sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Dossier Filosofia Médica (1)

Uma mala moçambicana
«Procura-se a medicina, em geral, ignorando-se totalmente as teorias médicas, mas não sem ideias preconcebidas sobre os conceitos médicos». (G. Canguilhem).

Hoje partilho algumas ideias do Dossier Filosofia Médica:

1. A relação médico-doente deve ser revisitada pela filosofia médica: Um doente inteligente é aquele que sabe desafiar o médico, quebrando o ritual médico. O doente que se entrega à sabedoria médica sem a desafiar é tratado como uma coisa: a responsabilidade da reificação médica deve ser atribuída ao doente ignorante e passivo.

2. Hoje, ao contactar com alguns exemplares da população idosa masculina, conclui que há dois tipos de idosos masculinos: um simpático embora burrinho e outro detestável. Ainda não temos uma teoria das masculinidades portuguesas. O meu palpite é simples: Há um défice de masculinidade em Portugal.

3. O que é a imbecilidade? É julgar que todos os "sinais do mundo" se dirigem a si próprio. Ora, o mundo não gira em torno de ninguém: o imbecil que se coloca no centro do mundo atribui uma carga mágica àquilo que interpreta como "sinais do mundo" dirigidos à sua própria pessoa. O mundo da imbecilidade merece estudo.

4. Com o advento das neurociências, a psicologia tornou-se uma ciência sem objecto, e, como não há ciência sem objecto - isto é, ciência que tenha o nada como objecto, a psicologia desaparece do universo das ciências. A abertura do Dossier Filosofia Médica visa precisamente desalojar a psicologia médica que não pode resolver os problemas que herda da filosofia: o problema do normal e do patológico não é um problema científico mas sim um problema filosófico. A noção de homem total é filosófica e não psicológica. Desconstruir as ilusões de sabedoria da psicologia médica - produzida por psiquiatras - é desde logo lançar as bases de uma nova filosofia médica.

5. Os manuais de psicologia médica que reflectem a ambição-orientadora da psiquiatria no seio da medicina tratam invariavelmente de três tópicos: o doente e sua doença, o médico e sua medicina e a relação médico-paciente. A função apostólica atribuída-imputada por M. Balint aos médicos deve ser repensada, de modo a evitar as ratoeiras da linguagem psiquiátrica: a conversão médica do doente pode ser uma ilusão.

6. Numa aula, quando procurei articular a medicina psicológica e a medicina social com a medicina biológica, um aluno disse-me que estava a privilegiar o modelo médico. De certo modo, tinha razão porque uma reconfiguração destes três modelos que dê prioridade à medicina biológica implica o poder dos médicos. Porém, esse poder tem os seus limites: Sou contra a medicalização da vida.

7. Os psiquiatras que escrevem manuais de psicologia médica adoram apresentar uma série de casos que geram dificuldades na medicina biológica, de modo a justificar a sua intervenção psicológica. E, mais recentemente, usam o argumento dos custos desses casos para o serviço nacional de saúde. Ora, sem negar a existência desse tipo de doentes, podemos devolver aos psiquiatras a função apostólica que eles atribuem aos médicos: a sua presença é onerosa.

8. Repare-se que não estou a excluir a psiquiatria da medicina: o que estou a dizer é que os discursos psiquiátricos reforçam a medicalização da vida. Ora, uma das tarefas da filosofia médica é desmedicalizar a vida, dando uma certa autonomia ao doente. Aliás, são as indústrias farmacêuticas que estão interessadas na medicalização da vida, fazendo das pessoas eternos doentes.

9. Agora vou directo ao que interessa: A Esquerda não sabe defender o Serviço Nacional de Saúde. Em Portugal, o Estado financia a medicina privada através da ADSE. Ora, a Esquerda já devia ter abolido esse privilégio se fosse defensora do SNS. Todos conhecemos casos em que os beneficiários da ADSE dizem ser "ricos" porque recorrem à medicina privada. Tantas ilusões, tantas manias de grandeza!

10. Ao meditar as temáticas da Filosofia Médica, topei com a morte vodu, morte mágica ou morte por feitiço. Curiosamente, ainda não sabemos explicar a morte mágica a não ser mediante o recurso aos aspectos culturais do stress. Outra noção curiosa é a de que a inveja pode matar pelo olhar: o Mau-Olhado causa diversos tipos de problemas de saúde. Seria interessante fazer uma geografia cultural do mau-olhado: Portugal - país de invejosos - encabeça a geografia do mau-olhado.

11. Eis como a antropologia médica caracteriza a perspectiva do médico sobre a doença: racionalidade científica (1), ênfase sobre a mensuração objectiva e numérica (2), ênfase em dados bioquímicos (3), dualismo mente-corpo (4), visão das doenças como entidades (5) e ênfase sobre o paciente individual, não na família ou na comunidade (6). Há a tendência para criticar a mudança do método subjectivo de diagnóstico - os sintomas subjectivos do paciente, a interpretação subjectiva dos sinais físicos por parte do clínico - para o método objectivo que utiliza a tecnologia de diagnóstico para a colecta e a mensuração de dados clínicos. Ora, esta caracterização é simplista: a filosofia médica deve esclarecer a problemática da biomedicina.

12. A relativização do modelo médico é perigosa: a temática das metáforas das doenças associa-se, na imaginação das pessoas, a crenças tradicionais sobre a natureza moral e religiosa da saúde, da doença e do sofrimento humano, prejudicando a explicação e o controle das próprias doenças. Vê-se aqui a necessidade de elaborar uma filosofia para a biomedicina capaz de romper com as "doenças populares". Colocar a biomedicina ao lado das curas espirituais e da homeopatia é um disparate.

13. É muito complicado elaborar uma Filosofia da Doença. A normalidade é definida através da referência a determinados parâmetros físicos e bioquímicos. Para cada medida existe uma faixa numérica - um valor normal - na qual o indivíduo é considerado saudável. Valores superiores ou inferiores a esta faixa são anormais e indicam a presença de doença - entendida como desvio da normalidade. Assim, por exemplo, um valor inferior ao normal para a hormona da tiróide no sangue indica hipotiroidismo; um valor superior indica hipertiroidismo; e, se o valor for intermédio, indica que a tiróide esta a funcionar normalmente. Esta noção de doença como desvio da normalidade deve ser trabalhada.

14. Em Moçambique, discute-se muito o regresso dos curandeiros e dos feiticeiros. Porém, a sua explicação é simples: Quando o Estado não constrói uma rede hospitalar para fazer face aos problemas de saúde, a população que adoece recorre às "medicinas alternativas". As crenças tradicionais combatem-se através da educação e, sobretudo, de um serviço nacional de saúde.

J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Li uma entrevista de Michel Foucault enquanto tomava café: ao "sentido" de Sartre opõe o "sistema" e limita-se a "falar mal do homem" no resto da entrevista. Acho que as entrevistas de Foucault deviam ser recolhidas em livro. É muito difícil encontrar uma "filosofia" na sua obra. Ele diz que definiu o sistema que nos pensa em "As Palavras e as Coisas", obra que li quando tinha 17 anos, ficando muito desiludido.

Ontem, fiquei perplexo quando Francisco Louçã comentou um filme sobre Hannah Arendt, dando uma explicação bizarra da banalidade do mal. Convém esclarecer que Hannah Arendt nunca chegou a articular definitivamente este problema que atravessa a sua obra.

Diastêmico disse...

Caro colega,

Seus textos me ajudam muito na pesquisa sobre a dependência química. Estou a estudar a antropologia e sociologia das adicções . Muito obrigado