quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (7)

Porto: Casa do Roseiral
Mais algumas ideias para a elaboração da Filosofia Médica:

1. Em Portugal, com os "filósofos" que temos, é impossível fazer o elogio da Filosofia: Eles mataram a Filosofia. Porém, a Filosofia atravessa um mau momento em todos os países ocidentais: as modas parisienses desgastaram a pesquisa filosófica e quebraram a continuidade da pesquisa fundamental. É preciso repensar a filosofia nas suas conexões com a ciência e a política: o mito positivista deve ser desinstitucionalizado. A Filosofia é conhecimento: esquecer isso é reduzir a filosofia a nada ou - o que é pior - a algo inofensivo. O Império da Opinião deve ser demolido e os seus portadores eliminados.

2. Os alemães têm produzido as melhores obras de Filosofia Médica. Hoje estive a ler algumas. Porém, o campo da Filosofia Médica é extremamente complicado. Sempre privilegiei a via que vai da patologia à fisiologia, mas neste momento vacilo: as teorias médicas disponíveis não captam a complexidade da biomedicina.

3. Steussloff & Gniostko (1968) escreveram uma obra monumental "A Imagem Marxista do Homem e Medicina", onde estabelecem como meta da medicina marxista o «homem social sadio». Ora, a medicina marxista é aqui pensada como antropologia. No entanto, acho ser possível questionar Marx sobre o problema do normal e do patológico: a minha intuição é que Marx concede prioridade ao patológico, até porque a sua "utopia social" é algo que ainda não foi realizado. Há portanto um repto marxista à abordagem de Comte.

4. De certo modo, Marx herda os problemas e as temáticas da medicina hipocrática e aprofunda-os. Ora, os princípios da medicina marxista permitem-nos detectar os erros das análises de Michel Foucault: o conceito de natureza não pode ser despachado. Direccionar o nosso olhar para a medicina permite-nos actualizar Marx. A Marxfobia é uma doença mental.

5. Só há um caminho para impedir a catástrofe: Usar a genética e a biomedicina para eliminar a maldade dos indivíduos de Direita.

6. O Jovem-Marx analisou conceitos-chave da Tradição da Medicina, em especial os conceitos de natureza e da relação do homem com outro homem que se comporta como "animal político". Deste modo, o seu Humanismo cristaliza-se a partir do Naturalismo.

7. Se a meta da medicina marxista é o homem social sadio, então podemos dizer que ela aprofunda a medicina hipocrática. A natureza pode eliminar o que torna a pessoa doente e restituir-lhe a saúde. Isto significa que a medicina grega é essencialmente formação do homem, é medicina antropoplástica, cuja arte terapêutica consiste no cuidado privado do corpo e num serviço público em prol da saúde denominado "politike". Com os novos progressos da medicina, é fácil recuperar estes conceitos gregos a partir da abordagem antropológica de Marx.

8. Ao esquecer a tradição marxista, a Esquerda europeia ficou sem orientação teórica e política. A Direita está a aproveitar essa amnésia da esquerda para destruir o Estado Social e o Serviço Nacional de Saúde. Marx continua a ser a luz que orienta as práticas políticas de esquerda; sem ele, não há política de esquerda.

9. Sou mesmo teimoso e não desisto facilmente das tarefas que me proponho: Pensar a biomedicina de modo a elaborar uma nova Filosofia Médica e uma Teoria Geral da Medicina. Passei todo o dia a estudar a evolução das ideias biológicas e médicas, na tentativa de descobrir um fio condutor. Porém, já ao fim da tarde, a minha mente foi caçada por uma ideia: a do desaparecimento do normal e do patológico ou, pelo menos, a emergência de uma abordagem plural. Quando passamos do macroscópio ao microscópio, torna-se oneroso classificar as doenças: a revolução do objecto e da óptica - a biologia molecular - faz desaparecer a nosologia. No entanto, suspeito que podemos actualizar a medicina hipocrática a partir desta revolução sem precedente.

10. A Clínica surgiu no século XVII, fazendo o termo referência ao leito onde o doente repousa. Ora, o desenvolvimento das teorias médicas nos finais do século XIX e no decorrer do século XX tornou desnecessária a clínica.

11. Ao longo da história, a medicina produziu mais mortes do que "curas". A sua amplitude contrastava com a sua fraca eficácia: muitas das pestes referidas pela história de Portugal foram crises de fome; as pessoas morriam de fome e não da peste. No entanto, nos conceitos da medicina hipocrática descobrimos ideias seminais que moldaram a evolução das ideias médicas.

