou então: «No plano teórico, de hoje em diante nada se oporá a que as condutas do homem sejam descritas em termos de actividades neuronais. Chegou a altura de entrar em cena o Homem Neuronal». Changeux aprendeu a lição de Jacques Monod: a biologia molecular anulou as doutrinas vitalistas e animistas e a neurobiologia anulou as teorias espiritualistas. Doravante, as possibilidades combinatórias associadas ao número e à diversidade das conexões do cérebro humano são suficientes para explicar as capacidades mentais do homem, sem recurso a esse estranho hóspede que é o Espírito: Changeux abraça a teoria da identidade entre estados mentais e estados fisiológicos ou físico-químicos do cérebro. Graças à teoria da epigénese por estabilização selectiva - o darwinismo das sinapses a substituir o darwinismo dos genes - proposta por Changeux, de resto antecipada de alguma maneira pelos trabalhos de L. S. Vygotsky e A. R. Luria, os conceitos descritivos da sociologia podem ser convertidos em conceitos explicativos: «Uma das mais-valias da divergência evolutiva que conduziram ao Homo sapiens é, bem entendido, o alargamento das capacidades de adaptação do encéfalo ao meio ambiente, acompanhado de um evidente aumento das aptidões para criar objectos mentais e para os combinar entre si. O pensamento desenvolve-se e enriquece-se a comunicação entre os indivíduos. Os laços sociais intensificam-se e, durante o período que se segue ao nascimento, deixam no cérebro de cada indivíduo uma marca original e em larga medida indelével. À "diferença" dos genes sobrepõe-se uma variabilidade individual - epigenética - da organização dos neurónios e respectivas sinapses. A "singularidade" dos neurónios retalha a heterogeneidade dos genes e imprime em cada encéfalo humano aspectos característicos do meio ambiente onde se desenvolveu». O conceito-chave que possibilitou todo este desenvolvimento fulgurante das neurociências foi forjado por Charles Sherrington, o cérebro como órgão de relação e de união: «A mente - sempre finita e individual - está isolada em cada indivíduo e carece de vinculação directa com outras mentes. Também estas são individuais e, por sua vez, finitas e isoladas. Mediante o cérebro, mercê da vinculação que se dá entre a mente e a energia, a mente finita logra a vinculação indirecta com outras mentes finitas do meio. A energia é o meio para esta vinculação indirecta e única da mente a mente. Deste modo, supera-se o isolamento entre mentes finitas, indirectamente e através da energia. A fala, por exemplo, ilustra esta vinculação indirecta graças à energia entre uma mente finita e outra. Eu ouvi colocar a pergunta "Por que tem que ter a mente um corpo?". A resposta seria: "Para que actue de mediador entre ela e outra mente". A especulação filosófica talvez suponha que esta é a sua principal raison d'être no esquema das coisas. A energia como meio de comunicação entre mentes finitas. A isto poderia objectar-se que é uma perspectiva claramente "antropocêntrica". O "antropocentrismo" parece ser o actual objectivo do planeta, embora o homem passe e, com ele, o antropocentrismo». Ao contrário do que pensam alguns "palermas", a imagem do Homem Neuronal não é determinista: a expansão do neocórtex introduziu a «indeterminação» no comportamento humano, sendo responsável pelo facto do homem ser aquele ser-em-risco permanente, como viu bem A. Gehlen. Então, sendo assim, donde vem a segurança? Lá onde Gehlen é conservador ele é também revolucionário: as instituições sociais como válvulas-mecanismos de segurança e de estabilidade das sociedades humanas, a compensar a redução dos instintos. (Hoje só podemos pensar a filosofia de Marx dando-lhe uma outra antropologia fundamental.)

A teoria psicobiológica de Mario Bunge sobre o problema mente-cérebro move-se entre o dualismo e o monismo fisicalista ou redutor, configurando-se como materialismo emergentista. A sua teoria é materialista, porque conserva a identidade mente-cérebro, embora reformulada, e emergentista, porque, ao contrário do fisicalismo, preconiza a ruptura de continuidade entre o biológico e o mental: as propriedades mentais emergem sobre as propriedades biológicas e são irredutíveis a elas, e a fortiori à esfera da física e da química. Dois enunciados programáticos de Mario Bunge permitem definir a dupla-recusa subjacente ao seu materialismo emergentista: «A mente é uma colecção de funções cerebrais. (...) A ideia de uma entidade mental separada (do mundo físico: corpo e cérebro) não só não está garantida pelos dados disponíveis e pelos modelos psicológicos existentes, como também choca frontalmente com as ideias mais fundamentais de toda a ciência moderna». «Eu recuso a ontologia fisicalista porque não se encaixa com a variedade qualitativa da realidade, e recuso a epistemologia associada a esta ontologia porque é demasiado ingénua e fantasiosa». O primeiro enunciado recusa o dualismo, incluindo a hipótese interaccionista de Popper e Eccles, e o segundo o fisicalismo. A crítica de Bunge ao dualismo é, a todos os títulos, exemplar e, por isso, merece toda a nossa atenção. Bunge define o dualismo como a teoria segundo a qual «a mente é uma realidade imaterial onde ocorrem todos os estados e processos mentais». Esta definição deixa muito a desejar, até porque o próprio Bunge acrescenta mais tarde outro traço do conceito dualista da mente: a mente é uma entidade separada ou separável do corpo. Convém dizer que Bunge amplifica a refutação do dualismo realizada por D. M. Armstrong que retoma a teoria da identidade de Herbert Feigl designando-a como teoria do estado central. Bunge expõe e refuta os dez argumentos que constituem a espinha dorsal do dualismo tradicional, a saber:

  1. O dualismo faz parte da religião, em particular do cristianismo. Bunge rejeita este argumento, alegando que a crença na imaterialidade e imortalidade da alma humana é alheia ao judaísmo e não era defendida pelos primeiros cristãos: não há, portanto, incompatibilidade lógica entre o materialismo e a fé cristã. A exegese dos textos bíblicos comprova a veracidade da perspectiva de Bunge, bastando consultar as obras de Teologia do Antigo Testamento de Walther Eichrodt e de Gerhard von Rad - ou mesmo Moisés e o Monoteísmo de Freud - para o demonstrar. Israel desmistificou e dessacralizou a morte: o reino das sombras não tem força nem dignidade próprias; a sua realidade é uma total debilidade e os seres que o regem são as larvas e os vermes.
  2. O dualismo explica a sobrevivência pessoal e a percepção extrasensorial. O dualismo explica estes fenómenos mediante o seu conceito de realidade de mentes desencarnadas, mais precisamente de mentes descerebralizadas. Ora, uma tal suposição não só carece de evidência empírica como também não pode ser conciliada com os princípios fundamentais da ciência moderna. O programa de António Damásio de naturalizar a mente - o naturalismo biológico de Searle - expressa o mesmo horror perante a ideia de uma mente sem cérebro e independente dele. 
  3. O dualismo conserva-se como um tesouro na linguagem ordinária. A linguagem ordinária está carregada de expressões coloquiais, pré-científicas e pré-filosóficas, que garantem a transmissão do conceito dualista de mente. A linguagem ordinária é a voz do senso comum que constitui «um sistema de mitos aceites por uma comunidade». Ora, segundo Bunge, as teorias científicas têm por função criticar o senso comum, depurá-lo, corrigi-lo ou mesmo substitui-lo por um novo sistema de crenças científicas e filosóficas.
  4. O dualismo explica tudo do modo mais simples possível. É verdade que o dualismo explica tudo de modo simples, mas fá-lo ao preço de simplificações absurdas da realidade que o inabilitam para o discurso científico, no qual a simplicidade não garante de modo algum a verdade.
  5. A mente é imaterial, porque a conhecemos através de uma via distinta à usada para conhecer a matéria. Bunge contra-argumenta dizendo que as diferenças no modo de conhecer não implicam necessariamente diferenças no modo de ser, até porque o mental é hoje em dia acessível e "observável" por meios semelhantes aos utilizados para observar as outras realidades: um neurocientista equipado com instrumentos adequados pode detectar acontecimentos mentais que escapam ao auto-controle da mente consciente.