12. Com a descoberta dos micróbios, o homem sentiu-se estranho num universo repleto de inimigos invisíveis. A bacteriologia levou à imunologia: a imunidade humoral é uma homenagem a Hipócrates.

13. "Abram os cadáveres": Esta palavra de ordem deu origem à anatomia e, posteriormente, à anatomia patológica. Logo aqui a medicina ocidental marca a diferença: a medicina chinesa é uma medicina sem anatomia. Porém, a dissecação dos cadáveres matou muitos "médicos" com a "picada anatómica". A ideia de infecção andava no ar, não podendo ser tematizada sem instrumentos.

14. O desenvolvimento da medicina foi bloqueado por diversas forças: a Igreja Católica tentou travar o uso dos cadáveres para a descrição anatómica e os "amigos dos animais" lutaram contra a experimentação animal sem a qual não haveria fisiologia. Porém, todos estes obstáculos foram superados e hoje todos beneficiam com o progresso da medicina. A história da anestesia pode ilustrar esta luta entre forças retrógradas e forças revolucionárias.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (6)

Cidade do Porto: Massarelos
1. Hoje foi dia de estudar o pai da psiquiatria americana: Benjamin Rush (1746-1818). Concordo com o seu amigo Jefferson: os seus tratamentos da loucura eram demasiado cruéis e condenáveis: aparelhos como o tranquilizador ou o girador são aparelhos de tortura. Mas o que me chamou a atenção foi a sua teoria da lepra da negritude dos escravos. A cor negra é uma doença que, segundo Rush, pode ser tratada. Em termos ideológicos, Rush diz o seguinte: o negro pode ser um empregado doméstico aceitável do ponto de vista médico, embora deva ser alvo de segregação sexual para impedir a transmissão de uma doença hereditária temida. Os brancos não devem tiranizá-los - os negros - e não devem casar com eles: a doença poderá ser curada no futuro.

2. Negando as diferenças entre doenças do corpo e doenças da mente, Benjamin Rush abusou da metáfora médica para medicalizar a vida social: o Pennsylvania Hospital foi a materialização da ideologia psiquiátrica que fez do desvio social uma doença mental.

3. Infelizmente, Portugal é um país entregue aos burros: O Bode Expiatório da psiquiatria institucional foi sempre o Homossexual. O auto de 1723 relata um caso que ocorreu em Lisboa, cuja sentença foi a flagelação e dez anos de serviço nas galés. A homossexualidade era tratada como um delito e o delito como uma heresia: o castigo era a relaxação - queima na fogueira - ou flagelação - açoitamento - e as galés. A chamada libertação dos loucos não ocorreu em Lisboa, mas sim no Porto: o Hospital Conde de Ferreira protagoniza esse movimento em Portugal, embora usasse ainda alguns instrumentos de tortura. Porém, ainda não temos uma história da loucura em Portugal.

4. A masturbação foi outra prática sexual condenada e punida pela Psiquiatria Institucional: a ideologia psiquiátrica da masturbação é deveras bizarra. Porém, ainda hoje os pacientes que se masturbam compulsivamente nas enfermarias são objecto de um tratamento clássico: as mãos são amarradas às grades da cama. Mas como devem ter reparado falei de masturbação compulsiva: o que quer dizer que há formas patológicas de masturbação. Devemos criticar a violência psiquiátrica sem deitar fora a Psiquiatria.

5. Enfim, concordo com a crítica da violência psiquiátrica levada a cabo pela Antipsiquiatria, mas também condeno os excessos deste movimento, em especial a política do orgasmo. Chegou a hora de mandar à merda o orgasmo. Descarta-te do sexo e cultiva a tua mente! Todos os movimentos de emancipação sexual fracassaram. Hoje sabemos que o sexo não liberta; pelo contrário, escraviza, destruindo a mente, a vida pessoal e social e a saúde mental e física.