  6. Os predicados fenoménicos são irredutíveis aos predicados puramente físicos, logo a mente tem de ser substancialmente diferente. Bunge aceita a premissa mas recusa a conclusão. A premissa infere tão só a existência de «uma diferença qualitativa entre processos físicos e biológicos, particularmente quando estes ocorrem no sistema nervoso», mas não a «existência de uma entidade mental separada». Deste modo, a premissa depõe a favor do materialismo emergentista e não a favor do dualismo.
  7. Os neurónios disparam-se digitalmente (pontual ou discretamente), ao passo que aquilo que é percebido por nós é um continuum. Segundo Bunge, os acontecimentos mentais não ocorrem em neurónios singulares ou em pequenos grupos de neurónios, mas são «mudanças de estado em sistemas neuronais compostos de milhões ou biliões de neurónios». Ora, sendo assim, e como sabem os físicos, quando se acumulam grandes números num reticulado de eventos, o resultado é «um processo quase contínuo» que, para efeitos práticos, se considera «como contínuo no espaço-tempo». Assim, por exemplo, o olho humano não se apercebe de nenhuma descontinuidade nas imagens projectadas por uma película cinematográfica, que é, na realidade, um conjunto de quadros descontínuos.
  8. Há uma mente que anima a maquinaria cerebral, porque as máquinas não têm mente. Bunge rejeita a analogia cérebro-computador, observando que o maquinismo vulgar é «uma versão subtil do dualismo psicofísico». A dicotomia hardware-software sugere subrepticiamente a imagem do «génio na máquina». John R. Searle também criticou esta analogia, usando o Argumento do Quarto Chinês para demolir a defesa da versão forte da teoria da inteligência artificial realizada por Daniel Dennett.
  9. Há uma ampla base de evidência a favor do poder da mente sobre a matéria, como por exemplo o movimento voluntário e a planificação. O poder da mente sobre a matéria tem sido pensado sob as designações de causação descendente e de interacção mente-corpo. Ora, como observa Bunge, este poder da mente mais não é do que «interacção entre sistemas neuronais ou entre eles e outros subsistemas do corpo», donde resulta que todo o comportamento do homem é elucidável neurologicamente, sem ser necessário recorrer a «uma entidade superior não-corporal» para o explicar.
  10. O dualismo coincide com o emergentismo na hipótese de que a realidade está organizada segundo níveis distintos. De facto, o dualismo é o «meio mais vulgar» para formular um ponto de vista emergentista, mas não é o único meio disponível para isso, bastando supor um «pluralismo de propriedades» em vez de um «pluralismo de substâncias», como faz o dualismo. A forma de pluralismo própria do materialismo emergentista - uma só substância, mas muitas propriedades diferentes - corrige e radicaliza o dualismo ao sustentar a existência da «variedade do mundo» e as «qualidades distintivas do mental».
Depois de ter refutado estes dez argumentos a favor do dualismo, Bunge avança com mais dez argumentos contra ele, a saber:

  1. O dualismo é vago. O carácter vago do dualismo evidencia-se, primeiro, na sua incapacidade de dar uma noção precisa da realidade mente, e, segundo, na sua dificuldade em explicar a noção de correlação ou de interacção quando afirma que a mente e o cérebro interagem entre si. Esta falta de rigor coloca o dualismo à margem da ciência: «o dualismo é uma não-hipótese».
  2. O dualismo separa as propriedades e acontecimentos das coisas a que pertencem essas propriedades ou acontecimentos. Ao separar as actividades mentais do cérebro, o dualismo rejeita a regra científica segundo a qual todo o estado, processo ou acontecimento é sempre o de algum ente material.
  3. O dualismo viola a lei de conservação da energia. A questão que aqui está em jogo é a seguinte: como pode um ente não-físico produzir o físico sem transgredir as leis da termodinâmica? A interacção mente imaterial-corpo material supõe a criação ou destruição de energia, em vez da sua conservação. Por exemplo, se um agente imaterial movesse um corpo, ele libertaria uma energia que não procede dele próprio e que, por isso, teria de ser criada para essa ocasião.
  4. O dualismo rejeita a evidência empírica acumulada a favor das raízes moleculares e celulares do mental. A nossa propensão a adquirir certas habilidades e certas perturbações mentais é herdável, no sentido em que se transmite pelas moléculas de ADN. O nosso rendimento mental é muito sensível a mudanças metabólicas e hormonais. Todos estes factos da neuroquímica e da psicofarmacologia abonam a favor da tese materialista de que «o mental é uma função do sistema nervoso central», ao mesmo tempo que refutam a tese dualista de que a mente é uma «entidade independente» e separável do cérebro em acção. Bunge recorre às experiências do cérebro dividido para reforçar a tese materialista: quando um neurocirurgião separa os dois hemisférios cerebrais, surgem duas consciências, duas mentes. Ora, se um bisturi é suficiente para fazer multiplicar as mentes, então dificilmente serão estas entes imateriais: «Se o mental fosse imaterial, seria impossível influir sobre ele por meios físicos, químicos ou cirúrgicos». Mas do facto de ser influído por esses meios, até ao ponto da sua total destruição, se segue que o mental não é imaterial.
  5. O dualismo é mais conveniente ao criacionismo do que ao evolucionismo. Se a mente é algo imaterial, sobrenatural e imutável, então não pode ser afectada pelo processo evolutivo, tanto ao nível filogenético como ao nível ontogenético. Mas a biologia e a psicologia evolutiva demonstraram precisamente o contrário, donde resulta que o dualismo só pode ser criacionista. Este é um bom argumento: a incompatibilidade do dualismo com a teoria da evolução. Infelizmente, os filósofos e os neurocientistas descartaram-se do dualismo de Eccles, sem ter analisado e criticado a sua teoria da evolução do cérebro. A psicologia evolutiva de Bunge está muito distante daquela que é praticada actualmente por David M. Buss ou mesmo Craig B. Stanford, e essa distância revela-se desde logo na crítica que faz da sociobiologia de E. Wilson. 
  6. O dualismo não pode explicar as perturbações mentais a não ser como possessão diabólica. Se a mente é algo imaterial, ela deve ser imune às lesões cerebrais ou à acção das drogas, sendo afectada apenas por outros entes imateriais. Ora, o dualista que toma café para não dormir é incoerente. Sei que John Eccles, o dualista mais consequente que conheço, tem outra explicação das perturbações mentais e das doenças neurológicas que não as interpreta como formas de possessão demoníaca. No entanto, o material etno-antropológico disponível é favorável à conjectura de Bunge: os fenómenos de possessão diabólica, magnificamente analisados por E. E. Evans-Pritchard, Ioan M. Lewis e E. R. Dobb, estão associados a - ou implicam - uma visão dualista ou mesmo mentalista do mundo. Esta é uma área da filosofia que merece a atenção dos filósofos, que, no nosso tempo indigente, estão mais envolvidos em práticas de onanismo verbal do que na investigação desta área do saber, a Filosofia Primitiva, com enormes implicações no domínio da psiquiatria
  7. O dualismo é, no melhor dos casos, estéril, e, no pior, obstaculizador. O dualismo pensa resolver todos os problemas quando na verdade evita estudar o cérebro para compreender a mente. Deste modo, não contribui para o crescimento do conhecimento científico do mundo, podendo em todo o caso obstaculizá-lo ao favorecer crenças supersticiosas ou mágicas, como por exemplo as crenças sobre psicokinesis, telepatia ou premonição. Há, porém, cientistas de grande craveira intelectual, entre os quais W. H. Thorpe, Kostler, Price e Broad, que consideram estabelecida cientificamente a existência de certas formas de PES, mas como não sou especialista em parapsicologia prefiro não entrar no domínio da cognição paranormal. Mas, em princípio, não sou contrário à formulação racional de uma Filosofia do Paranormal, porque o meu desejo mais secreto - confesso-o - é liquidar cientificamente o materialismo niilista.
  8. O dualismo não sabe responder às seis questões da ciência da mente. Quais são estas seis questões da ciência da mente? O dualismo não diz o "que é" a alma, "onde" se localiza, "quando" surge, "donde" procede, "até quando" persiste e "por que" existe. Ora, ao não dar resposta a nenhuma destas questões, o dualismo é «não científico».
  9. O dualismo não é uma teoria científica, mas um dogma ideológico. Não sendo científico, devido ao facto de não responder às seis questões da ciência da mente, o dualismo mais não é do que «parte de um fardo arcaico, negativo, pré-histórico, ideológico» que herdámos do passado arcaico, ou seja, uma «opinião vulgar estabelecida com palavras imprecisas e ordinárias». Os grandes dualismos, como os de Descartes, Eccles, Popper e Thorpe, são tudo menos imprecisos ou obscuros. 