6. A teoria da negritude de Benjamin Rush parece ser um disparate e assim é. Mas faz algum sentido no contexto americano oitocentista. Com efeito, por volta de 1792, começaram a surgir zonas brancas no corpo de um escravo negro chamado Henry Moss, que, no espaço de três anos, ficou completamente branco. Ele era portador de uma doença hereditária chamada vitiligouma doença não-contagiosa em que ocorre a perda da pigmentação natural da pele, tanto nos negros como nos brancos. (Rush desconhecia que a perda de pigmentação pode ocorrer nos brancos.) Ora, quando soube disso, Rush pensou que a cor biologicamente normal do negro era uma doença que, no caso de Moss, tinha sido curada de modo espontâneo. Daí que tenha sugerido que a cor negra era resultado do sofrimento de lepra pelos seus ancestrais africanos. Ora, nalguns casos, em especial entre os habitantes das ilhas de lepra do Pacífico Sul, a lepra é acompanhada pela cor negra da pele.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (5)

Cidade do Porto
Mais ideias sobre Filosofia Médica na sua relação com a Antipsiquiatria:

1. R. D. Laing legou-nos um conceito primordial: Segurança Ontológica. A Antipsiquiatria inspira-se no existencialismo de Sartre. A transição da segurança ontológica à insegurança ontológica permite compreender o modo de ser-no-mundo daqueles - os psicóticos - que a psiquiatria hospitaliza: o indivíduo ontologicamente inseguro pode viver três formas de angústia: ser tragado, implosão e petrificação e despersonalização. A Filosofia Dialéctica da Antipsiquiatria ainda não foi devidamente estudada.

2. A política de empobrecimento do Governo de Portas-Coelho mina completamente o sentimento de segurança ontológica dos portugueses, os quais não possuem um sentido de realidade forte em circunstâncias normais. A penúria lança-os na insegurança ontológica e perturba-os nas suas relações com os outros. Porém, no caso dos portugueses, em virtude da sua propensão para a loucura, é necessário introduzir novas manifestações de angústia, nomeadamente o vampirismo existencial e a inveja patológica. Portugal caminha na direcção de um país pobre e louco.

3. O meu encanto pela antipsiquiatria levou-me a desenterrar das estantes todas as obras dos fundadores deste movimento e a relê-las com mais atenção. Durante a minha vida só devo ter lidado com meia dúzia de esquizofrénicos e, por isso, não tenho grande experiência da experiência esquizofrénica. Hoje acompanhei o desenvolvimento intelectual de Laing e aprendi a reler "A Política da Experiência", talvez a sua obra mais antipsiquiátrica. E a apreciar o modo como Cooper politiza o movimento da antipsiquiatria à não-psiquiatria, a partir de uma mudança profunda da sociedade. Marx foi redescoberto pelos fundadores da antipsiquiatria. Ora, um tal questionamento radical da psiquiatria clássica implica uma reformulação do próprio campo da medicina.

4. A revolução antipsiquiátrica deve ser entendida como uma revolução da consciência que denunciou a violência exercida sobre os esquizofrénicos e os danos causados pelo imperialismo da norma. A revolução fundamental preconizada pela antipsiquiatria contra a dominação será o resultado de uma evolução da consciência humana: Laing libertou a subjectividade ao acentuar a continuidade entre o normal e a loucura. As consequências mais importantes da antipsiquiatria resultam deste acto de fazer ir pelos ares a barreira-ruptura entre o normal e a loucura.

5. Convém não ver uma ruptura entre The Divided Self (1960) e The Politics of Experience (1967). O conceito de experiência transcendental de Laing corresponde aos conceitos de reversão de Esterson e de anoia de Cooper: «A verdadeira saúde mental implica de uma maneira ou de outra a dissolução do ego normal, desse falso eu sabiamente adaptado à nossa realidade social alienada, a emergência dos arquétipos "interiores" mediadores da potência divina, o desembocar desta morte numa re-nascença e a re-criação de uma nova função do ego, em que o eu já não traia o divino, mas o sirva» (Laing).

6. A Antipsiquiatria fez uma crítica justa da psiquiatria clássica e sua ideologia clerical e da ciência e seus "métodos cegos", embora tenha fracassado no "tratamento" dos esquizofrénicos. Ora, a psiquiatria institucional aboliu-a dos manuais de psiquiatria e, quando a refere, é para dizer que os seus "bons loucos" são como os "bons selvagens" de Rousseau. Porém, o que interessa na antipsiquiatria é a sua teoria da experiência e a sua crítica justa da ciência objectiva. Além disso, a antipsiquiatria abre a medicina ao mundo social e, quando apresenta a norma como alienação, converte-se em crítica social e política. A adaptação social não é critério de saúde mental.

7. A psiquiatria institucional está ao serviço da manutenção da sociedade estabelecida e, nessa função, deve ser criticada: a antipsiquiatria pode ser encarada como crítica da ideologia psiquiátrica. Os antipsiquiatras foram grande profetas: o mundo presente confirma as suas profecias. Se tivessem sido escutados nos anos 60, o mundo não estaria hoje à beira do abismo. A vida saudável não pode ser dissociada da vida justa: a medicina precisa mais de filosofia do que de psicologia.

8. Aprovo o programa pré-revolucionário proposto por Cooper: a criação de Centros Revolucionários de Consciência. A psiquiatria pode integrar um tal programa de investigação científica. O atraso estrutural de Portugal tem uma dimensão humana: o país não se desenvolve porque os portugueses são seres mental e cognitivamente atrasados. A reformulação do programa pré-revolucionário de Cooper pode ajudar os portugueses a superar-se a si mesmos e a renascer como novas pessoas. 

9. Aprovo a crítica antipsiquiátrica da família e da escola. De facto, devemos gerar um movimento de Antipedagogia e defender a criação de anti-escolas e de anti-universidades. A mente arcaica dos portugueses refugiou-se na pedagogia para não aprender: o fracasso da educação em Portugal fornece-nos todos os elementos para pensar a antipedagogia

10. Defendo a libertação da subjectividade rebelde, mas não a situo ao nível da loucura. A psiquiatria institucional tende a colocar loucos e génios do mesmo lado da barreira entre norma e loucura, exigindo a ambos a adaptação social à média social. A noção antipsiquiátrica de viagem deve ser diferenciada: a viagem do louco é diferente da viagem do revolucionário. Neste terreno, o diálogo com a antipsiquiatria pode ser muito produtivo. 

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (4)

Mais ideias sobre Filosofia Médica nas suas relações com a Psiquiatria:

1. Hoje tenho passado o dia chuvoso a estudar psiquiatria portuguesa e americana. tendo relido uma conferência dada por Goffman a uma audiência de psiquiatras. A psiquiatria tem um passado macabro que revejo no excesso de autoridade dos psiquiatras portugueses, desde o século XIX até ao 25 de Abril. Conheço de perto a síntese antropológica da medicina proposta pela psiquiatria portuguesa, embora não a entenda teoricamente. Devemos combater o imperialismo psiquiátrico no seio da medicina: não acredito na eficácia das psicoterapias e os novos ramos da psiquiatria - psiquiatria comunitária, psiquiatria geriátrica e psiquiatria forense, entre outros ramos - estão claramente ao serviço da manutenção do status quo.

2. Os profissionais da saúde mental temem a desmedicalização da psiquiatria. Em Portugal, a recepção do movimento da antipsiquiatria foi muito má: todos temiam ficar sem emprego. "A violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria" (David Cooper), isto é, a subtil e tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos "sadios", contra os rotulados de loucos. A neurocirurgia praticada por EGAS MONIZ foi um acto de violência da psiquiatria. Qualquer história arqueológica da psiquiatria devia ter um capítulo final consagrado à "Violência e Psiquiatria". 

3. Infelizmente, não temos um bom estudo sobre a vida e obra de EGAS MONIZ: os portugueses não sabem fazer análises finas do pensamento daqueles que pensaram neste ermo que é Portugal. Já escrevi 3 ou 4 textos sobre a homofobia de Egas Moniz: a sua prática psiquiátrica é pura violência da psiquiatria. A destruição de partes do encéfalo é mais devastadora do que o encarceramento dos loucos. Egas Moniz comportou-se como um psiquiatra fascista.

4. Ontem, num piso inferior do Shopping do Bom Sucesso, foi brutalmente assassinado um homem gay que tinha marcado um encontro clandestino: a busca compulsiva de parceiro sexual levou a um encontro com a morte brutal. Ora, o crime do Bom Sucesso traz à baila o estilo de vida promíscuo dos homens homossexuais. A busca compulsiva de novos parceiros sexuais coloca em perigo a vida dos homens homossexuais, não só em termos de doenças sexualmente transmissíveis, mas também em termos de saúde mental e de criminalidade: sexo casual é sinónimo de encontro com a morte. A comunidade homossexual exibe um vasto espectro de perturbações mentais: o modelo de intervenção psiquiátrica junto da comunidade homossexual é relevante para a Filosofia Médica. A psiquiatria comunitária pode ser avaliada a partir deste modelo de intervenção psiquiátrica.