  10. O dualismo é incompatível com a ontologia da ciência. Em todas as ciências, da física à sociologia, passando pela biologia, as propriedades são sempre posse de entidades concretas. Porém, para o dualismo, as propriedades mentais estão separadas de toda a entidade material.
De facto, são mais os conhecimentos que refutam o dualismo do que os que abonam a seu favor. No entanto, apesar da escassez de evidência empírica a seu favor, o dualismo tem sido a filosofia da mente adoptada por filósofos, neurólogos e psicólogos do calibre de Toulmin, Popper, Kneale, Thorpe, Sherrington, Penfield, Sperry e Eccles, os últimos dos quais foram galardoados com o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina. A razão que leva homens inteligentes a abraçar o dualismo interaccionista é sobretudo de natureza política e moral. John Eccles, para quem «o homem perdeu o seu rumo actualmente», é peremptório a este respeito: O homem «necessita alguma nova mensagem pela qual possa viver com esperança e significado. Penso que a ciência foi longe demais fazendo diminuir a crença do homem na sua grandeza espiritual e dando-lhe a ideia de que ele é meramente um insignificante ser material na frígida imensidão cósmica. (...) Creio que existe um mistério no homem, e asseguro que pelo menos é maravilhoso para o homem ter o sentimento de não ser um macaco apressadamente reformado, e que existe alguma coisa muito mais maravilhosa na sua natureza e no seu destino». Sensível a este argumento do sentido e da esperança, tão bem explicitado por Peter Berger no seu brilhante repto antropológico à teologia, Bunge dirige a sua crítica ao materialismo fisicalista ou redutor, lançando contra ele a evolução: os processos evolutivos são aqueles em que «emergem coisas absolutamente novas, isto é, entes que possuem propriedades que nunca existiram». Assim, a realidade gerada pela evolução articula-se em múltiplas «classes ou níveis de entes». Esta geração de múltiplos níveis de realidade é negada pelo materialismo redutor, para o qual não há diferenças entitativas, sendo tudo, em última análise, físico. Embora a mente seja cérebro, mais precisamente uma função do cérebro vivo, este último «difere qualitativamente de qualquer outro sistema material, em especial dos computadores». O fisicalismo considera que o sistema nervoso central é uma entidade física como as outras entidades físicas, como por exemplo os computadores, dos quais se distingue apenas no seu grau de complexidade. Mas o materialismo emergentista não se limita interpor uma diferença qualitativa entre o cérebro e as restantes entidades físicas; afirma também que o sistema nervoso central é um sistema biológico dotado de propriedades e leis peculiares, que excedem o nível fisicoquímico e o nível da biologia geral. O cérebro humano é emergente em relação ao próprio âmbito da biosfera, e, por isso, uma teoria científica da mente deve dar conta da «especificidade do mental» e distinguir o homem do seu «parente mais próximo, o chimpanzé»: «Os acontecimentos mentais são certamente emergentes em relação aos acontecimentos biológicos não-mentais». Daí que Bunge submeta a equação mente-cérebro a uma reformulação: «todo o estado mental é um estado cerebral, mas não vice-versa», donde resulta que apenas a actividade cerebral específica de certos sistemas neuronais é actividade mental. O materialismo reducionista que teima em ignorar a textura diferenciada da realidade «está condenado ao fracasso», porque a estratégia que propõe à ciência do cérebro não é uma estratégia promissora e produtiva. Bunge rejeita completamente as teses fisicalistas sobre a analogia homem-máquina: os neurocientistas que pensam poder avançar na sua prática científica valendo-se dessas analogias, como por exemplo Mackay, ignoram as propriedades intransferíveis dos sistemas neurais, o carácter espontâneo da sua actividade, a sua plasticidade e a sua criatividade. A abordagem das estruturas cerebrais através das máquinas de Turing ou dos computadores digitais é extremamente «irrealista, empobrecedora e errónea». Como é que alguém inteligente pode propor desenhar um robô «que suspire pela liberdade, que experimente autocompaixão ou indignação moral?» O materialismo emergentista apresenta-se como um pluralismo das propriedades e não como um pluralismo das substâncias: Bunge afirma que só existe uma única classe de substância, a matéria, mas esta substância material tem a aptidão para revestir propriedades rigorosamente diversas no decurso da evolução. Bunge recorre à teoria geral dos