5. E. Goffman caracterizou o Hospital Psiquiátrico como uma instituição total, dando destaque ao seu "ciclo metabólico": a entrada ou recrutamento, a mastigação e o regurgitamento dos seres humanos. A analogia biológica chocou os psiquiatras, bem como M. Mead, a qual alegou que o ser humano não é um excremento ou um vómito. Porém, a mesma analogia foi usada por David Cooper: «No hospital psiquiátrico tradicional, actualmente, a despeito da proclamação de progresso, a sociedade consegue o melhor de ambos os mundos - a pessoa, que é "vomitada" para fora da família, para fora da sociedade, é "engolida" pelo hospital e, então, digerida e metabolizada, fora da existência como pessoa identificável. Creio que isto deve ser encarado como violência». 

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 2 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (3)

 Mala Moçambicana
Eis mais algumas ideias sobre Filosofia Médica:

1. O nazismo forçou o exílio de muitos intelectuais alemães. Adorno que nunca foi feliz no seu exílio americano falou da sua "vida danificada". Ora, nascer português é nascer para a vida danificada. Esta é uma verdade terrível que devia ser discutida publicamente pelos portugueses. A maldade humana manifesta-se em diversos momentos da história. Mas não é permanente como a maldade portuguesa.

2. Deleuze dedicou um livro à explicitação da filosofia de Foucault sem no entanto ter alcançado esse objectivo. Desconheço a existência de uma análise da "Arqueologia do Saber" de Foucault, obra onde ele se debate com o estruturalismo. Além disso, a relação de Foucault com o marxismo ainda não foi explicitada, embora as entrevistas forneçam muitas indicações a esse respeito. Eu comecei a ler Foucault durante a minha adolescência: a articulação entre relação de produção (Marx) e relação de poder sem teoria política (Nietzsche) nunca me seduziu: o aparelho de Estado ocupou sempre um lugar de destaque no meu pensamento. Estou convencido de que podemos analisar o Hospital, a Prisão, o Exército, etc., a partir da teoria do poder de Marx sem rejeitar o contributo de Foucault.

3. Hospital Psiquiátrico: Foucault e Goffmann aliaram-se à Anti-Psiquiatria para demolir esta instituição de saúde. Devo reconhecer que sempre estive associado a essa tendência num terreno estritamente científico: a defesa de uma Psiquiatria Biológica. No entanto, não sou favorável ao fechamento dos Hospitais Psiquiátricos. A crítica de Goffmann do Hospital Psiquiátrico como instituição total é justa: aprecio tudo o que disse sobre os territórios do eu e sobre os processos de mortificação do eu. Estes fenómenos ocorrem em qualquer tipo de internamento. Precisamos de uma Filosofia da Hospitalização.

4. Infelizmente, ainda não temos uma História da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a vanguarda da medicina e da psiquiatria portuguesas. As obras fundadoras da Psiquiatria Portuense não estão disponíveis no mercado do livro. Barahona Fernandes tentou suprir essa lacuna dos estudos médicos portugueses escrevendo "A Psiquiatria em Portugal" como complemento de "Um Século de Psiquiatria" de P. Pichot. Porém, a obra é francamente medíocre. Barahona Fernandes limita-se a condenar a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault. 

5. Os médicos portuenses dão nome a diversas instituições de saúde espalhadas pelo país. Destaco três nomes: Júlio de Matos, Miguel Bombarda e Magalhães de Lemos, para já não falar de Ricardo Jorge. Júlio de Matos escreveu duas obras fundamentais: "Os Alienados nos Tribunais" e "A Loucura", nas quais se afirma como alienista-filósofo. Magalhães Lemos defendeu a face neurológica da psiquiatria. António Maria de Sena legou-nos uma obra profunda: "Os Alienados em Portugal". Enfim, uma série de obras que ainda não foram estudadas. De certo modo, a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault percorre cada uma delas. O cerne da anti-psiquiatria é a luta  com, dentro e contra a instituição psiquiátrica: o questionamento do poder na prática anti-psiquiátrica leva à desmedicalização da loucura

6. António Mendes Correia é outro ilustre portuense que nos legou um conjunto de obras em diversas áreas científicas, da biologia à história, passando pela antropologia e pela criminologia: O Génio e o Talento na Patologia (1911), Criminosos Portugueses (1913), Crianças Delinquentes (1915), Antropologia (1915), Raça e Nacionalidade (1919), Homo (1921), Os Povos Primitivos da História (1924), A Antropologia nas suas relações com a Arte (1925), A Nova Antropologia Criminal (1931), Origens da Cidade do Porto (1932), Da Biologia à História (1934), Da Raça e do Espírito (1940), Uma Jornada Científica na Guiné Portuguesa (1946) e Antropologia e História (1954). A malvadez dos portugueses condena ao esquecimento as obras dos ilustres portuenses.

7. Interrompi o meu estudo sobre a evolução da psiquiatria portuguesa para estudar a situação da psiquiatria nos países asiáticos, tais como China, Coreia, Tailândia, Japão e Índia. Fiquei encantado com a abordagem cultural da psiquiatria asiática. Entretanto, tenho espreitado a psiquiatria forense americana, em especial o homicídio sexual em série porque ela me permite reintroduzir a noção de maldade, de modo a pensar a natureza perversa dos portugueses.

8. O aumento do número de assassinos em série nos USA levou alguns teóricos a reintroduzir a noção de maldade dentro da esfera da psiquiatria. As noções de mal e de pecado transitam da esfera religiosa para a esfera da psiquiatria e da filosofia, dando-nos uma plataforma conceptual de pensamento sobre a experiência humana universal de crueldade e dor (Cf. Andrew Delblanco, 1995). Doravante, a maldade ocupa um lugar privilegiado nos vocabulários profissionais da psiquiatria e da filosofia: as pessoas que cometem actos de crueldade devem ser consideradas responsáveis pelos seus actos, mesmo que uma doença mental possa estar presente.

9. Cesare Lombroso (1836-1909) acreditava que havia uma forte correlação entre certas configurações faciais e várias tendências criminais: o self exterior compartilhava assim da mesma "degeneração" manifestada pelo self interior do insano (Morel). De Cardano e Della Porta a Lombroso, passando por Gall, predominava o interesse pela fisionomia, no caso dos italianos, e pelo formato do crânio, no caso de Gall. Ora, em Portugal, a obra de António Mendes Correia situa-se nessa linhagem teórica da criminalidade: o ilustre portuense elaborou uma nova antropologia criminal - e do génio, tal como Lombroso, que urge analisar nesse contexto cultural.

10. A síndrome japonesa de ka-roh-shi - cujo significado literal é "morte por excesso de trabalho" - tem preocupado os psiquiatras japoneses. À carga de trabalho imposta pelas empresas japonesas aos executivos médios, eles acrescentam as pressões parentais. Com efeito, a elevada expectativa parental por desempenho académico está na base da criação de um sistema de escolas extremamente exigentes, onde os alunos continuam debruçados sobre os seus livros após o termo do seu já longo dia escolar. No Japão, as crianças estudam e fazem tudo para obter boas classificações escolares. Ora, as pressões familiares e sociais levam aqueles que não conseguem alcançar as notas exigidas à depressão ou mesmo à delinquência. A taxa de suicídio é alta no Japão. Em Portugal, as escolas já não funcionam: a paixão pela ignorância converteu as escolas portuguesas em recreios de engate.

11. O meu interesse pelas neurociências espirituais abriu a minha mente ao estudo de Tomio Hirai (1989) sobre uma forma de meditação Zen - Zazen - em relação ao tratamento psiquiátrico. O Zazen - a meditação sentada - está relacionado com os ensinamentos budistas e o estado de tranquilidade que proporciona é chamado satori (iluminação) que significa mente livre de ilusões. À medida que a meditação prossegue, a frequência de ondas alfa diminui gradualmente e aparecem as ondas teta rítmicas, alterações que correspondem àquelas que ocorrem durante o sono e estados de transe hipnótico. A filosofia da meditação Zen é mais interessante que a filosofia da psicanálise.

12. A disfunção psicossexual é frequente na China. Nos homens, a disfunção psicossexual pode tomar a forma de suoyang que significa "encolhimento do pénis". Na cultura popular, esta condição representa a perda da força yang (masculina) como resultado de actividades sexuais excessivas ou de possessão por espíritos maus (Wen, 1995). Além disso, a masturbação excessiva pode exaurir o yang do indivíduo, levando à condição mórbida conhecida como shenkui, equivalente ao nosso antigo conceito de neurastenia. O significado original de shenkui é deficiência renal, reflectindo a crença popular de que o rim armazena o sémen. A neurastenia cerebral - nao-shenjing shuai-ruo - está relacionada com esta neurastenia sexual, sendo ocasionada por excesso de estudos: tontura, falta de concentração e de memória e insónia são os seus sinais.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pensamentos Políticos Dispersos (1)