sistemas para elucidar as implicações do seu materialismo emergentista. Um sistema é uma entidade complexa, cujos componentes se relacionam uns com os outros de tal forma que a entidade se comporta como uma totalidade unitária e não como um mero agregado de elementos. A realidade organiza-se numa multiplicidade de níveis de realidades e cada um deles forma um sistema: há sistemas físicos, sistemas químicos, sistemas fisiológicos ou biológicos, sistemas psicológicos e sistemas sociais e culturais. Os sistemas possuem propriedades de duas classes: propriedades resultantes e propriedades emergentes. Uma propriedade resultante é aquela propriedade possuída pela sistema pelo facto dela pertencer a algum dos seus componentes. Uma propriedade emergente é aquela que possui o sistema sem que ela surja em algum dos seus subsistemas ou peças componentes. O fisicalismo só admite a existência de propriedades resultantes, enquanto o materialismo emergente afirma a existência de propriedades que, embora estejam enraizadas nas dos componentes, as excedem constituindo uma novidade. Todo o verdadeiro sistema tem de possuir pelo menos uma propriedade emergente. Da aplicação destas noções da teoria dos sistemas ao domínio neurocientífico resulta a ideia de que o cérebro é o biosistema a que pertencem todos os acontecimentos, estados e processos mentais. O funcionamento do cérebro pode ser explicado por três hipóteses: a primeira hipótese, o neuronismo, atribui as múltiplas operações mentais aos neurónios individuais. A segunda hipótese, o holismo, supõe que todo o cérebro é responsável por todos os estados mentais. E a terceira hipótese, o sistemismo defendido por Bunge, considera que o cérebro é «um sistema de subsistemas ou órgãos especializados» que se encarregam das diversas funções neuromentais. A propriedade emergente mais destacada de todo o sistema nervoso, aquela que faz dele um órgão único de relação, é a plasticidade neural: a sua aptidão para a auto-programação e a auto-organização, devida ao facto da conectividade intercelular ser variável, não estando pré-fixada de antemão e para sempre, excepto os circuitos neurais sujeitos aos constrangimentos do envelope genético. Todas as outras propriedades emergentes e irredutíveis do cérebro humano - e que constituem a mente humana - resultam e derivam da plasticidade: o número astronómico de combinações sistémicas e de interconexões celulares possíveis no cérebro humano permite dar conta de todo o espectro de fenómenos mentais sem recorrer à mística explicação dualista. Assim, à pergunta "O que é a mente?", Bunge responde dizendo que «a mente não é um ente separado do cérebro ou paralelo a ele ou interactuante com ele. (...) A mente é uma colecção de actividades do cérebro ou de alguns dos seus subsistemas». A mente é, portanto, uma propriedade emergente que só os animais dotados de sistemas neuronais plásticos de grande complexidade podem possuir. Deste modo, Bunge reformula o problema mente-cérebro, de modo a evitar a sua formulação original como problema das relações entre o mental e o somático: o problema mente-cérebro-corpo diz respeito às relações entre distintas partes do sistema nervoso e entre ele e o resto do corpo. Quais são as vantagens da teoria psicobiológica de Bunge? Bunge enumera seis vantagens. Em primeiro lugar, o materialismo emergentista rejeita a noção misteriosa de substância espiritual, sem negar por isso a realidade dos factos mentais. Em segundo lugar, o materialismo emergentista livra-se da vacuidade do dualismo, permitindo compreender os fenómenos mentais a partir da sua base biológica: o vocabulário mentalista adquire assim o seu sentido neurofisiológico e a psicologia torna-se neurociência. Em terceiro lugar, o materialismo emergentista não separa os estados e os acontecimentos das coisas a que pertencem, como faz o dualismo, conformando-se assim à ontologia da ciência moderna, para a qual toda a propriedade, acontecimento ou estado são sempre a propriedade, acontecimento ou estado de alguma coisa material. Em quarto lugar, o materialismo emergentista concorda com os dados da psicologia e da neurofisiologia evolutivas, admitindo a maturação paulatina do cérebro e do comportamento. Em quinto lugar, o materialismo emergentista adequa-se à biologia da evolução, retomando o conceito do carácter gradual da formação da mente ao longo da árvore filogenética. Finalmente, o materialismo emergentista reconhece a condição emergente do mental, opondo-se à brutal nivelação que o materialismo fisicalista impõe à realidade.

O materialismo emergentista de Bunge é marcadamente pluralista, mas não deixa de ser uma estratégia de investigação materialista que apela à neurologia para resolver o problema mente-cérebro. De certo modo, tal como a teoria da identidade de Feigl e a teoria do estado central de Armstrong, ele apresenta-se a si mesmo como um materialismo promissor (Popper): «o materialismo emergentista não é propriamente uma teoria», mas sim uma «hipótese programática» que promete ser no futuro mais fértil teórica e experimentalmente do que as estratégias rivais, o dualismo e o materialismo fisicalista, pelo facto de já ser a «força filosófica condutora» de toda a investigação realizada no domínio das neurociências, das quais Bunge destaca a psicologia fisiológica, a psicofarmacologia e a neurologia. Seria demasiado fácil demonstrar que o materialismo emergentista não é tão emergentista como julga ser. O materialismo emergentista trabalha com conceitos de matéria e de realidade que não estão muito distantes daqueles que operam no fisicalismo. Bunge afirma que é material «um objecto que pode estar pelo menos em dois estados, de modo que seja apto para transitar de um (estado) a outro»: o material é assim definido pela mutabilidade, isto é, pela aptidão para a mudança. Este conceito de matéria articula-se com o conceito de realidade: «Um objecto é real se, e somente se, influi sobre, ou é influído por, outro objecto, ou está composto exclusivamente de objectos reais». Ora, como só os objectos materiais podem actuar uns sobre os outros, todos os objectos materiais são reais e todos os objectos reais são materiais. Os diversos materialismos, tanto os fisicalistas como os emergentistas, convergem na ideia de que o mundo é constituído «exclusivamente por objectos materiais», embora no caso do emergentismo estes não sejam «necessariamente físicos». Ao não admitirem a existência de objectos imateriais, os materialismos harmonizam-se com a ciência moderna: ciência e materialismo partilham a mesma ontologia naturalista e a mesma epistemologia realista. O materialismo emergentista é um programa promissor de investigação num duplo sentido: funciona como um dispositivo para abrir caminho à investigação científica do cérebro-mente do homem, ao mesmo tempo que procura ajustar contas com «problemas filosóficos chave», tais como os problemas relativos ao mundo da cultura e dos valores éticos. Apesar da pobreza conceptual da sua concepção materialista dos valores e do carácter tautológico da sua noção de liberdade, Bunge abraça claramente o materialismo humanista, distanciando-se do poder de atracção exercido sobre ele pela galáxia fisicalista. O carácter humanista do seu materialismo anuncia-se desde logo na sua rejeição da analogia entre homem-máquina: a aptidão ética do homem funciona como critério de demarcação entre o homem e a máquina. A noção de homem presente no materialismo emergentista de Bunge situa-o acima dos materialismos redutores. Expressões como as usadas por Bunge - «só os seres humanos são absolutamente criativos»; «o homem é o único animal capaz de inventar mitos e teorias, de discutir sobre eles, de desenhar modelos de conduta e de revoltar-se contra outros (modelos de conduta)»; «só os seres humanos têm auto-consciência»; «só os seres humanos podem criar a linguagem»; «o homem é o supremo criador e destruidor das organizações e funções sociais»; «o homem é único (na biosfera)»,  enfim «a liberdade e a criatividade do homem», que «não é nem uma máquina programável nem um animal condicionável à vontade», mas «o único animal absolutamente criativo, o único capaz de criar uma ciência do mental e de modelar a sua própria vida - para o bem ou para mal - à luz do seu conhecimento e da sua escolha» - esboçam uma imagem do homem como ser único e superior aos restantes seres do mundo que está deveras próxima do antropocentrismo marxista, tal como o define Schaff. Esta conexão que acabo de estabelecer entre o emergentismo e a filosofia do indivíduo humano teria feito sorrir Mario Bunge, cuja epistemologia se liga ao núcleo duro do Círculo de Viena, antes da sua contaminação pelos jogos de linguagem de Wittgenstein que o conduziu à discussão de «questões triviais