Eis alguns pensamentos políticos partilhados no Facebook a propósito da situação de Guerra em Moçambique:

1. Em Portugal, a lógica do aparelho partidário dos partidos políticos está a afundar a democracia: os deputados e os políticos são incompetentes que fazem da "política" uma fonte de rendimento. Eles não pensam em termos de ideologias em confronto mas sim em termos de emprego e de regalias. Daí que façam alianças com o poder financeiro e empresarial e com os grandes escritórios de advocacia. O regime político português está completamente podre e o povo não tem sabedoria para lutar pela sua refundação saudável. Um povo idiota tem os líderes que merece: políticos corruptos.

2. A única coisa que melhorou substancialmente em Portugal depois do 25 de Abril foi a saúde. A educação e a justiça afundaram-se completamente. Governar em função de indicadores estatísticos forjados cria um país de mentira que não resiste a uma tempestade. Portugal não resistiu à crise porque é uma mentira oficial.

3. A função primordial da Constituição é limitar o exercício do poder político. Em democracia, os partidos políticos - tanto os que estão no poder como os que estão na oposição - não podem subverter a Constituição, usando os aparelhos repressivos de Estado (Exército e Forças Policiais). Em Moçambique, os movimentos armados não podem ser vistos como partidos políticos. Por definição, um partido político não tem exército, nem nacional nem privado. Converter o exército nacional em braço armado do partido no poder é abolir a democracia.

4. O que falhou em Angola e em Moçambique? Falhou a experiência democrática: os movimentos de libertação não souberam converter-se em partidos políticos, cada um dos quais com a sua própria ideologia política. A democracia implica alternância política: uns ganham, outros perdem. Recorrer à força para conservar o poder não é política democrática.

5. A "despolitização" da sociedade e do ensino é perigosa. Sempre condenei a abolição da disciplina de Introdução à Política no ensino secundário e a indiferença dos cursos de Filosofia em relação à Filosofia Social e Política. Foi com prazer que, consultando as obras de Maurice Duverger, me deparei com uma distinção rigorosa entre Fascismo e Comunismo. Estou farto da propaganda americana que falsifica a verdade histórica para vender uma mentira: o comunismo é igualitário, o fascismo é aristocrático. O colapso do comunismo foi terrível para todo o mundo. Sociedades sem oposição interna e externa lançam o mundo no abismo, como estamos a verificar.

6. Comparemos qualquer Presidente americano com Lenine: o que verificamos? Verificamos que o primeiro é ignorante e que o segundo foi um grande pensador. O mal da esquerda contemporânea é ter rompido com a sua grande tradição: Não há grande política sem um grande pensador por detrás.

7. Por que não simpatizo com o pensamento de Michel Foucault? Porque a substituição da macropolítica - a visão marxista da política e do poder - pela micropolítica deixa-nos sem projecto político e sem visão de futuro. Ao ser seduzida por questões de micropolítica, a esquerda entregou o campo da macropolítica ao neoliberalismo que aproveitou o colapso do comunismo para impor a agenda terrível da globalização financeira. Ora, convém ler D. Guérin, porque há uma associação perigosa entre Fascismo e Grande Capital. Os comunistas da Alemanha lembram-me sempre da ligação entre BMW e Nazismo.

8. O Guião da Reforma do Estado de Paulo Portas é ridículo. O que é o Estado? Quais as funções do Estado que se pretendem reformar? A reforma do Estado tem sempre uma forte componente ideológica: o governo quer enfraquecer o Estado e transferir algumas das suas funções para o sector privado. Nunca vi governo tão pouco patriótico como este: Alemanha, França, Inglaterra, USA ou mesmo a China são Estados fortes.

9. Concordo com a experiência pedagógica da Escola de Matosinhos: a separação dos bons alunos e dos maus alunos em turmas diferentes permite melhorar a qualidade do ensino, dando especial atenção aos alunos inteligentes; os outros podem assim estudar ao seu ritmo lento e ser canalizadas para outras áreas profissionais sem prejudicar os alunos inteligentes.

10. A situação de Moçambique agrava-se. Primeiro: a descolonização foi mal feita. Segundo: não há partidos políticos em Moçambique, mas dois movimentos armados que visam a conquista definitiva do poder. Terceiro: não havendo partidos políticos, não há democracia. Quarto: predomina a ideologia da eliminação do adversário porque não há ideologias políticas em confronto mas ambições pessoais de dirigentes totalitários.

11. Já leram o guião da reforma do Estado apresentado por Paulo Portas? Privatização das escolas públicas! É tudo tão ridículo que não vale a pena comentar! No entanto, vale a pena referir a experiência interessante de uma escola de Matosinhos: separar os bons dos maus alunos ajuda a melhorar a qualidade do ensino.

12. Os sonhos de infância ditam os destinos de Portugal: Passos Coelho e Paulo Portas sonharam que, quando fossem grandes, queriam ser Primeiro-Ministros. Ser Primeiro-Ministro tornou-se o objectivo das suas vidas. E basta a ambição para ser Primeiro-Ministro em Portugal. Daí que nunca tenha havido projecto político de futuro neste pobre e feio país.

13. Façam este exercício: Pensar a composição etária e regional deste governo. Uma conclusão se impõe: os ministros e secretários-de-Estado mais jovens são incompetentes e vingativos. E alguns deles são provenientes do interior profundo de Portugal.

14. Em vez da captação de migração de "valor qualificado", devíamos seguir uma política de expulsão de cérebros de diminuto valor, como o de Pedro Lomba.

15. Por que não simpatizo com a Frelimo? Sou a favor dos movimentos de libertação dos povos oprimidos. Porém, no caso de Moçambique, o movimento de libertação devia converter-se em partido político depois da Independência mudando de nome. A Frelimo aliou-se ao comunismo, seguindo o modelo de partido-único detentor do poder político. Mais tarde, depois da Guerra Civil, tanto a Frelimo como a Renamo deviam dar origem a dois partidos parlamentares que disputam democraticamente em eleições livres a conquista do poder. Porém, como estamos a ver, nenhum destes movimentos abdicou do seu braço armado: a Frelimo usa o exército nacional para se perpetuar no poder e a Renamo tem o seu exército privado. O Estado de Direito não pode existir nestas circunstâncias. Eliminar fisicamente adversários políticos não está no ADN do combate democrático pela conquista do poder. (Angola não é bom exemplo de democracia!)

16. Quando os portugueses diziam que "somos ricos", eu reagia a tal afirmação ultra-igualitária com espanto, pensando que eles eram e são idiotas. Apesar do colapso do comunismo, a teoria marxista do poder continua a ser válida: os partidos políticos são, de certo modo, classes sociais organizadas em termos de conquista do poder. Ora, o próprio Estado não é completamente neutro em matéria de luta de classes: as suas instituições nucleares - os aparelhos repressivos e ideológicos de Estado - impõem através da violência física e/ou simbólica o domínio da classe dominante sobre as classes desfavorecidas. Até mesmo o Estado Democrático é um "Estado de Classe". Uma prova: os portugueses estão a pagar os prejuízos privados dos bancos. O Estado socorre o grande capital nacional e internacional através do empobrecimento do povo. O Guião da Reforma do Estado proposto por Paulo Portas visa reforçar o carácter de classe do Estado português.

17. Paulo Portas diz ter lido Raymond Aron, mas parece ter retido pouca coisa dessa leitura: Raymond Aron foi sempre um defensor da democracia liberal, da economia de duplo-sector e da elevação do nível de vida das classes trabalhadoras, de modo a conter o avanço do comunismo. Paulo Portas propõe a privatização das escolas públicas, entre outras medidas conjunturais ridículas.

18. Quem é que já leu "Que Fazer?" de Lenine? Uma grande obra de pensamento político que pensa a conjuntura - o momento presente - sem esquecer a estrutura a longo prazo. Lenine foi uma mente brilhante. Ora, os políticos portugueses não escrevem obras que mereçam ser lidas. O pensamento político português é lixo.

19. Sempre que ouço os socialistas a defender uma solução federalista para a Europa fico aterrorizado. Será que eles ainda não compreenderam que a alienação da soberania nacional fortalece a soberania alemã? E sempre que escuto Passos Coelho a atacar o Tribunal Constitucional a palavra "Fascismo" vem-me à cabeça. 

20. Dizem no Facebook que em Belém habita a doença de Alzheimer. Confesso que esta concepção de doença como entidade exterior aos doentes - os seus portadores - me é completamente estranha. Neste aspecto, afasto-me do platonismo médico

J Francisco Saraiva de Sousa