acerca do uso de expressões»: «A Filosofia linguística matou o Círculo de Viena a partir do seu próprio interior antes que o nazismo empreendesse a sua Blitzkrieg contra a razão». Mas o sorriso de Bunge não seria suficientemente rasgado para fazer troça do facto dele ter abraçado o emergentismo para salvaguardar a dignidade do homem, sem no entanto abandonar a ciência. O emergentismo pode ser visto como o último reduto do antropocentrismo no campo das ciências naturais. O sucesso do existencialismo e dos seus temas existenciais - os problemas socráticos - espantou de tal modo Schaff que o levou a elaborar uma filosofia (marxista) do indivíduo humano. O sucesso do existencialismo esteve ligado ao facto de ter sabido colocar uma série de problemas que interessam vitalmente ao homem, sobretudo em períodos de crise e de mudança social. As questões socráticas colocadas pelo existencialismo - tais como o sentido da vida, o valor da existência individual ou a morte - não são pseudo-problemas, como pensavam os neopositivistas lógicos encabeçados por Carnap, mas problemas reais perante os quais o filósofo não pode recuar, a menos que sofra de atrofia moral aguda. A filosofia do indivíduo humano de Schaff confronta-se com essas questões socráticas que não podem ser resolvidas em função dos parâmetros das ciências naturais. A elaboração da Filosofia do Homem de Schaff move-se num terreno ocupado por outras filosofias, o que significa que, para avançar com as suas próprias teses filosóficas, ele precisa de criticar e desalojar outras teses que ocupam o território que pretende conquistar. Depois de ter desalojado o neopositivismo lógico, negando a sua tese da unidade da ciência, com imposição exclusivista dos parâmetros das ciências objectivas da natureza a todo o tipo de prática discursiva, Schaff afronta o existencialismo, traçando uma linha de demarcação entre ele e o marxismo: a diferença entre ambos reside na concepção do indivíduo humano. O existencialismo defende uma interpretação individualista do fenómeno humano, segundo a qual o indivíduo é um ser autónomo que cria a sociedade, enquanto o marxismo encara o homem como um «produto da vida social»: o indivíduo humano enquanto «conjunto das relações sociais» escolhe socialmente, conduz-se socialmente e é socialmente determinado. O projecto de Sartre de «completar» o marxismo com o existencialismo - tal como foi elaborado na Crítica da Razão Dialéctica - está condenado ao fracasso, porque as duas concepções do homem são contraditórias. Porém, a definição do homem como «produto da vida social» não implica a sua coisificação, isto é, a negação da sua condição de sujeito histórico, porque o pensamento de Marx tem por objectivo constante a «libertação do homem». O marxismo evitou elaborar uma filosofia do indivíduo humano por temer a sua conversão numa antropologia individualista ou idealista, mas a sua noção de homem como sujeito activo do acontecer histórico permite-lhe reivindicar a condição de genuíno «humanismo socialista»: «O ideal do homem do comunismo está unido à norma de que o homem é o supremo bem para o homem, o summum bonum». A concepção do indivíduo como «criatura e criador da sociedade», como seu «ponto de chegada e de partida», faz do marxismo um humanismo - ao contrário do que defendia Althusser -, para o qual a realidade tem de ser lida antropocentricamente. Mario Bunge poderia rejeitar o modelo de libertação preconizado pelo marxismo, mas não o seu antropocentrismo, de resto bem patente no seu conceito de homem como ser único na biosfera, que faz eco do conceito de Schaff do «valor irrepetível» do ser humano. Infelizmente, a filosofia contemporânea afastou-se das problemáticas científicas das ciências da natureza, deixando assim de participar do desenvolvimento científico: a penumbra filosófica em que vive a ciência moderna deve-se, em grande parte, a este afastamento da filosofia. Há muito trabalho filosófico a realizar no âmbito das ciências, em especial das neurociências, cuja problemática científica não colide seriamente com a liberdade humana. Concluo com esta provocação filosófica: é por ser um homem neuronal que o indivíduo humano é um ser livre.

J Francisco Saraiva de Sousa